Stephanie Borges: ‘Ler mulheres negras me deu coragem’
Autora do ensaio ‘As Raízes e a Cabeça’, a poeta Stephanie Borges estabelece sua relação com as madeixas como ponto de partida de uma autoafirmação política e racial
“Meus cabelos foram o primeiro traço do meu corpo a me colocar diante de questões de identidade e de gênero. Eles revelavam que, mesmo com a pele clara, a negritude se anuncia de forma inegável.” É assim, ao ressignificar um símbolo visto como meramente estético, que a poeta, jornalista e tradutora Stephanie Borges abre o ensaio “As Raízes e a Cabeça”, publicado na edição #38 da revista Serrote, do IMS, que acaba de ser lançada. Com 36 anos e uma trajetória política e literária, a autora narra no texto a sua relação com o próprio cabelo quando criança, a transição capilar e a libertação de padrões sociais entre as dores e as delícias de se descobrir negra.
“As Raízes e a Cabeça” foi escrito durante a produção do livro “Talvez Precisemos de um Nome para Isso” (Editora Cepe, 2020), vencedor do prêmio Cepe Nacional de Literatura em 2018. Tanto o livro quanto o ensaio surgiram por parte de um exercício: a autora queria escrever poemas que ressoassem com a autenticidade de sua narrativa, mas sem falar de si. A ideia era fugir da poesia autocentrada e oferecer ao leitor algo para se conectar. “Nesse processo de escrever os primeiros poemas, ficou muito claro que o único jeito de escapar dessa coisa narcísica seria justamente partir para a pesquisa e ver não só o que as pessoas negras estavam falando sobre seus próprios cabelos, mas como as pessoas reagiam aos nossos cabelos”, conta Stephanie.
Passei pela transição muito jovem, após uma década alisando cabelo. Se fosse um pouco mais velha, talvez não me importasse tanto
Transição e libertação
Após o primeiro contato com a química aos 12 anos, a relação de Stephanie com as madeixas foi cercada por anos sem conhecer a textura do próprio cabelo. Quando resolveu deixar os cabelos naturais depois do extensivo dano nos fios causado por uma década de alisamentos, deu de cara com uma parte de si que era desconhecida. O cenário era completamente diferente do atual, com o boom da transição capilar inspirado por influencers e a adaptação de cosméticos sem substâncias agressivas para a estrutura sensível do cabelo cacheados. Na mente jovem, os comentários de conhecidos faziam a situação parecer mais crítica do que realmente era. “Eu passei pela minha transição muito jovem depois de uma década alisando cabelo, e se eu tivesse passado por isso um pouco mais velha, talvez eu não me importasse tanto”, conta.
“O que me faltava não era apenas o conhecimento sobre corte, hidratações e tratamentos, mas a percepção de que perseguir uma estética criada para corpos com características tão diferentes do meu próprio corpo era uma forma de apagamento, de não reconhecer características que me constituem.”*
Há quatro anos traduzindo textos para a Serrote, Stephanie já reescreveu para o português as palavras de autoras negras como as poetas Audre Lorde (1934-1992); a estadunidense Alice Walker, autora do clássico “A Cor Púrpura” (Harcourt Brace Jovanovich, 1982); e a jamaicana Claudia Rankine, autora de “Só Nós, Uma Conversa Americana” (Graywolf Press, 2020). As leituras se mostraram importantes na compreensão da vivência negra como algo complexo e pessoal, ainda que compartilhando de algumas similaridades. O livro “Rock My Soul” (Atria Books, 2003), escrito pela professora e teórica do feminismo negro Bell Hooks, baseou o ângulo analítico do ensaio. E se Hooks assenta as pedras para o caminho da crítica ao esvaziamento do valor pessoal da pessoa negra na sociedade racista, Stephanie põe a teoria a teste, expondo com uma corajosa fragilidade a descoberta de que, no fim das contas, seu cabelo é só cabelo.
“Como a beleza das yabás [termo dado aos orixás femininos Iemanjá e Oxum] nunca é descrita com referências aos seus cabelos, enfim compreendi que os cabelos são uma questão para os brancos. É Narciso quem acha feio o que não é espelho.”*
E eu não sou mulher?
