Isabelle Moreira Lima
Me vê uma tacinha de prazer?
A celebração dos chamados vinhos de terroir e seu alto preço deixam o bebedor curioso e de paladar cansado em uma encruzilhada. Mas há saídas
Tem muitos jeitos de categorizar vinhos –por castas ou blends; por estilos, sejam tranquilos ou espumantes, doces ou secos; por origem, do Novo e do Velho Mundo. Mas nesta semana ouvi a que mais fez sentido para mim. O produtor do Rhône, François Perrin, da Famille Perrin, um dos mais celebrados produtores de Châteauneuf-du-Pape e responsável pelo rosé Miraval, feito no château de Brad Pitt, falou dos vinhos de terroir e dos de prazer.
Os primeiros seriam os que carregam em si as características do lugar (clima, solo, etc.), da uva e da ação do homem. São complexos e feitos para amadurecer. Com o passar do tempo, mostram novos elementos, mais especiais e raros. Já o segundo grupo, os de prazer, são vinhos feitos única e exclusivamente para nos deixar felizes. Já deu pra entender que o preço dos primeiros é bem mais alto que o dos segundos, né?
Depois de alguns anos de cobertura de vinhos percebi que todo enólogo mais interessante entende que um bom vinho se faz no vinhedo. Eles cuidam da vinha para que ela dê complexidade à bebida e entendem o solo para prever o que devem fazer (e o que não devem, principalmente) na hora da vinificação. Assim, muitas vezes, os tais vinhos de terroir são também vinhos de baixa intervenção, afinal, se o terroir tem que ser mostrado, não se quer “maquiar” suas características com insumos ou processos enológicos.
Isso tem a ver também com o resgate da ancestralidade que se espalhou por diferentes áreas, da panificação à produção de cerâmicas, passando pelo tingimento de tecidos, agora com tintas naturais vindas de vegetais. E, de fato, é bem interessante ter acesso a vinhos que sejam menos construídos e tenham a cara do lugar de onde vêm. Isso faz deles únicos, afinal, nenhum lugar é igual a outro –me lembra inclusive desse texto que fala que o Chablis não é um Chardonnay melhor que os outros, é apenas diferente justamente por causa do terroir único da sua denominação de origem (a AOC, em francês).
O valor alimentar do vinho seria justamente nutrir o prazer, mas com o preço dos vinhos de terroir, a equação fica na base do impossível
Mas de alguma maneira esse discurso do vinho de terroir e vinho-se-faz-no-vinhedo começou a me incomodar. Por mais que essas bebidas sejam deliciosas, que o vinho deva ser celebrado como um alimento que vem da terra, um produto agrícola, e não como algo elitista para os salões encantados onde o PIB circula, o discurso não ajuda a quem quer beber e não figura no topo da pirâmide econômica. Fatalmente, essa pureza da terra engarrafada acaba virando algo elitista. Os vinhos de terroir são sim mais caros que os vinhos de prazer (prefiro essa charmosa denominação ao detestável “feito em larga escala”; ou mesmo “comercial”; ou ainda, o pior de todos, “genérico”, que diz respeito aos vinhos sem especificidade, os que não são de uma AOC, mas de uma região maior). E aí, como fica o seu prazer?
O meu, vez ou outra, fica culpado. Como bem perguntou o New York Times em um texto que narra o caso de um ministro vietnamita que come um prato que custa muitas vezes o seu salário e infinitas vezes o do cidadão comum Vietnã: em um mundo faminto, comer bem é antiético? E beber vinho, como fica, considerando que teoricamente nem é algo de primeira necessidade? O valor alimentar do vinho seria justamente nutrir o prazer, mas com o preço dos vinhos de terroir, a equação fica na base do impossível. Resta ser mais generoso com o que se considera que entra nessa categoria da bebida.
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Como jornalista especializada em vinhos eu tenho a oportunidade de provar muitos dos que fazem parte do primeiro grupo. É o que as vinícolas querem mostrar por que se orgulham deles, mas também por que é o que querem vender. Adoro conhecer algo clássico como o Château Beaucastel da Famille Perrin que citei acima. Ele traz textura e a promessa de uma vida longa com nuances que ainda aparecerão no futuro. Mas fico mais feliz ainda quando acho uma delicinha de R$ 60 –hoje cada vez mais raras.
O paladar cansa. Pense no que você gostava de comer há dez anos, seus ingredientes favoritos. Eles continuam o apaixonando até hoje?
Para deixar a situação ainda mais complexa, jogo um outro elemento aqui: o paladar cansa. Pense no que você gostava de comer há dez anos, seus ingredientes favoritos. Eles continuam o apaixonando até hoje? Pouco provável que seu coração ainda bata forte pelos mesmos pratos, o mesmo tipo de queijo, a mesma cerveja, a mesma sobremesa. E essa é uma verdade tão firme que explica e justifica casos como o do tomate seco nos anos 1990-2000 ao da burrata dos dias de hoje – com sinceridade e cinismo digo que não dou mais cinco anos para que ela venha a conhecer o ostracismo.
Faz um mês fui a um jantar e sentei numa mesa com sommeliers onde ouvi que “todo mundo busca algo diferente o tempo todo”. Parei, pensei, e vi que eu também sou uma vítima desse sistema. Quando comecei a beber vinho com mais seriedade, isto é, anotando os nomes dos rótulos, pesquisando sobre as uvas, a produção, e o que mais fosse possível, sentia muito prazer com os vinhos potentes, cheios, grandes. Noto que hoje, eu (e grande parte do mercado consumidor, diga-se de passagem) estou interessada em vinhos mais frescos, alegres, os chamados glou-glou, que bebemos rápido e felizes, num constante glu-glu-glu-glu de goles. E se isso não é vinho de prazer nem sei.
O paladar muda e se refina, quanto mais se conhece, mais se quer conhecer e é aí que mora o problema. Para não deixar essa coluna triste, com um fim no estilo beco sem saída, vejo uma direção possível: beber menos para conseguir beber melhor. Menos garrafas por mês, com mais diversidade e, quem sabe, até um pouco de terroir para incrementar o seu prazer.
Saca essa rolha
PARA AGRADAR SEU PRAZER
O meu prazer é bem agradado com Garnacha. Adoro o Venta La Vega Adaras Aldea, um blend com Syrah, que é alegre e jovial, faz uma festinha na boca. Para uma tarde alegre, o Cava Castelfino Brut sempre cai bem.
PARA DESAFIAR UM PALADAR CANSADO
SE tiver exausto, vá atrás do Outro Vinho Traminer, que é estruturado e azedinho e segura até um spaghetti com costela (sem falar que é lindo e vai impressionar geral). Se tiver só cansadinho, vá de Cinsault, e uma dica é o Gallardia, sempre confiável, acidinho e delicioso.
PARA DESVENDAR UM TERROIR
O Aveleda Loureiro & Alvarinho é um ótimo exemplo da acidez e leveza que a região dos vinhos verdes tem a oferecer. Sem gastar muito, é possível entender um estilo e um lugar. Um degrau acima está o Altos Las Hormigas Malbec Terroir Valle de Uco, que é perfeito para uma carne na brasa.
Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.