Maria Ribeiro
O mundo que começa depois do fim
Você não era você. Você era eu. Uma outra chance de me dividir em dois. Eu, na solidão precária da existência. Você, na solidão ainda mais precária da sua
Beijos do mundo que começa depois do fim. Essa foi a primeira mensagem do nosso histórico de conversas. Não. Mentira. Que WhatsApp não é conversa. Que frases que não se esbarram não podem ser consideradas diálogos. Ou podem? Às vezes acho que falta a legenda. Solidão a dois, já dizia Cazuza. E olha que a canção é de oitenta e sete.
Se a gente soubesse da pandemia, será que teria perdido tanto tempo naqueles textos? Desperdiçado trezentos dias de oxigênio? Acho que sim. Era dois mil e dezenove. Qualquer mentira era melhor do que o noticiário. E a gente nunca se preocupa com o Brasil na hora de dormir. Histórico de conversas, meu quarto de hotel preferido depois de Freud.
Eu disse textos, não é? Mentira. Isso aqui é passado pra uso externo. Do dia em que meu pai saiu de casa, de quando descobri Fernando Pessoa, de quando percebi que a sua fala não é hesitante à toa, de quando decorei a ordem dos losangos do tapete da minha analista, do momento em que eu me dei conta de que você não era você. Você não era você. Você era eu. Uma outra chance de me dividir em dois. Eu, na solidão precária da existência. Você, na solidão ainda mais precária da sua.
Fiquei com vontade de ir pra Califórnia com você. De ter filho com você, de fazer aquela viagem de carro
Tomei meu primeiro md assim que tudo acabou. Era dois mil e dezoito. Bolsonaro tinha virado uma realidade, eu tinha acabado de me separar, minha melhor amiga tinha morrido, o Brasil estava na última posição do páreo de segunda à noite. Éramos cavalo e jóquei juntos, deitados na grama/céu que só o chão é capaz de dar. Não que fosse meu primeiro chão. Mas era dos mais difíceis.
Meu pai gostava de turfe. Um dos rituais mais frequentes de quando eu era garota era visitar com ele as cocheiras do jóquei e dar tabletes de açúcar pros cavalos. Acho que eu nem gostava tanto assim do programa, mas eu gostava dele, e, ele gostava de mim, talvez porque eu gostasse dele.
O mundo que começa depois do fim começa muitas vezes. Talvez o primeiro tenha sido em oitenta e três, um pouco antes da música do Cazuza. São dez horas da manha de um sábado. Ouço meu pai chegar em casa. Você não dormiu aqui?, eu pergunto. Tava em São Paulo? Minha mãe chora. Subo as escadas correndo. Me tranco no quarto. Alguma coisa muda pra sempre no meu jeito de subir escadas. Ou de fazer perguntas. Nunca mais vou ter sete anos, penso. Nunca mais tive.
Na nossa segunda mensagem eu te disse que o meu filho gostava de bicho. Que ele tinha chorado dez dias quando o peixe dele morreu. Eu tinha muitos peixes quando era criança, você disse. Esse é o truque. Ter muitos (acho que você usa esse truque até hoje).
Fiquei com vontade de ir pra Califórnia com você. De ter filho com você, de fazer aquela viagem de carro que parece que você se mudou pro Instagram, de escrever livro junto, de ver filmes péssimos em poltronas incríveis, de entender os nomes científicos dos passarinhos.
Mas pra que tudo isso agora? Pra que esse histórico de conversas? Por que outro dia te vi, e não senti nada: nem raiva, nem afeto, nem saudade, nem tristeza, nada. Nada vezes nada. Em pleno festival do desamor do Johnny Depp e da Amber Heard, fiquei achando que o desamor era melhor que o nada.
Não sei.
Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)
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