Você tem um diário?
Se a resposta for negativa, talvez seja a hora de investir em um. Especialistas e adeptos da escrita terapêutica falam da importância de escrever para a manutenção da saúde mental
Daniela Arrais é uma entusiasta da escrita, e não apenas por ser jornalista. Além do ofício, a sócia da plataforma Contente.vc usa as palavras e o registro de seus pensamentos como uma forma de autocuidado. “Escrevo realmente tudo: desde o cardápio da semana, minha maternidade, o luto do meu irmão, até o trabalho. Encontrar você mesmo no papel te mostra o quanto você está remoendo as coisas, o quanto está difícil superar um momento.” A prática milenar com essa intenção é conhecida como escrita terapêutica, que vem ganhando mais e mais adeptos, assim como pesquisas que embasam seus benefícios para a saúde.
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‘As cartas eram o que a gente era, o que a gente sentia‘
Por que escrever?
O poder curativo do perdão
Tudo começou em 1986, quando o professor de psicologia James Pennebaker conduziu o estudo pioneiro no tema. Nele, estudantes reservaram, todos os dias por um período de tempo, 15 minutos para escrever sobre um trauma ou um momento difícil de suas vidas. Os resultados foram promissores, e mostraram relação não apenas com bem-estar emocional decorrente daquela rotina, como um sistema imunológico mais consistente.
Ao jornal The New York Times, o especialista comentou, em 2018, que dar nome às emoções e reconhecer eventos traumáticos – ambos efeitos da escrita terapêutica – geram benefícios à saúde das pessoas. Segundo Pennebaker, manter um diário é também uma maneira de se organizar, já que ordenamos os pensamentos e livramos a mente da função desgastante de processar eventos traumáticos sozinha, o que ajuda, inclusive, em um sono de qualidade.
Assim, a escrita vem se tornando um novo ramo do autocuidado, muito próxima da prática da meditação e do mindfulness. Quase como um bote salva-vidas em meio ao naufrágio da era da informação, toxicidade das redes sociais e tantos casos de ansiedade e depressão, escrever não funciona apenas como exercício da boa comunicação. Estudos descobriram que manter um diário pode também dar um boost no humor, na autoconfiança e até no Q.I.
É só sentar e escrever
Ou digitar – as notas do celular foram grandes aliadas de Dani Arrais. E não se engane: para começar, nem precisa ser um bom escritor (mas se estiver procurando dicas para se aprimorar, Gama elencou algumas). O poder da escrita terapêutica está na rotina e no registro sincero e real dos sentimentos, não na qualidade do texto. “É o uso proposital e intencional da escrita como cura, mudança ou crescimento”, define a psicoterapeuta Kathleen Adams, que é fundadora do Therapeutic Writing Institute. “O diário pode ser tornar um confidente e ajudar a desenvolver comportamentos mais saudáveis e pensamentos que geram maior bem-estar.”
A prática é um complemento interessante para sessões de terapias tradicionais, como aponta Adams. “Recomendo que as pessoas escrevam, num primeiro momento, sobre o dia a dia. Não precisa ter nenhum problema existencial envolvido”, explica. “Isso ajuda a desenvolver alguma confiança para abordar questões mais complexas depois.” A criatividade para técnicas de escrita e contação de histórias vem como bônus da criação do hábito. “Contanto que a pessoa esteja aberta a tentar e a se surpreender, são habilidades que podem ser aprendidas no processo.”
Kathleen Adams recomenda escrever de três a quatro vezes por semana, nem que seja um único parágrafo. Por outro lado, o método da autora do best-seller “O Caminho do Artista” (Sextante, 2017), Julia Cameron, consiste em preencher três páginas de texto todos os dias, pela manhã. O título foi um dos responsáveis por reacender o hábito da escrita enquanto meio para uma vida mais criativa, e propõe uma jornada de 12 semanas (com técnicas como as páginas matinais, como ela define no enredo) de autodescoberta, que vai ajudar na promoção da criatividade.
O diário pode ser tornar um confidente e ajudar a desenvolver comportamentos mais saudáveis e pensamentos que geram maior bem-estar
A psicoterapeuta do Therapeutic Writing Institute explica que, por mais que a consequência primordial da escrita terapêutica não seja o aumento da criatividade, ela pode se tornar “um efeito natural e orgânico para muitos praticantes”.
Daniela Arrais, da Contente.vc, por um tempo seguiu fielmente a técnica das “morning pages”, ou páginas matinais. “A rotina era acordar, escovar os dentes, pegar um caderno e escrever. Era uma higiene mental, conseguia começar o dia mais consciente de mim mesma.” Hoje, busca a caneta e o papel quando precisa se reencontrar, focar, tirar de si algum pensamento que incomoda. “É um contato forte com nós mesmos, e muito acessível. É uma ferramenta para se apresentar pro mundo de maneira mais em dia com quem somos e o que sentimos”, diz ela.
Não tem segredo
Se ficou interessado, procure papel e caneta, estabeleça um horário para refletir e escrever, e comece assim que puder. Se quiser derramar as emoções nas notas do celular, faça como preferir. O importante é manter uma rotina, e não deixar de escrever. Kathleen Adams dá algumas dicas para colocar a escrita terapêutica em prática.
Atente-se para a privacidade
Ela demonstra a importância das páginas serem um local seguro para falar sobre o que sente, tal qual uma sala de terapia. “Tenha certeza que seu diário está guardado em um lugar protegido, ou que o computador tenha senha para os documentos onde você se expressa.”
Tenha um propósito em mente
“Que efeito ou resultado você busca? Qual lembrete, técnica ou método de escrita você vai utilizar?”, Adams questiona. Ela indica organizar bem a rotina e, claro, o objetivo da prática. Estabeleça horários na semana para escrever, quantas páginas e por quanto tempo irá praticar, e coloque um despertador.
Reflita sobre o que escreveu
Quando terminar de colocar todos os sentimentos e questionamentos no papel, leia o texto e escreva mais uma ou duas frases de reflexão. “Pode ser algo na linha de: ‘Enquanto lia, percebi…’, ‘Estou ciente que…’, ‘Meu próximo passo…’ Essa reflexão leva a uma nova etapa, a de agir e ocasionar as mudanças que buscamos.”
Não se apegue a regras
Questões como: “O que está acontecendo agora?”, “Como estou me sentindo e o que aconteceu para engatilhar esse sentimento?”, “Como gostaria de estar me sentindo e o que posso fazer para chegar lá?” são ótimas para começar a prática, como aconselha Kathleen Adams. Mas não se prenda a elas. “Acima de tudo, aborde a escrita terapêutica com senso de aventura e curiosidade”, finaliza.