Stephanie conta que a transição capilar foi um ponto de quebra com uma expectativa de submissão ao padrão, e a visão de uma feminilidade negra era mais palpável, mais realista. “A minha transição me ajudou muito a lidar com o fato de dentro de uma lógica da feminilidade padrão, eu sempre fui exótica. Mas a questão toda é: eu estou me sentindo bonita? Porque passei anos perseguindo uma lógica na qual eu nunca ia ser contemplada”, afirma.
A impressão da conformidade com uma humanidade padronizada, frágil e submissa não fazia sentido. Stephanie descreve seus cabelos como instáveis, imprevisíveis, fora da ideia e da pretensão de uma feminilidade tradicionalista. Aos poucos, as palavras da abolicionista negra estadunidense Sojourner Truth (1797-1883) em 1851, quando discursava na Convenção pelos Direitos das Mulheres em Ohio, expressando a negação de uma feminilidade branca e servil, fazia mais sentido com a reflexão que se enraizava: se sua existência era negada de humanidade, então ela já não queria mais ser mulher. “Se a ideia da humanidade padrão é construída para me excluir do que é considerado ser humano, eu não tenho interesse em discutir a minha humanidade, estou interessada em discutir quais são as minhas possibilidades quando paro de tentar provar alguma coisa”, afirma Stephanie.
A questão toda é: eu estou me sentindo bonita? Porque passei anos perseguindo uma lógica na qual eu nunca ia ser contemplada
Ser confrontada com a realidade que o cabelo representava estava atrelado à enorme bagagem de ser negra e a forma como era representada pelo mundo. Os estereótipos normalmente associados a mulheres negras – a Tia Anastácia (a cozinheira negra que trabalha na casa de Dona Benta nos livros de Monteiro Lobato), a sexualmente fervorosa e a barraqueira – eram rótulos que hora ou outra seriam impostos ao corpo que ela ocupa, sintomas de uma estrutura racista que criou moldes de como a mulher negra deve ser, e ao mesmo tempo que exclui quem não se adequa, pune quem se encaixa.
“No debate público, a maior presença de pessoas negras em diferentes campos do saber não significa que as diferentes experiências de ser negro sejam contempladas, especialmente num país desigual como o Brasil. Ainda mais quando essa presença está condicionada à cumplicidade com uma lógica desumanizante pela qual se espera que nos adequemos aos estereótipos racistas – ou que nossa presença sirva para negar o racismo estrutural no último país a abolir a escravidão.”*
‘Se não nos definirmos, seremos definidos pelos outros‘
Audre Lorde já dizia, em sua epifania escrita em Irmã Outsider (Crossing Press, 1984): “Se nós não nos definirmos, seremos definidos pelos outros – para proveito deles e nosso prejuízo”. Ao ler mulheres negras falando de suas experiências com as confluências do racismo e do machismo, a vivência negra se mostra muito mais caótica do que a representação midiática. A complexidade e a sutileza da opressão não estavam nas novelas nem nas propagandas, ainda que tentassem. “O que a gente precisa é justamente lembrar que são milhares de pessoas negras com experiências que são muito diferentes entre si, a gente sempre vai ter alguns pontos em comum, mas não se espera que os brancos tenham nada em comum entre si além do fato de serem brancos”, explica Stephanie.
Apesar dos avanços do audiovisual e da imprensa ao representar mulheres e pautas negras, Stephanie ainda reconhece um caminho a ser trilhado para além da diversidade nas salas de redação. “É fundamental que a gente tenha não só mais diversidade na cobertura ou mais pessoas negras ativas no jornalismo, mas também pessoas com liberdade para pautar determinados assuntos e propor uma lógica antirracista na cultura. A nossa imprensa, principalmente quando a gente fala de segurança pública, ainda é muito racista”, afirma a poeta.
“Dar nomes e estabelecer ideias são formas de exercer poder. Precisamos definir nossas experiências como elas são: complexas, contraditórias e também poéticas.”*
Para ela, a autoafirmação é, então, uma forma de autocontrole sobre a própria imagem. Com “As Raízes e a Cabeça”, Stephanie busca ocupar um local para poder dar voz à sua visão de mundo, variando entre celebração e luta pela existência. “A realidade impõe que a gente precise às vezes falar de coisas incômodas, mas a nossa vida de mulher negra não se resume a ser uma reação ao racismo. Então meu posicionamento intelectual também não vai ser”, conclui.
*Os trechos que permeiam o texto são parte do ensaio “As Raízes e a Cabeça”, pulicado na revista Serrote