Alex Soojung-Kim e a semana de trabalho de quatro dias — Gama Revista
Vai conseguir descansar?
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Ilustração retirada da capa de "Rest" (2016), de Alex Soojung-Kim

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Conversas

Alex Soojung-Kim: "A recompensa do sucesso não é descansar, mas trabalhar ainda mais"

Especialista em descanso defende a semana de trabalho de quatro dias e o ato de descansar como uma busca ativa e essencial

Leonardo Neiva 17 de Dezembro de 2023

Alex Soojung-Kim: “A recompensa do sucesso não é descansar, mas trabalhar ainda mais”

Leonardo Neiva 17 de Dezembro de 2023
Ilustração retirada da capa de "Rest" (2016), de Alex Soojung-Kim

Especialista em descanso defende a semana de trabalho de quatro dias e o ato de descansar como uma busca ativa e essencial

No início dos anos 2000, o historiador e sociólogo Alex Soojung-Kim Pang vinha trabalhando no Institute for the Future, no Vale do Silício, como futurista — profissional responsável por interpretar sinais e ajudar pessoas e empresas a criar estratégias pensando no futuro. Justamente durante esse período, ele sofreu um burnout, devido ao excesso de trabalho e, principalmente, à falta de importância que dava ao hábito de descansar.

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“Tive que aprender o valor do descanso da forma mais difícil”, conta em entrevista a Gama. O acontecimento, no entanto, não fez apenas com que Pang revisse suas diretrizes de trabalho, passando a dar mais importância ao próprio bem-estar e ao equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Foi também o ponto de partida para quase duas décadas de estudos aprofundados sobre o descanso e uma série de livros publicados a respeito do tema. Hoje, Pang é uma das principais autoridades no mundo quando se fala em descanso e em semanas mais curtas de trabalho.

“Vivemos num mundo que vem reduzindo os espaços de descanso e até levantando suspeitas sobre seu valor”, afirma Pang, que nasceu na Califórnia, mas passou a infância e juventude em vários lugares do mundo, incluindo um período no Brasil. “A expectativa é estarmos sempre disponíveis e trabalhando.”

Autor de livros como “Trabalhe Menos, Ganhe Igual” (Buzz, 2020), assim como “Rest” e “The Distraction Addiction” — ambos ainda sem tradução para o português —, Pang aborda a importância do descanso não só para a nossa saúde física e mental, mas para o aumento da produtividade na vida profissional e pessoal. Um dos maiores defensores da redução da jornada de trabalho e do uso adequado da tecnologia, ele é um líder no movimento a favor da implementação da semana de trabalho de quatro dias úteis, que nos últimos anos vem sendo testada por empresas do mundo todo, e também no Brasil.

Na opinião do especialista, a semana de quatro dias de trabalho já existe, mas é vítima da falta de foco de empresas e trabalhadores. “Ela só está soterrada sob o peso de reuniões inúteis e daquelas perguntas rápidas que acabam se transformando em conversas de 20 minutos”, afirma. Segundo ele, basta reavaliar pontos como esses para tornar o projeto possível.

Pang também desafia nossa visão cotidiana sobre o descanso, comparando atividades que costumamos fazer no nosso tempo livre, como rodar o feed das redes sociais ou assistir à série do momento na Netflix, ao próprio ato de trabalhar. “As redes sociais desencadeiam reações psicológicas e hormônios como a adrenalina, os mesmos que o trabalho provoca”, aponta.

 Foto: Leila-Sultanzadeh

No papo com Gama, o especialista fala também sobre as dores e delícias do home office, como a tecnologia mudou nossa vida profissional para melhor e pior, e o descanso não simplesmente como a ausência de trabalho, mas uma busca ativa e diária.

Um bom descanso é ativo. Os melhores tipos de descanso são física e mentalmente desafiadores

  • G |Quando e como você começou a se interessar pela questão do descanso?

