Home office: benefício trabalhista ou solidão para o trabalhador? — Gama Revista
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Isabela Durão

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Reportagem

Home office: benefício trabalhista ou solidão para o trabalhador?

Muitos amam, mas há quem odeie o trabalho remoto. Gama ouviu profissionais dos dois times, além de um antropólogo, que deu um panorama sobre os efeitos do formato na sociedade hoje

Ana Elisa Faria 16 de Junho de 2024

Home office: benefício trabalhista ou solidão para o trabalhador?

Ana Elisa Faria 16 de Junho de 2024
Isabela Durão

Muitos amam, mas há quem odeie o trabalho remoto. Gama ouviu profissionais dos dois times, além de um antropólogo, que deu um panorama sobre os efeitos do formato na sociedade hoje

Modo de trabalho que salvou milhares de empresas e empregos durante a pandemia de covid-19, o home office perdura até hoje em diversas áreas e companhias. Para muitas pessoas, o formato tornou-se um benefício trabalhista, pela flexibilidade de horário, pelas intermináveis horas no trânsito que foram trocadas por mais tempo de qualidade com a família, pelo conforto de estar em casa, pela economia com combustível e alimentação ou até — em muitos casos — para trabalhar mais.

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Já para outra parcela de profissionais, trabalhar longe da chefia e dos colegas diminui a curva de aprendizagem, dificulta a criação de uma robusta rede de contatos — o famoso networking —, fundamental para o crescimento, e, ainda, tem gerado, segundo especialistas, uma epidemia de solidão entre trabalhadores.

Isolados ou juntinhos na firma, o fato é que os boletos chegam para todos, mas a maneira como vendemos a nossa mão de obra leva a um debate atual e importante sobre o futuro do trabalho. A fim de entrar na discussão, Gama conversou com integrantes dos dois times — os que amam e os que odeiam o modelo —, além de um antropólogo, que deu um panorama sobre os efeitos do regime remoto na sociedade.

Maternidade office

Trabalhar cansa, mas as mães estão ainda mais exauridas por ter de conciliar a carreira com o trabalho do cuidado — da casa, dos filhos, dos familiares. O home office, para esse grande grupo de mulheres, acaba sendo a saída mais viável para que elas consigam dar conta de tudo. Jéssica Camargo, 32, é um exemplo disso.

Formada em engenharia de produção, ela trabalhava presencialmente em uma multinacional do setor industrial das 6h às 14h, ganhava bem, tinha ótimos benefícios e enxergava boas perspectivas ali.

O cenário, entretanto, foi mudando quando o seu filho nasceu e a rotina ficou cansativa demais. “Infelizmente, tive a má sorte de ter uma gestora focada 200% no trabalho, sem vida social alguma, e que não entendia as minhas novas demandas”, diz.

Jéssica conta situações que a fizeram desistir desse emprego e buscar vagas mais flexíveis e empáticas à maternidade. Em uma das ocasiões, no período de adaptação do seu bebê na escola, ouviu da chefe que quem tinha de se adaptar à empresa era ela, e não a empresa às suas necessidades e aos seus horários. “Fui ficando para baixo, tive crises de ansiedade e perdi o interesse no que fazia, mesmo enxergando que teria um futuro bacana lá.”

Nesse meio-tempo, surgiu a oportunidade de trabalhar em home office numa agência de marketing. Por indicação de uma amiga, há pouco mais de um ano a engenheira mudou totalmente de área e, hoje, é customer success — responsável por garantir um alto nível de desempenho dos clientes.

Ganho menos, baixei o meu nível profissional, mas tenho paz e qualidade de vida

Atualmente, tem um salário abaixo do que recebia antes, mas a flexibilidade a ganhou. Jéssica exerce suas atividades das 9h às 18h, porém, consegue organizar a agenda para buscar o filho na escola diariamente às 16h e, de quebra, encaixou a academia na pausa para o almoço. “No fim da tarde, ele fica aqui comigo brincando enquanto eu vou trabalhando.”

