“Escrevo para mostrar para outras pessoas trans que há outro caminho”
Autor “Transresistência”, o jornalista Caê Vasconcelos reune histórias de resistência de pessoas trans em diferentes setores do mercado de trabalho
Onze anos depois do lançamento de “Viagem Solitária” do psicólogo e transativista, João Nery (1950-2018), primeiro homem trans a ter acesso a mastectomia no Brasil, podemos ver os frutos da luta por direitos da comunidade transmasculina, como no trabalho do jornalista Caê Vasconcelos. Aos 30 anos e natural da periferia da grande São Paulo, ele enxerga no jornalismo e na arte de contar histórias, a oportunidade de abrir portas para mais pessoas trans ocuparem espaços de protagonismo na sociedade.
Divulgação
No Dia da Visibilidade Trans (29/01), Caê lançou o seu primeiro livro “Transresistência – Pessoas Trans no Mercado de Trabalho” (Dita Livros, 232 págs, R$ 58,90), que em 13 histórias reais nos leva para conhecer a história de resistência de diferentes pessoas trans em diversos setores do mercado de trabalho. São nomes que resistem às estatísticas no país que mais mata pessoas trans, de acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais – Antra.
Motivado ainda na faculdade pelo desejo de criar novas possibilidades nas narrativas jornalísticas sobre pessoas trans, foi nessa época que ele se encontrou enquanto homem trans e decidiu abraçar a luta da comunidade LGBTQIA +. O livro é resultado de seu trabalho de conclusão de curso da graduação. Em entrevista a Gama, o autor divide o processo de escrita do seu livro, traz os desafios profissionais e fala da necessidade de políticas públicas para dar humanidade e empregabilidade para pessoas trans e travestis.
A transfobia atravessa nossos corpos em todas as partes da vida
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G |Em que momento da sua formação você passou a querer pautar no seu TCC as questões da comunidade trans e travesti?
Caê Vasconcellos |Entrei na faculdade com um olhar voltado para as questões dos direitos humanos. Sou de uma família periférica e jamais imaginei que pudesse fazer universidade, ser jornalista. Em 2015, aconteceram duas coisas diferentes que pra mim fizeram sentido como uma coisa só: eu estava assistindo “Orange is the New Black”, que foi a primeira série da Netflix com uma atriz trans, a Laverne Cox. Foi na mesma época que viralizou a violência contra a Verônica, que ficou conhecida pela violência que sofreu por dois agentes penitenciários, que espancaram e tiraram fotos, viralizando nas redes sociais. Foi um choque quando vi. Lembro de um texto que eu li na Ponte Jornalismo, do Renan Quinalha, uma grande referência para as questões LGBT, e o texto explicava como aquela violência contra a Verônica tinha sido transfobia, racismo e relacionda a questões do patriarcado, então eu pensei: “Porque eu não estou olhando para as pessoas trans? “Quero entrar nesse universo!”. Então decidi focar em pessoas trans e meu orientador me direcionou para pensar sobre mercado de trabalho. Achei que seria ótimo porque quando falamos da exclusão de pessoas trans do mercado de trabalho tem que pensar a vida inteira dessas pessoas. Como foi a vivência em casa, na escola — a transfobia atravessa nossos corpos em todas as partes da vida. A violência contra a Verônica me fez perceber que eu precisava urgentemente ter pessoas trans ao meu redor, e entender esse universo da transgeneridade.
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G |Qual é a real visibilidade trans sobre a qual devemos refletir neste momento mas também o ano inteiro?
CV |Em 2017, eu não conhecia nenhuma pessoa trans, então quando fui me aproximando do movimento, pensei: “Eu preciso vestir essa camisa!” Principalmente enquanto homem trans, a gente já é tão invisibilizado… Acho que a visibilidade real acontece quando a gente está lutando por todes! Tem que ser coletiva a luta por políticas públicas. Eu por exemplo não menstruo vai fazer 2 anos agora em junho, mas estou num lugar de visibilidade onde as pessoas me ouvem. Preciso falar por exemplo que tem muitos meninos que menstruam, que escolhem menstruar, então a gente tem que falar de pobreza menstrual, de aborto, de gravidez. No dia que o Bolsonaro vetou [a distribuição gratuita] de “absorvente feminino” foi um tweet meu que fez eles eles mudarem o texto para pessoas que menstruam. Então é entender que esse lugar de visibilidade tem que ser por todo mundo, não só pensar em mim, mas em todas as pessoas que não tem esse espaço. Tem que ser coletivo.
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G |Qual dos perfis do livro te marcou mais durante o processo de escrita?
