Quando a paixão pelo trabalho atrapalha
Como saber se as obrigações profissionais eclipsam a vida pessoal? Especialistas falam sobre a relação entre o apaixonamento pelo trabalho e o burnout
Trabalhar pode cansar, exaurir, estressar e desgastar até causar um esgotamento – físico e mental – paralisante, conhecido como síndrome de burnout, distúrbio que em 2022 passou a ser considerado um fenômeno ocupacional por reunir sintomas relacionados ao emprego ou ao desemprego, de acordo com o CID, a classificação internacional de doenças. Em algumas pessoas, no entanto, o trabalho também provoca paixão, entusiasmo exacerbado; vicia. Como saber, então, que a prática diária do nosso ofício ainda está em um limite salutar? Quando o trabalho atrapalha os outros aspectos da vida, como as relações de amizade, amorosas, a parentalidade, os hobbies?
Não há respostas simplistas. Bruno Chapadeiro Ribeiro, psicólogo e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), ajuda a entender essas questões explicando primeiro que o burnout, ou a síndrome do esgotamento profissional, adentra um nível patológico, com agravos tanto à saúde física quanto à mental, e deve ser percebido como um mal institucional e social, não apenas individual, do trabalhador.
“O burnout tem sido tratado como algo relacionado ao trabalho, mas é importante pontuar que ele é posto em um nível individual, como se fosse responsabilidade do trabalhador não se esgotar. E, obviamente, existe uma dimensão pessoal, do envolvimento do indivíduo com o trabalho, mas esse envolvimento, na verdade, vem de uma ordem subjetiva; a pessoa se envolve muito com o trabalho, se importa bastante, e isso faz com que ela sinta mais pressões. Por isso, o burnout tem que ser visto por uma ótica organizacional, mais ligada à gestão do trabalho mesmo, do que a aspectos individuais“, diz.
Ribeiro salienta que, devido às condições e à organização do trabalho, a pessoa pode acabar passando da dedicação e da paixão pelo que faz, para um nível patológico. Soma-se a isso o momento pelo qual a sociedade se encontra: de ode ao trabalho, da produtividade em excesso, da tecnologia que nos deixa à disposição a qualquer hora, da dificuldade de aproveitar o tempo livre, colocando o ócio como algo ruim. “Inclusive, a palavra negócio vem do grego, ‘negação do ócio'”, lembra.
Deus lhe pague
Todos esses elementos que, hoje, fazem parte do mundo do trabalho, segundo Ribeiro, têm impactado as outras esferas da vida das pessoas.
Para exemplificar o que é deixado de lado pelas funções profissionais, o psicólogo cita um trecho da música “Deus lhe Pague”, de Chico Buarque: “o amor malfeito depressa, fazer a barba e partir”. “O amor nas relações, quaisquer que sejam elas, não necessariamente apenas as relações eróticas, mas também as parentais, por exemplo, é um amor que está sendo feito e compartilhado de qualquer jeito, rapidamente. E aí o trabalho entra como o espaço onde a gente passa a maior parte do nosso tempo de vida, do nosso dia, da nossa semana.”
E, mesmo fora do ambiente profissional, o trabalhador continua preocupado e focado no trabalho. “Ouço várias reclamações de alunos e pacientes que dizem que, mesmo no momento em que estão assistindo a uma série, seguem preocupados com o trabalho, com as entregas”, destaca Ribeiro. “A experiência do relaxamento, da fruição, é praticamente criminalizada pelo próprio indivíduo, que internaliza que só vai ser benquisto no trabalho se ele for essa pessoa de destaque, essa pessoa produtiva, essa pessoa que se mantém empregada e empregável. É todo um discurso que a gente compra.”
Dedicar o tempo, à família, ao trabalho e aos cuidados pessoais não está dando mais, não está cabendo. Vinte e quatro horas não estão sendo mais suficientes. É difícil apontar quem não esteja vivendo assim
Esse ciclo leva as pessoas a não fazerem nada bem-feito, ressalta Ribeiro. “É como diz o célebre livro de [Antoine] Saint-Exupéry [“O Pequeno Príncipe”]: ‘Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez tão importante’. Dedicar o tempo, à família, ao trabalho e aos cuidados pessoais não está dando mais, não está cabendo. Vinte e quatro horas não estão sendo mais suficientes. É difícil apontar quem não esteja vivendo assim.”
A psicanalista e colunista da Gama Maria Homem pondera que o vício e a paixão pelo trabalho, de alguma maneira, também podem ser bons. “Porque é o que move. Assim como a gente pode estar alienado da gente mesmo, estar em um caldo morno, aquele calor que não é tão bom, mas também não é tão ruim, aquela coisa confortável, mediana, meia-boca que você vai, vai desenfreado.” Ela, entretanto, ainda faz um contraponto. “Mas, por outro lado, você esqueceu de todo o resto. Você está tão apaixonado por aquela paixão que só ela interessa.”