“O dia a dia está tranquilo. Eu ganho menos, baixei o meu nível profissional, mas tenho paz e qualidade de vida”, assegura. Para se adequar às novas atribuições, ela faz cursos livres e uma pós-graduação em gestão de projetos, que a deixa mais próxima da engenharia. Assim que o filho estiver “maiorzinho” — ele completa três anos neste mês de junho —, Jéssica pensa em procurar um trabalho que a remunere melhor. “Pode até ser algo híbrido”, comenta.

Economia de tempo no trânsito

Rafael (nome fictício, a pedido do entrevistado), 22, cursa direito e trabalha há quase dois anos — foi de estagiário a celetista — no setor contencioso de um escritório de advocacia que, desde a pandemia, opera remotamente.

A empresa tem um espaço físico no bairro de Cerqueira César, região central da capital paulista, à disposição para eventuais reuniões e para funcionários que queiram trabalhar dali em alguns dias da semana. Mas o jovem soma nos dedos de uma mão as vezes em que esteve na sala: ou para se reunir com clientes ou para conhecer o restante do time. “A equipe vai mudando e tem épocas em que o pessoal quer se encontrar para se ver pessoalmente”, fala.

Antes da adoção do regime à distância — que Rafael não presenciou, mas soube por colegas —, semanalmente a turma do escritório saía para um happy hour e se conectava para além do trabalho. O estudante, no entanto, não vivenciou esse tempo e conversa apenas com dois superiores. “Um ou outro colega recém-chegado às vezes me manda mensagem, só que eu nunca sei até onde ir, o que posso dizer, se dá para confiar. É sempre num tom formal, distante”, relata.

Ele assume sentir falta de uma troca maior: “Acho importante e necessário conhecer pessoas da nossa área e até de outras. Todo o network que eu tenho fiz na faculdade”. Ainda assim, Rafael não deixaria o home office.

Com sorte, sem trânsito, eu levaria por dia duas horas para ir e duas para voltar

E o principal motivo é por morar em outra cidade, em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo. “Com sorte, sem trânsito, eu levaria por dia duas horas para ir e duas para voltar. Não seria um impeditivo para aceitar o trabalho, mas dificultaria bastante a minha vida. Porque eu sei de onde venho e não é fácil, não há muita opção. Tanto que tem gente que passa muito mais tempo se locomovendo do que eu passaria”, resume.

Pouco aprendizado e frustração

Vemos que o home office também pode trazer dificuldades, sobretudo para quem está começando no mercado de trabalho. É o caso do estagiário de jornalismo Tulio Gonzaga, 20, que trabalhou online por nove meses em uma redação e sentiu que a experiência remota prejudicou o seu aprendizado e suas prováveis conexões.

O rapaz acredita que o contato próximo com supervisores e colegas teria acelerado a sua curva de aprendizagem, permitindo, por exemplo, uma melhora no seu texto e uma integração mais rápida às dinâmicas da equipe e ao funcionamento das ferramentas de trabalho. “Aprendi bem mais lentamente sobre os processos do dia a dia e muita coisa fui descobrindo por conta própria. Quando o ambiente é totalmente novo, estar longe é um obstáculo para o conhecimento mais aprofundado”, confessa.

Depois dessa vivência um tanto frustrante, Gonzaga buscou um estágio que fosse, pelo menos, híbrido — e conseguiu. Fez questão de estar presencialmente durante toda a primeira semana e hoje percebe que o seu crescimento profissional é muito maior.

Do receio às piadas de escritório

Darlin Macedo, 31, é designer gráfico e trabalha como analista em um banco em Brasília, no Distrito Federal. Quando o home office foi instituído, no auge da pandemia, ele teve certo receio com o formato por achar que não renderia de casa, mas estava enganado. Não só produzia mais e melhor como o experimento rendeu frutos, a página no Instagram “Home Office É Ruim”, lançada em 2021 e que já tem quase 79 mil seguidores.

