Marcello Dantas
DesLegado
Como garantir um futuro pior para os seus filhos? Uma nova start-up congela óvulos e esperma por 200 anos
Quando saberemos que, de fato, chegamos à distopia? Os números da pandemia? Ou talvez, as imagens da Guerra na Ucrânia, as outras guerras em curso e suas atrocidades? Ou o colapso climático do planeta que se manifesta a todo o tempo? Quando é a hora que entenderemos que estamos perto de uma zona de risco que nos aproxima do apocalipse? O que será necessário para que despertemos de uma certa anestesia que o mundo vive nesse momento?
Recentemente me deparei com um serviço de uma start-up recém-lançado nos Estados Unidos de congelamento de óvulos e esperma para que você possa ter um filho em até 200 anos. O serviço chama-se Give Legacy e a ideia embutida em sua racional de business plan é de que a distopia é inevitável e que a humanidade passará por um período sombrio, durante o qual não valerá a pena ter filhos, pois os próximos cem anos serão terríveis. Contudo, depois desse período sombrio, com o que sobrar da espécie e do planeta, será um momento de um novo esplendor, em que valerá a pena viver novamente. Com isso em mente, eles oferecem o congelamento para que o seu legado genético floresça neste novo mundo, que está um tanto mais à frente do que seu alcance de vida pode chegar.
Quando passamos a não mais remar contra a catástrofe, ela se torna inevitável
Como pai de três filhas que amo, essa ideia me pareceu a coisa mais egocêntrica que alguém poderia ter. Como aceitar ser pai de alguém com quem você nunca poderia conviver? E por quê? Qual o sentido de manter um legado genético sem um legado afetivo, cultural e ético?
Pensando um pouco mais, entendi que o problema em si era bem maior. Pois a premissa fundamental dessa proposta é que deveríamos desistir de lutar pelo planeta e pela nossa espécie e aceitar que esses esforços ambientais serão em vão, que a distopia é inevitável e um componente com o qual podemos contar como certo. Isso sim me assustou ainda mais. Quando passamos a não mais remar contra a catástrofe, ela se torna inevitável. Embutida nesse pensamento existe também uma aceitação de que a espécie seria objeto de uma seleção natural, onde uma parte de nossa diversidade genética seria perdida. E o seu objetivo com um serviço como esse seria garantir a sua representatividade genética nesse novo mundo que surgiria depois do colapso.
Aceitar o fato de que precisamos investir em um mundo pós-colapso é o maior sinal que talvez a distopia tenha de fato chegado
Essa ideia traz dentro de si uma ideologia de seleção de raça em que somente poucos possuem meios para projetar seus genes numa cápsula do tempo para o futuro. O que assusta ainda mais, é pensar que foram esses mesmos genes que nos guiaram a essa situação e que preservá-los pode ser perpetuar a capacidade de destruição da espécie.
Mas aceitar com naturalidade o fato de que precisamos investir em um mundo pós-colapso é o maior sinal que já tive de que talvez a distopia tenha de fato chegado. E no salve-se quem puder desse planeta à deriva, alguém está gritando aos que sobem nos barcos de salvamento: espermas e óvulos primeiro.
Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior
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