A ascensão da literatura erótica, das fanfics ao "dark romance" — Gama Revista
Tá com tesão?
Icone para abrir

2

Reportagem

A ascensão da literatura erótica, das fanfics ao "dark romance"

Fanfics e livros repletos de cenas quentes despertam os desejos e fetiches de leitores e vêm chamando a atenção das editoras no Brasil

Leonardo Neiva 10 de Março de 2024

A ascensão da literatura erótica, das fanfics ao “dark romance”

Leonardo Neiva 10 de Março de 2024
Isabela Durão

Fanfics e livros repletos de cenas quentes despertam os desejos e fetiches de leitores e vêm chamando a atenção das editoras no Brasil

Durante o Coachella, tradicional festival de música dos Estados Unidos, uma mãe solteira na casa dos 40 anos encontra o vocalista de uma das boy bands mais famosas do mundo, de onde surge um interesse mútuo. Quando o músico engata um relacionamento intenso com a mulher 16 anos mais velha, a vida e carreira dos dois vira de cabeça para baixo.

MAIS SOBRE O ASSUNTO
Por que a fanfic queer é tão relevante?
Você sente prazer pelos ouvidos?
Carol Ito: “Pensar que masturbação ainda é tabu me gerava broxadas imensas”

Repleto de cenas românticas que beiram — para não dizer mergulham de cabeça — o “água com açúcar”, o trailer do filme “Uma Ideia de Você” (2024) vem sendo um dos mais comentados da semana nas redes sociais. E a principal atração do longa, além de flashes com sequências de sexo entre os personagens de Anne Hathaway e Nicholas Galitzine, é o fato de se basear numa fanfic.

Embora troque os nomes e identidades dos personagens, a autora Robinne Lee já admitiu ter escrito o livro homônimo tendo em mente Harry Styles e sua suposta preferência por mulheres mais velhas. “Um romance envolvente e muito sexy sobre fama, glamour e uma paixão inesperada”, é como resume a sinopse da obra, publicada no Brasil pela Globo Livros.

O lançamento pode parecer inusitado para alguns, mas ele integra uma tendência global que vem tornando cada vez mais populares fanfics e romances de conteúdo “hot” — em outras palavras, que contêm cenas de sexo quente e explícito.

A jornalista Catarina Villar, 25, mais conhecida como Catty, ainda se surpreende ao ver as centenas de milhares de leitores que suas fanfics alcançam em plataformas voltadas para o gênero, como Spirit e Wattpad. Inspirada por comunidades de fãs de artistas musicais, ela começou a escrever aos 15 anos, com uma história inspirada em Bruno Mars. Mais tarde, enveredou por narrativas envolvendo boy bands como a australiana 5 Seconds of Summer e o One Direction de Styles, de quem era fã.

“Escrevi uma fanfic com uma amiga onde eles eram vampiros e lobisomens, do nada misturando One Direction com Justin Bieber”, conta Villar a Gama. “No fim, entraram trocentos famosos no meio, que nada mais eram do que um chamariz para outros fandoms lerem.”

A decisão de escrever histórias eróticas com cenas quentes veio da percepção de que aquilo era o que os leitores mais buscavam. “Mesmo quando esse não era o foco, as pessoas gostavam. Aquilo me dava audiência, e a galera pedia para escrever mais”, conta a jornalista.

O sucesso fez com que Villar produzisse até um guia de como escrever fanfics. O capítulo sobre conteúdo hot, é claro, foi um dos que ganhou mais destaque. E o fato de nunca ter feito sexo até então não chegou a impedir que a jovem escrevesse sobre o tema. Ia usando como base outros conteúdos do tipo, que ela lia com frequência.

A construção do cenário envolve muito mais as leitoras do que a descrição do ato

“As pessoas se interessam muito mais por preliminares românticas e fofinhas do que de fato com o que está acontecendo. Então a construção do cenário envolve muito mais as leitoras do que a descrição do ato”, explica a jornalista. Por escrever para um público em grande parte composto por menores de idade, enfatizava nos textos uma escrita poética e o prazer feminino. “‘Cinquenta Tons’ foi uma referência do que não fazer. Eu lia outras fanfics e pessoas que falavam de prazer feminino, como os canais da Cátia Damasceno e Dora Figueiredo, tentando incluir isso nas histórias.”

Prazer que representa

Para o psicólogo e sexólogo Giovane Oliveira, o sucesso das fanfics hot faz contraponto a notícias e estudos que indicam que os jovens hoje querem menos cenas de sexo em filmes e séries. “Quando alguém cria em cima de um personagem que já existe, é porque despertou alguma coisa. Por que não dar asas a esse desejo? Essa fanfic é a complementação de uma fantasia”, explica.

Em alguns casos, a própria produção pode ter insinuado esse envolvimento entre os personagens, mas sem levá-lo para frente. É o que ocorre na prática de “queerbaiting”, quando o filme, livro ou série faz referência à representatividade LGBTQIA+ ou a uma relação homoafetiva, mas não traz esse conteúdo de forma explícita. De certa forma, é uma maneira de iludir o público.