No perfil, Macedo posta frases irônicas em relação ao modelo, como: “Home office é ruim, bom mesmo é passar horas do dia perto de gente negativa e puxa-saco” ou “Home office é ruim, bom mesmo é trabalhar presencial e fazer reunião online com quem está em home office“.

Apesar de agora amar poder trabalhar no conforto do lar — atualmente, o designer vai para o escritório duas vezes na semana —, ele reconhece a importância do contato humano. “Recebo vários relatos de seguidores que se sentem solitários trabalhando em casa.”

Recebo relatos de seguidores que se sentem solitários trabalhando em casa

Macedo admite que o meio-termo pode ser uma solução equilibrada, embora pessoalmente prefira o home office. “Mas gosto do híbrido, que é quando faço o trabalho de campo para a página. Assim fica um pouquinho mais leve ir para o escritório”, revela.

Epidemia de solidão no trabalho

Antropólogo do Grupo Consumoteca, Michel Alcoforado traça um panorama sobre os efeitos do home office prolongado tanto para a sociedade quanto para as empresas. Ele explica que vivemos, no Brasil e no mundo, uma epidemia de solidão no mercado de trabalho.

Para se ter ideia, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) divulgados em 2023 mostraram que 9,5 milhões de brasileiros trabalharam remotamente no país no ano anterior, em 2022.

Os impactos desse isolamento laboral são amplos e diversos. De acordo com estudos, trabalhadores que se sentem solitários podem ter um desempenho mais baixo do que aqueles que vão para a firma diariamente, além de apresentarem taxas maiores de absenteísmo e menor produtividade, fatos que geram às economias nacionais custos bilionários.

“O trabalho sempre foi uma arena de sociabilidade. E a pandemia exacerbou a solidão que já era fomentada pelas redes sociais e plataformas digitais”, analisa Alcoforado. O especialista destaca que, enquanto o home office traz benefícios como a eliminação do tempo de deslocamento, mais bem-estar e tempo com a família, esse modo de trabalhar também pode agravar o sentimento de isolamento. “As conversas no ambiente de trabalho, mesmo que superficiais, são fundamentais para a nossa sensação de pertencimento e conexão”, argumenta.

Alcoforado ressalta ainda a diferença entre dois tipos de relações interpessoais: as efêmeras, que ocorrem em encontros breves e superficiais — como a famosa conversa de elevador —, e as profundas — elas podem ocorrer até mesmo na hora do cafezinho —, que exigem mais envolvimento, interesse e escuta.

“No home office, predomina o primeiro tipo de relação, focada em pautas específicas e agendas, o que pode fazer crescer a solidão dos trabalhadores”, desenvolve.

Funcionários solitários confiam menos nos outros e têm menos habilidades sociais

E a produtividade, conforme elucida, está diretamente ligada à capacidade de construir vínculos de parceria e confiança, algo que o trabalho remoto tende a dificultar. “Funcionários solitários confiam menos nos outros e têm menos habilidades sociais, impactando diretamente no desempenho e na colaboração dentro das empresas.”

O formato trabalhista híbrido, já bastante difundido pelas companhias, pode ser uma saída para o cenário atual, mas Alcoforado alerta: “O modelo híbrido é muitas vezes imposto pelas empresas, que decidem os dias e horários de trabalho presencial. Esse modelo impositivo de comando e controle não faz mais sentido, pelo contrário, gera desgaste”.

Ele propõe que as organizações desenvolvam novas arenas de encontros significativos, valorizando atividades que promovam a conexão entre funcionários para além das tarefas diárias. “Viagens de trabalho, estratégias de team building e rodas de conversa são exemplos de como podemos criar vínculos mais profundos no ambiente profissional”, sugere.