    Alex Soojung-Kim |

    Aconteceu numa combinação de interesse pessoal e profissional. A parte profissional surgiu quando me debrucei sobre os fatores que ajudam as pessoas a serem mais criativas. Ali entendi que psicólogos já reconheciam a importância dos períodos de incubação para cultivar novas ideias. Mas os historiadores e biógrafos não levavam esse tipo de abordagem a sério nem questionavam como pessoas criativas, muitas vezes indivíduos obcecados e ambiciosos, conseguiam criar esse tempo para si mesmas. Quando passei a observar a vida dessas pessoas, percebi que elas descansavam de maneira consistente, e que as pesquisas em neurociência e psicologia já davam explicações convincentes de por que essa prática funcionava. Pelo lado pessoal, como muitas pessoas ambiciosas, tive que aprender o valor do descanso da forma mais difícil, após enfrentar um burnout no meu trabalho como futurista e fornecedor de prognósticos no Vale do Silício. Então compreender o valor do descanso, e como artistas famosos e ganhadores do Nobel o incluíam em suas rotinas diárias, foi uma maneira de me convencer da sua relevância, permitindo que passasse a buscar esse descanso para mim.

  • G |Por que descansar é tão importante hoje em dia?

    ASK |

    Vivemos num mundo que vem reduzindo os espaços de descanso e até levantando suspeitas sobre seu valor. Hoje, é possível estar sempre ligado e conectado, carregando nossos escritórios particulares dentro do bolso. A expectativa é estarmos sempre disponíveis e trabalhando. Ao mesmo tempo, a cultura do trabalho nos bombardeia com a ideia de que as pessoas mais bem-sucedidas trabalham por períodos absurdamente longos. Ela nos convence de que temos apenas alguns anos para deixar nossa marca e fazer fortuna. Mesmo que não pretendamos ser bilionários, precisamos competir com aqueles ao nosso lado para evitar ser alvos da próxima rodada de demissões. E, para as pessoas que se saem bem nesse universo, a recompensa do sucesso não é a oportunidade de descansar, mas de trabalhar ainda mais — ou, em escritórios considerados mais “legais”, a chance de se distrair com brinquedos mais chamativos.

  • G |Hoje, a necessidade de descanso se tornou um problema de saúde pública, com pessoas enfrentando altos níveis de estresse e ansiedade, abusando de remédios para dormir. Como chegamos a esse ponto?

    ASK |

    Levou várias décadas. Desde 1980, as indústrias tecnológica e financeira vêm promovendo o sucesso como algo que acontece aos jovens que trabalham muito. O crescimento da economia global significou que era possível fazer fortuna 24 horas por dia, sete dias por semana. Como dizia o personagem de Michael Douglas na sequência do filme “Wall Street”, o dinheiro nunca dorme. Se você dormir, está perdendo dinheiro. Fortunas formadas com base em habilidade ou inteligência profissional — em outras palavras, no mérito — exigem que seus criadores continuem a trabalhar, para não contrariar a ideologia que justificou esse enriquecimento. Nos anos 2000, o tempo em que corporações norte-americanas podiam ser dirigidas por homens vindos da sala de correspondência — como a General Motors e a General Electric na década de 1940 — virou coisa do passado. Subir na hierarquia e pagar o preço por isso passou a fazer de você um alvo de “reengenharia de processos”, não de promoção. E, numa economia de 24 horas por dia, sete dias por semana, qualquer período que passe descansando é um tempo que você deixou de trabalhar, de estar disponível ou pensar em trabalho. O trabalho é o que hoje nos define. Portanto, passamos a ver o descanso como uma atividade passiva e desinteressante. Não uma coisa em si mesma, mas a ausência de trabalho.

  • G |Muitas pessoas enxergam o ato de descansar como dormir ou passar um tempo sem fazer nada. Mas o que podemos realmente definir como descanso? É o que você chama de “descanso deliberado”?

