Como ensinar honestidade para as crianças — Gama Revista
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Repertório

Como ensinar honestidade para as crianças

Psicólogas e escritores falam sobre como percorrer esse caminho, sem moralismo e com fantasia

Ana Mosquera 24 de Julho de 2022
Divulgação/ "O Que É Preciso Pra Ser Rei?"

Como ensinar honestidade para as crianças

Psicólogas e escritores falam sobre como percorrer esse caminho, sem moralismo e com fantasia

Ana Mosquera 24 de Julho de 2022

“Se mentir, o nariz cresce.” “Se mentir sempre, quando falar a verdade, ninguém vai acreditar em você.” São essas e outras máximas que adultos fazem ecoar nas cabecinhas infantis desde os mais jovens anos. Falar de verdade e mentira, honestidade e desonestidade, entretanto, é um processo que está longe de ser exato e está repleto de nuances.

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“Na primeira infância, a mentira entra num lugar de proteger de uma bronca, de te frustrar, de não ter coragem de pedir algo. A criança também está testando, vendo até onde ela pode ir na relação“, diz a psicóloga, psicanalista e escritora Fê Lopes.

Dar o exemplo, construir junto, abrir espaço para o diálogo e as negociações, responder apenas o que a criança perguntar e não tratar as mentirinhas como desvio de caráter são passos que psicólogos e psicanalistas sugerem para trabalhar com os pequenos em casa, na escola ou em outros espaços de convívio social.

É sobretudo nessa fase até os seis anos que o adulto atua como mediador da realidade e ensina os códigos sociais para estar no mundo, sem bancar o “dono da verdade”. “A criança está ali experimentando junto ao adulto. A gente não é só modelo, pois também continua se desenvolvendo“, diz a psicóloga e educadora Irene Monteiro, do Instituto Emília.

Assim como faz parte do pacto civilizatório mostrar que morder o amigo ou dizer o que quer não são vontades que cabem sempre, é importante deixar claro quando os coleguinhas ou o irmão mais velho podem estar tirando vantagem dessa criança.

Em casos mais graves, ser honesto sobre os riscos que os pequenos correm pode evitar que eles sofram algum tipo de abuso físico ou moral ou, caso isso venha a acontecer, que possam ter o benefício da honestidade para denunciar o caso.

Viver em sociedade é viver brincando junto, com honestidade

O racismo, por exemplo, atravessa a questão da honestidade de forma cruel. Há uma grande diferença entre uma criança negra e uma branca abrir um pacote de biscoito no supermercado, antes de chegar ao caixa, cita Lopes, co-criadora do Curso de Introdução ao Letramento Racial, do Instituto Aripe.

“A gente tem que ensinar essas crianças que elas não podem abrir o biscoito no mercado. Ao mesmo tempo, é importante que ela saiba que é racismo e saiba nomear que é racismo”.

Abrir o jogo sobre assuntos como sexo, morte, política, adoção e separação também é delicado, por isso é tão importante cultivar esse ambiente de honestidade e contar com uma rede de apoio para ajudar a lidar com as explicações.

“É preciso um ajuste fino entre a informação que eu dou e o que a criança está capaz de escutar naquele momento. Às vezes a pergunta não é como faz o nenê, é só por onde o bebê nasce”, comenta Lopes.

Para Monteiro, vale se apoiar na máxima que permeia a educação, “A gente responde a pergunta que a criança faz”, sem esquecer que esse ser é dotado de percepção própria. “Quando menos eu dou de ‘texto’, mas eu deixo ‘buraco’ para essa criança preencher com fantasia”, acrescenta Lopes.

No mundo do faz de conta, falar de realidade

Assim como o adulto, a literatura também é mediadora da realidade, e a honestidade, bem como outras virtudes que caminham ao seu lado, ganha força nas obras ficcionais para o público infantil e infanto-juvenil.

Seja para falar de luto, de política ou do sincero encontro consigo mesmo, autores nacionais e internacionais conseguem conversar com as crianças por meio do encantamento e sem didatismo. A fantasia, nesse caso, funciona como recurso, e não no sentido da alienação.

“A criança vai experimentando muitas nuances do que é verdade e mentira ao longo da vida. Ela vai entendendo o que é fábula, ficção e mito, e que não são propriamente mentiras, mas são do campo da imaginação, da fé”, diz o escritor, tradutor e jornalista, Leo Cunha.

Em seu novo livro “O Que É Preciso Pra Ser Rei?” (Pequena Zahar, 20 págs., 2022), escrito com Tino Freitas, utiliza-se a metáfora do rei ideal para falar de partilha, bondade, empatia, comunhão, diálogo, coragem e honestidade – fundamentais para o bem-estar coletivo.

“No início do livro, há um rei brincando sozinho. Ao final, ele e outras crianças brincam juntos. Viver em sociedade é viver o maior tempo possível brincando junto, com honestidade”, diz o escritor, jornalista e contador de histórias, Tino Freitas.

Em tempos de negacionismo da ciência e autoritarismo, falar de honestidade na política por meio dos livros infantis tem se tornado comum. Prestes a ser lançado pela Editora do Brasil, “Haicais do Chefe”, de Alexandre de Castro Gomes e Jean-Claude Alphen, traz em cada página um coletivo de animais com seu chefe e as dicas do que é preciso para ser um líder justo.

