Pensamentos travestis na arte de Isadora Ravena — Gama Revista
Sociedade

Pensamentos travestis na arte de Isadora Ravena

Contra a narrativa única da violência, pesquisadora propõe aproximação de artistas trans como plataforma para criação de vida em trabalho e curso que já teve Linn da Quebrada entre alunos

Amauri Arrais 15 de Dezembro de 2021
Isadora Ravena

Isadora Ravena não sabe diferenciar ao certo quando começou a assumir sua atual identidade e iniciou seu processo de se entender como artista. Há quase dez anos, deixou Uruburetama, cidade cearense de pouco mais de 20 mil habitantes, para terminar o ensino médio em Fortaleza. Aos 16, foi aprovada no curso de agronomia na Universidade Federal do Ceará. Depois de dois anos “muito mal sucedidos”, passou a frequentar o centenário Theatro José de Alencar, então dirigido por uma de suas tias, e decidiu trocar os estudos sobre o campo pelo teatro. Era o começo de muitas mudanças.

“A construção de uma Ravena travesti é a construção de uma Ravena artista, se confundem totalmente. A arte passa a ser o meu lugar de transição, de inventar um outro corpo. E a reflexão sobre isso me faz produzir artisticamente. São lugares que se retroalimentam”, lembra ela, hoje com 24 anos e aluna do mestrado em artes da universidade.

A professora e artista Isadora Ravena  Divulgação

Em junho deste ano, como parte da sua pesquisa que investiga “metodologias travestis de criação”, em que dialoga com artistas do Brasil e da América Latina, ela lançou o curso online “Pensamentos Travestis na Arte Contemporânea”, realizado pelo Espaço Lux, em São Paulo. Ravena já mantinha contato com artistas travestis como Jota Mombaça e Ventura Profana, mas se surpreendeu ao ver o grande número e a diversidade de inscritos, entre professores, antropólogos, psicólogos e artistas –metade composta por pessoas trans.

Tentamos fugir da violência para, a partir daí, criar outros imaginários, onde nossos corpos não sejam mais alvos desse extermínio

A ideia, afirma, partiu do desejo de criar um modelo de escola aberta, onde o pensamento de pessoas trans possa ser articulado, levando em conta que só 0,02% desta população está na academia, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais. A partir do curso, que ganhou uma segunda edição e deve ter uma terceira em janeiro, Ravena disse que pôde se aprofundar na pesquisa sobre os métodos engendrados por corpos travestis para criar arte.

Nas duas edições, a pesquisadora, que diz rejeitar o papel de professora como detentora única da palavra, também convidou diferentes artistas para dialogar e pensar como evitar a reencenação da violência no país que mais mata pessoas trans no mundo. “Nós entendemos que a violência existe e, em alguma instância, é um disparador de criação, mas não queríamos que ela fosse o objeto final. Como partir da violência para imaginar novos mundos? O que estamos tentando fazer senão isso? Fugir da violência para, a partir daí, criar outros imaginários, onde nossos corpos não sejam mais alvos desse extermínio.”

Linn não, Lina Pereira

Entre as alunas da primeira turma estava a cantora e atriz Linn da Quebrada, que enfatizou desde o início, afirma Ravena, que estava ali como Lina Pereira, aluna — numa situação muito semelhante à da personagem Natasha, a estudante que vive na série “Segunda Chamada”. “Deu para perceber a alegria imensa que ela estava de estar em um espaço de acolhimento em que poderia apenas ser aluna, estudar”, relata a professora de artes cênicas da Universidade Federal do Sul da Bahia e escritora Dodi Leal, uma das convidadas do curso. Uma das poucas professoras trans do ensino superior no país, ela lembra a importância da experiência inédita para muitos dos inscritos.

“Teve um momento do curso em que eu disse: ‘Gente, isso aqui é a universidade, é nisso que eu acredito’”, lembra Dodi. “Efetivamente, a instituição universidade trabalhou para excluir corpos trans, o pensamento e a arte travesti. Muitas pessoas trans não se sentem à vontade de estudar. É o que eu chamo de violência educacional de gênero.”

A universidade trabalhou para excluir corpos trans, o pensamento e a arte travesti. Muitas pessoas trans não se sentem à vontade de estudar

O papel só de expectora no banco escolar durou pouco para Linn, no entanto. Não demorou muito para Ravena convidar a cantora para falar sobre seu processo de criação em uma das aulas. Juntou o estudo da artista sobre trava-línguas, que dá título ao seu último disco, com a pesquisa sobre mantras travestis da multiartista Noá Bonoba. Na participação, lembra Ravena, Linn também falou sobre as armadilhas do mercado e “do que teve de abrir mão para estar nesse lugar de reconhecimento hoje”, um processo que ocorre com muitas artistas trans.

De volta a Uruburetama

Os cursos foram dados por Ravena a partir de Uruburetama, para onde voltou entre abril e outubro deste ano, em meio à pandemia, agora com sua nova identidade, “uma travesti gorda, alta, que chama a atenção”, como descreve. Parte do processo de retorno à cidade, e o contato com memórias que tinha feito um esforço para apagar, inspiraram a artista a gravar o curta “Via das Bonecas”, uma homenagem a crianças e adolescentes trans vítimas da violência, como Pietra Valentina e Keron Ravach, ambas mortas este ano no Ceará.

Detalhe de “Sepultura”, obra composta por 700 lâminas  Isadora Ravena

Em 2020, a artista também publicou o livro “Sinfonia para o fim do mundo”, apresentou performances, expôs a obra “Sepultura” — uma cadeira com 700 lâminas cercada por algodão e sete túmulos de areia — e dirigiu o filme “Cadelinha soviética narra viagem espacial de travesti brasileira”, financiado pela Subprefeitura Friederichshain-Kreuzberg, de Berlim. “A gente travesti não se conforma muito com uma ideia de uma linguagem fechada. É outra característica dessas travecometodologias”, diz a cearense, que utiliza o próprio corpo, com suas inúmeras tatuagens, também como suporte do trabalho.

Em paralelo, Ravena escreve sua dissertação, na qual continua a investigação sobre os processos artísticos em que esteve envolvida nos últimos dois anos e ajuda a construir o que chama de “um emaranhado cartográfico de produções travestis em arte contemporânea”. “Talvez o que há em comum entre elas é que foram por muito tempo inaudíveis. Como estourar os ouvidos para ouvir aquilo que através do tempo é inaudível? Como arrancar os olhos para ver as existências que são apagadas historicamente? Acho que é esse exercício.”

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