    ASK |

    O descanso é muito simples: é o tempo que passamos recuperando a energia física e mental que gastamos trabalhando. Um bom descanso é ativo. Muitas vezes, pensamos nele como algo completamente passivo, mas os melhores tipos de descanso são física e mentalmente desafiadores. Os esportes e jogos, por exemplo, te recarregam de forma mais completa do que assistir TV ou sair para beber. O descanso é também uma habilidade. Todos podemos aprender a descansar melhor, encontrar o tipo que funcione de acordo com os nossos horários, as exigências do trabalho e nossos desafios criativos. O descanso deliberado é justamente esse tipo de descanso, praticado em momentos que ajudam a recarregar as baterias mentais e físicas, criando espaço para uma visão mais criativa.

  • G |Quais são as melhores opções quando precisamos descansar? Depende de cada pessoa?

    ASK |

    O melhor descanso é aquele que você pratica regularmente. Os tipos variam de pessoa para pessoa, mas seguem alguns padrões importantes. No nível diário, um bom descanso proporciona uma pausa mental no trabalho, uma chance de deixar de lado as obrigações e preocupações e de fazer o sangue fluir com um pouco de exercício. Pode ser uma caminhada ao meio-dia, uma ida à academia ou a prática de desligar o email e o telefone do trabalho no final do expediente. Pessoas que descansam bem costumam ter hobbies sérios, mental e fisicamente envolventes e que oferecem recompensas parecidas com as do trabalho quando tudo corre bem, mas sem as mesmas decepções. Para os cientistas, atividades como alpinismo e música permitem experimentar uma beleza semelhante à que encontram na ciência: ser desafiado por peças ou percursos tecnicamente exigentes e se perder em atividades altamente analíticas, que exigem atenção total e oferecem recompensas rápidas. Às vezes, esses hobbies se traduzem em realizações criativas consideráveis. Bram Stoker, por exemplo, foi gerente de teatro e advogado na Londres do século 19, mas alcançou a imortalidade através de um projeto paralelo: o romance “Drácula”.

  • G |Muitas pessoas têm tratado o tempo em frente à tela do celular, do computador ou assistindo Netflix como descanso. Isso faz algum sentido?

    ASK |

    Dá para entender por que elas fazem isso, mas estudos mostram que é mais revigorante ficar longe das telas e, de preferência, da sua mesa de trabalho. Por um lado, as redes sociais desencadeiam reações psicológicas e hormônios como a adrenalina, os mesmos que o trabalho provoca. Por outro, a exposição à natureza, seja saindo de casa ou simplesmente olhando pela janela, nos proporciona um grande impulso psicológico. Até um exercício breve pode ser restaurador.

  • G |A ideia era que a tecnologia viria para ajudar nossa vida, facilitando e reduzindo a carga de trabalho. Mas por que sentimos que estamos trabalhando mais e por mais tempo? Algo deu errado?

    ASK |

    Essa é uma pergunta ótima, mas complicada. Parte da resposta é que as tecnologias nos ajudam a poupar mão-de-obra em tarefas individuais e criar mais trabalho ao alterar padrões e expectativas. Por exemplo, as tecnologias de automação residencial, como máquinas de lavar, lava-louças e aspiradores de pó, facilitaram a lavagem de roupas e pratos e também elevaram nossos padrões de limpeza. Como resultado, as pessoas hoje continuam fazendo tantas tarefas domésticas quanto cem anos atrás. As tecnologias da informação realizaram um excelente trabalho ao facilitar a escrita de cartas e memorandos, ou a realização de teleconferências com pessoas do mundo todo. Um email é muito mais fácil de enviar do que uma carta, mas os profissionais passaram a mandar muito mais emails num mesmo dia do que seus antecessores escreviam cartas. E hoje é muito menos provável que haja um assistente à mão para te ajudar com a correspondência.

  • G |O avanço do home office também fez aumentar o estresse e a falta de descanso mesmo no ambiente doméstico, em vez de ter o efeito contrário?