Phármakon
Conforme explica a psicanalista, a pessoa fica tão encantada por essa paixão que não há espaço para outras conexões. “Ela deixa de ver as várias outras substâncias que existem na vida, as outras drogas.” As drogas citadas, no caso, vêm do conceito de phármakon (da qual originou-se a palavra farmácia, associada às práticas de cura), explanado por Maria Homem como a droga que, usada na quantidade certa, pode salvar a pessoa, mas se administrada em uma quantidade maior, é capaz de matar.
“E a paixão é o quê? É quando você se encontra com o seu fármaco, é o que te faz mover, ter aquela força, é o que te leva a produzir, a fazer, a construir uma obra que trabalhe a diferença, uma disciplina, uma rotina. O trabalho do mundo dos mercados, do mundo do esporte, do picadeiro, do conhecimento.”
Ela diz, ainda, que estando nesse turbilhão de sentimentos pelo trabalho, todas as outras esferas da vida são destruídas, reduzidas. “Dá para fazer uma equivalência desse apaixonamento pelo objeto droga, aquele shot de prazer. Como dizemos na clínica [psicanalítica], também é um apaixonamento narcísico por uma imagem de si mesmo, uma imagem ultra valorizada, em que nada mais importa. Não tem filha, mulher, sociedade porque eu estou parado nessa paixão, estou enfeitiçado por esse instante.”
Vestindo a camisa
Psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Christian Dunker expõe um lado traiçoeiro da relação paixão-trabalho. “Frequentemente, confundimos aqueles que obtêm o sucesso, que têm uma carreira gloriosa, e ressignificam o próprio trajeto para dizer que sempre foram apaixonados pelo que fazem. Aquela paixão que se mostra num engajamento produtivo de trabalho, de atenção e dedicação que muitos imaginam ser a fonte ilimitada de sucesso.”
“O que eu quero sinalizar com isso? É mostrar que existe uma espécie de exploração dos nossos apaixonamentos que levam a um estado meio patológico. Apaixonada, a pessoa não pensa direito, tem uma certa regressão cognitiva, tudo fica mais intenso, o mundo fica mais brilhante, mais interessante. Bom, e as técnicas específicas de gerenciamento acabam estimulando isso, porque é uma maneira de incutir e reivindicar um estado de sofrimento para aumentar o desempenho, a força”, descreve.
Dunker relembra que entre as décadas de 1980 e 1990 havia a ideia de que um bom funcionário seria aquele que vestia a camisa da empresa, em um discurso que ia do office boy ao presidente da firma. “É aquela pessoa que se casa com a instituição, que tem uma forte ligação com o lugar, com aquele coletivo, com a missão daquela empresa. E o que aconteceu no mundo de lá pra cá? A pulverização das relações de trabalho, a precarização.”
Assim, de acordo com Dunker, “o trabalho virou um projeto, uma demanda, uma ocupação intermitente.” “Qual é a forma, então, de você conseguir vincular [alguém ao trabalho] pela paixão, e não pelo amor? Porque uma paixão, se você não souber mais ou menos administrar, pode ser substituída por outra paixão, e por uma outra paixão. Isso é mais compatível com o esquema de carreira. Se não estou satisfeito, não estou apaixonado, está errado. Então, vou procurar outra empresa, outra vinculação, outro projeto profissional, porque é como se eu tivesse de estar em plena paixão o tempo todo para ser um bom trabalhador, um excelente profissional. No fundo, o que a gente está querendo filtrar com essa associação é um elemento que também é produzido por essa nova forma de estar no trabalho, que é a vinculação pessoal de alguém com aquilo que está realizando. Nossa confiança com quem está autenticamente envolvido aumenta. Isso vale para os funcionários, fornecedores, para o chefe. Então, quando isso acontece, é o fator que acaba justificando por que tantas vezes acabamos nos apaixonando pelo trabalho.”
A droga (boa) da paixão pelo trabalho
Roberta de Menezes, a Robs, tem 29 anos, é produtora artística e pessoal apaixonada pelo que faz: acompanhar um jovem músico famoso (que prefere não citar o nome) em shows, entrevistas e compromissos pelo Brasil e pelo mundo. Há um ano, ela vive uma rotina intensa de trabalho, e que, praticamente, resume-se apenas ao seu ofício. Robs garante que é feliz e que o universo da música “sempre foi o seu rolê”. “A paixão da minha vida pessoal se une à paixão pela carreira”, conta.
Embora algumas situações a deixe triste, como ter de deixar as caixas da mudança que fez há muitos meses fechadas no novo apartamento por falta de tempo de uma arrumação; a volta do cachorrinho para a casa dos pais por falta de tempo para se dedicar ao pet; dates cancelados em cima da hora; e a ausência em datas comemorativas de amigos e familiares, Robs fala que entende o dia a dia enlouquecido como uma boa fase profissional. “Quero aproveitá-la ao máximo”.
Além disso, a produtora garante que cuida para que essa dedicação extrema não chegue ao burnout e à ansiedade. “Faço terapia porque sei que é importante eu conseguir me manter bem. É óbvio que em qualquer lugar, com qualquer pessoa, há momentos mais difíceis que você não quer estar ali, mas eu cuido para não ultrapassar a linha do que é saudável. Então, quando eu posso desligar, eu desligo. É difícil, mas é possível”, afirma.
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