Caê Vasconcellos |Foram 13 histórias que eu conto, incluindo a minha história, e todas elas me marcaram de uma forma diferente, porque todas as pessoas que eu entrevistei se abriram de forma profunda por se sentirem confortáveis. […] A Luiza é uma das pessoas mais especiais porque eu a conheci no Metrô e ela topou contar a história dela pra mim. Ela me recebeu na porta do trabalho dela, conversou comigo, me deixou acompanhá-la até em casa, e foi ali que eu percebi que tinha que ser por esse caminho: ouvir as histórias das pessoas. Sou apaixonado pela história de um casal no livro, pois foi a primeira vez que descobrir que existiam casais transcentrados; fico muito honrado em contar a história da Erika Hilton [vereadora de São Paulo pelo Psol], a travesti preta mais bem votada em uma das casas parlamentares mais importantes do país; sendo da periferia, sou muito feliz de ter conhecido o Pedro, que é outro menino trans, e eu ajudei ele na transição e ele me ajudou na minha. Sou apaixonado por todas as histórias!
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G |Algo que me chamou muita atenção no livro é você destacar no início de cada capítulo o nome social e os pronomes dos personagens. Como você reflete sobre esse cuidado de destacar os pronomes antes de iniciar as histórias?
CV |A ideia era mostrar que tudo bem você perguntar os pronomes de alguém. Foram várias conversas que eu tive com a editora, porque eu queria trazer pessoas não-binárias, que usassem o pronome neutro, e eu perguntei: “Isso vai ser de boa para vocês?”. E a resposta foi positiva. Por isso no perfil do Mar eu faço questão de colocar que seus pronomes eram elu/delu, para mostrar como é fácil escrever com a linguagem neutra. Eu não tive nenhum problema em escrever: nos momentos que ficava estranho usar o ‘e’, substitua por ‘a pessoa’, e também tentava não usar pronome. Foi uma provocação e uma crítica à sociedade, quando dizem que não dá para usar a linguagem neutra. Minha avó tem 70 e poucos anos, estudou só até a 4ª série, e sabe que se não der para me chamar de Caê ou de neto, dá para me chamar de meu amor, meu bem, e isso é neutro. Todo mundo pode ser meu bem, ou meu amor, e isso é uma linguagem neutra!
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G |Como você enxerga a importância da visibilidade: você no jornalismo, a Linn da Quebrada no BBB? Como isso impacta a mentalidade da sociedade?
Caê Vasconcellos |Eu sou aquela pessoa que acredita que a representatividade importa. Quando vi que a Linn da Quebrada estava no BBB eu fiquei preocupado com o que ela iria viver lá dentro, a gente sabia que ela ia sofrer violências, mas eu fiquei tranquilo porque pra mim ela é uma pessoa muito pronta para nos representar. A gente faz política ao sair na rua, ao assumir quem a gente é. Quando uma pessoa se assume trans, ela já está sujeita a transfobia, sendo passável ou não. A Lina [Lina Pereira dos Santos, nome oficial da cantora] é um ótimo exemplo: ela tem o pronome “Ela” tatuado na testa e as pessoas fazem questão de chamá-la no masculino. É a transfobia pela transfobia, não existe outra palavra. É a cisgeneridade querendo dizer se a gente é ou não o que dizemos ser. Fazia dez anos que o BBB não tinha a presença de uma pessoa trans, a Lina é a primeira travesti; eu fui o primeiro homem trans da bancada do Roda Viva; a Erika a primeira pessoa trans a ser entrevistada. Entrei na ESPM agora e sou a primeira pessoa trans da redação a cobrir esportes numa emissora tão grande e global. Agora em 2021 e 2022 as primeiras pessoas trans estão chegando nos espaços, e isso é muito importante. Tenho que agradecer as pessoas que tiveram que morrer para eu estar aqui hoje, é preciso pensar que se eu abrir uma porta é porque quero que outras pessoas trans entrem. Pensando na Neon Cunha, que escreveu a orelha do livro: se hoje a gente consegue retificar o nosso nome, foi porque a Neon teve que pedir para o estado brasileiro matar ela [a ativista pediu morte assistida caso a justiça não reconhecesse seu gênero]. Quantas pessoas tiveram coragem de se levantar e de arriscar a própria vida para que hoje a gente pudesse avançar?
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G |Qual a principal mensagem do “Transresistência” nesse momento da história da comunidade trans e travesti?
CV |Eu lembro que a Débora Lopes,do Intercept Brasil, estava na minha banca do TCC e ela me perguntou: “Pra quem você escreveu esse livro?” Quando tomei essa decisão estava escrevendo para pessoas trans perceberem que elas podem chegar até onde elas quiserem, que a gente pode sonhar alto, sonhar que a pessoa mais bem votada de uma eleição é uma travesti preta, e muito mais. Eu comecei a escrever para mostrar para outras pessoas trans, que há outro caminho que não seja a morte, a marginalidade, mas também fui percebendo ao longo desses que o livro responde a pergunta “como posso ser um aliado?” Lê aqui esse livro, entenda que temos vivências diferentes. Eu fico muito feliz que o livro conseguiu trazer isso de vários lugares, várias vivências, tem gente na universidade, tem gente que não; tem gente que escolheu passar pela prostituição, tem gente que não. São várias formas de mostrar como a gente é potente, quanto cada história é única e lembrar que tem que ser coletivamente!