    ASK |

    Até o momento, a resposta é mista. Por um lado, vem diminuindo o nível de estresse causado pelo deslocamento entre sua casa e o escritório. Mas trabalhar no ambiente doméstico definitivamente torna mais difícil se desligar do trabalho e nos faz passar muito mais tempo online e em reuniões.

  • G |Você é uma das vozes mais importantes do mundo na adoção da semana de quatro dias. Mas, além de proporcionar mais tempo de descanso, encurtar os dias de trabalho realmente eleva a produtividade?

    ASK |

    As pesquisas são bastante claras. Se você se planejar cuidadosamente, buscar a eficiência e se preparar para eventualidades, há grandes chances de descobrir como cumprir semanas de quatro dias. Simplesmente cortar um dia por semana do calendário não vai fazer sua produtividade saltar automaticamente, é preciso correr atrás. Mas semanas de quatro dias são um excelente incentivo para que as pessoas encontrem dentro de si essa eficiência, cooperando e colaborando mais do que antes e realizando o trabalho necessário para que todos possam desfrutar de um fim de semana de três dias.

  • G |É possível conciliar trabalho e descanso, apesar de as pessoas verem as duas coisas como opostas? Como aplicar isso no dia a dia?

    ASK |

    Acredito que estaremos sempre lutando para alcançar esse equilíbrio. Mas isso porque a vida moderna é complicada, e não porque trabalho e descanso estejam realmente em lados opostos ou sejam inimigos. Eles são necessários para uma vida boa e, numa jornada de trabalho bem planejada, podem ser complementares. O principal desafio é aprender a levar o descanso a sério e reconhecer que nossos dias aparentemente lotados ainda guardam espaços para descansar, criando rotinas nos locais de trabalho que todos nós possamos seguir.

  • G |Como você chegou ao método e frequência de trabalho que apresenta no livro “Trabalhe Menos, Ganhe Igual”? Pode descrever um pouco melhor esse processo?

    ASK |

    O profissional médio que trabalha com o conhecimento perde todos os dias de duas a três horas de tempo produtivo em reuniões excessivamente longas, no uso inadequado de tecnologias ou em distrações e interrupções. Então a semana de quatro dias já existe. Ela só está soterrada sob o peso de reuniões inúteis e daquelas perguntas rápidas que acabam se transformando em conversas de 20 minutos. Portanto, se você conseguir controlar somente essas coisas, já terá percorrido um longo caminho para fazer em quatro dias o que vinha fazendo em cinco. É assim que as empresas deveriam começar, reavaliando suas reuniões, pensando em como usar a tecnologia de forma mais consciente e passando a reservar horários do dia para um trabalho profundamente focado, longe de diálogos ou encontros com clientes.

  • G |Apesar de termos toda essa informação disponível, por que não implementamos essa mudança no mundo? E quanto aos trabalhadores como médicos, profissionais que fazem plantões ou trabalham no período noturno?

    ASK |

    Em alguns setores onde a cultura do excesso de trabalho está bem estabelecida, fica muito difícil convencer as pessoas que enriqueceram explorando o trabalho dos outros a mudar de atitude. Profissionais de setores que funcionam 24 horas por dia, sete dias por semana, na verdade não trabalham todo esse tempo. De fato, a maneira mais rápida de esgotá-los é exigir longas horas aliadas ao estresse inerente ao trabalho. Enfermeiras e médicos te dirão que o sistema atual está falido. Nas escolas de medicina dos EUA, já vemos sinais de esgotamento profissional nos estudantes do primeiro ano do curso. As pessoas costumam temer que a redução da jornada dos médicos signifique menos acesso ao atendimento. Mas horários de trabalho reduzidos para médicos e enfermeiros manteriam mais pessoas atuando na profissão e permitiriam carreiras mais longas, resolvendo as necessidades e problemas que surgissem.