”Se não for honesto, e pegar o que é dos outros, enfrenta protesto” é um dos poemas curtos que compõem a obra.

“A honestidade na arte é uma afirmação política. Concordo com o Ezra Pound, que os artistas são as antenas da raça, e isso é uma responsabilidade imensa”, diz a jornalista, escritora e pesquisadora do livro para a infância, Renata Penzani.

Em sua obra, “A Coisa Brutamontes” (Cepe, 2018), ela aborda a morte e o luto, além da amizade entre personagens de diferentes gerações, e reconhece as dificuldades de tratar esses assuntos na vida real: para o próprio adulto, e do adulto com a criança.

Assumir que o fim está em tudo o que começa é a honestidade primeira que podemos ter. Por isso eu escolhi o funeral como a primeira cena do livro, como se dissesse: vamos elaborar juntos a partir daqui, eu também não entendo”. É a história da construção conjunta citada por Monteiro.

Apesar de coletiva, a ideia da honestidade para o indivíduo é algo que vai atravessar toda a existência, e vai se transformando ao longo dos anos, a partir das experiências pessoais, das relações estabelecidas, do espírito de cada tempo.

Em “Nossa Bicicleta” (Edições SM, 2020), o escritor Guilherme Semionato dá voz ao menino Daniel, que vende escondido a bicicleta da família e, na elaboração do arrependimento, encontra sua própria história. “A verdade e a honestidade do livro estão nesse processo de autodescoberta, e não na simples confissão de que ele vendeu um objeto que não era dele e na sua jornada para consertar as coisas”.

“O desafio da literatura é abordar a honestidade sem virar uma moralização cristã, porque não é disso que se trata, e somos feitos de contradições”, ressalta Lopes. Afinal, os adultos não sabem de tudo e precisam se colocar sempre em dúvida para estabelecer relações mais francas, nas palavras de Penzani – seja consigo, com o outro, com a criança.

A construção da honestidade para o bem-estar coletivo é como o longo trajeto que o pai do narrador de “Nossa Bicicleta” percorre em sonho: um caminho que se traça junto, mas que é único e revelador para cada indivíduo. Sem moral da história.

Gama selecionou uma série de livros que abordam o tema da honestidade.

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    “O Que É Preciso Pra Ser Rei?”

    Tino Freitas e Leo Cunha (Pequena Zahar, 20 págs., 2022)

    Com perguntas e conselhos, o livro aborda virtudes importantes para um rei governar para e com o povo, como a honestidade, a empatia, a compaixão e a coragem. As ilustrações de Fê complementam o texto, mostrando como o governante solitário fica rodeado de amigos quando assume o papel de líder justo.

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    “Haicais do Chefe”

    Alexandre de Castro Gomes e Jean-Claude Alphen (Editora do Brasil, 40 págs., 2022)

    A obra, que chega às livrarias em agosto, traz um coletivo de animais por página, com destaque para seu líder e um haicai sobre como ser um bom chefe. “Seja ele (ou ela) o capitão do time de futebol, o presidente da turma, o síndico do prédio ou o responsável pela nação”, nas palavras do autor, Alexandre de Castro Gomes.

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    “Nossa Bicicleta”

    Guilherme Semionato (Edições SM, 2020)

    Vencedor do prêmio Barco a Vapor (2020), conta a trajetória de Daniel, um jovem que decide vender a bicicleta enferrujada da família para comprar um estojo especial com o dinheiro. O arrependimento vem logo no início, e a saga para recuperar a bicicleta se transforma na descoberta da própria história do personagem narrador.

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    “A Coisa Brutamontes”

    Renata Penzani (Cepe, 2018)

    Finalista do Prêmio Jabuti (2019), a obra, narrada pelo protagonista Cícero, aborda a elaboração do luto por uma criança de onze anos, que se depara com a morte de uma vizinha idosa. Questionamentos sobre como uma criança reage à morte e as diferenças intergeracionais compõem a narrativa ilustrada por Renato Alarcão.

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    “A Verdade Segundo Arthur”

    Tim Hopgood (Brinque-Book, 2018)

    O livro conta a história de um episódio na vida de Arthur, um menino que, não acostumado a mentir, resolve um dia desobedecer a mãe e dar uma volta na bicicleta do irmão mais velho. Ele acaba riscando um carro e, para se safar do erro, inventa uma série de desculpas fantásticas e mirabolantes que não convencem os amigos.

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    “Eleição dos Bichos”

    André Rodrigues, Larissa Ribeiro, Paula Desgualdo e Pedro Markun (Companhia das Letrinhas, 2018)

    Outra obra infantil que aborda a honestidade na política. Em “Eleição dos Bichos”, os animais  se preparam para novas eleições, cansados que estão dos abusos do “rei da selva”, o leão. Para isso, precisam aprender sobre democracia e, assim, o livro ensina as crianças as regras de um processo eleitoral justo, de maneira divertida.

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    “Quem Manda Aqui”

    André Rodrigues, Larissa Ribeiro, Paula Desgualdo e Pedro Markun (Companhia das Letrinhas, 2015)

    Dos mesmos autores de “Eleição dos Bichos”, “Quem Manda Aqui” é o resultado de seis oficinas realizadas com crianças sobre governo e poder. A partir de exemplos diários de organização política – na escola, no time etc –, a obra convida a criança a pensar sobre como funciona a tomada de decisões coletivas e como ela poderia ser.