Não à toa, como Gama já explorou em reportagem, as fanfics queer têm funcionado como ferramenta de empoderamento, representatividade e autodescoberta sexual. “Quando você lê algo, sente o clima, mas nada acontece, aquilo gera uma interrupção”, aponta o sexólogo. “Para a história ficar mais próxima de uma realidade, por que não continuá-la?”

A jornalista e doutoranda em comunicação Daiana Sigiliano vem pesquisando séries de ficção e a cultura de fãs na atualidade. Um dos seus estudos se foca nas fanfics que surgiram a partir de “As Five” (2020-2024), série da Globoplay que continua a história da novela “Malhação: Viva a diferença” (2017-2018).

“O casal Limantha, ship das personagens Lica e Samantha, protagonizou diversas fanfics que exploravam questões ligadas à sexualidade, que não poderiam ser desenvolvidas na novela”, aponta. Narrativas como essa integram o femslash, subgênero da fanfic que se concentra em relações românticas e sexuais entre personagens femininas.

Essas histórias, além de amplirem o cânone, também partem de um desejo do fandom de se sentir representado e quebrar estereótipos

Para a pesquisadora, fanfics permitem preencher lacunas em produções ficcionais, criando novas camadas de interpretação que envolvem o público. “Essas histórias, além de ampliarem o cânone, também partem de um desejo do fandom de se sentir representado e quebrar estereótipos”, explica. Porém, segundo ela, nem sempre é o que acontece. “Muitas acabam reproduzindo contextos culturais estadunidenses e padrões heteronormativos.”

O fato de boa parte do público de fanfics e romances hot ser composto por mulheres pode ter a ver com os ciclos de excitação masculinos e femininos, aponta Oliveira. Enquanto a pornografia tradicional faz mais sentido para o homem por sua ênfase no impacto visual, elas costumam buscar mais estímulo no contexto, numa construção gradual do tesão e no uso de outros sentido. Por isso, tipos distintos de conteúdo, assim como abordagens feministas na pornografia — a exemplo do que faz a diretora sueca Erika Lust —, vêm atraindo um público cada vez maior.

A ascensão do romance erótico

Mas nem só das fanfics sobrevivem os conteúdos eróticos que seduzem os olhares dos leitores. A visão treinada de Villar reconhece nas histórias de CEOs ricos e atraentes ou de criminosos sedutores, não tão perigosos como parecem à primeira vista, as bases de muitas fanfics. “O estilo está por aí. Alguns romances eróticos da Amazon são clichês de fanfic.”

Um dos maiores exemplos dessa ligação vem daquele que talvez seja o exemplar mais bem-sucedido de todos: a série de livros “Cinquenta Tons de Cinza” (Intrínseca, 2012). Isso porque, antes de se tornar uma das autoras mais populares e lidas do mundo, a britânica E.L. James já era bem conhecida na internet, só que pelo apelido Snowqueens Icedragon.

A narrativa de “Cinquenta Tons” nasceu de uma de suas fanfics mais famosas, que adaptava os personagens de “Crepúsculo” (Intrínseca, 2008-2020) para um contexto explicitamente erótico. O livro só começou de fato a tomar forma quando James mudou os nomes e ocupações dos personagens principais para os do empresário multibilionário Christian Grey e da estudante de literatura Anastasia Steele.

“O mafioso e o CEO são coisas muito desenvolvidas no universo das fanfics, só que agora numa literatura mais ampla, sem se basear em algo que já existia”, explica Villar. No Brasil mesmo, escritoras como Babi Dewet, de “Sábado à Noite” (Generale, 2012), e Kel Costa, de “Perfeito pra Mim” (2020), só foram se aventurar nos romances após o sucesso das fanfics que escreviam.

Aliás, por aqui, livros de conteúdo romântico e erótico em suas variadas formas vêm ganhando destaque no setor editorial. As editoras Record e HarperCollins Brasil anunciaram recentemente a reformulação e expansão de seus selos voltados para os gêneros.

É uma categoria de livro muito diminuída por crítica e público, porque o prazer feminino infelizmente não é prioridade no nosso mundo

A Verus, da Record, deve concentrar 100% dos esforços a partir deste ano em publicar histórias de romance com foco no prazer feminino. Além de uma maior diversidade racial e de orientações sexuais, a ideia é trazer à tona histórias protagonizadas por personagens gordas, PCD e envolvendo relações não-monogâmicas, com um olhar especial para autoras nacionais.

Outro objetivo é enfrentar a fama negativa que muitos desses títulos ainda encontram no mercado editorial. “Desde os romances de banca de jornal, esses livros sempre foram uma válvula de escape para as mulheres viverem suas fantasias e sonhos”, lembra a editora-executiva da Verus Rafaella Machado. “É uma categoria de livro muito diminuída por crítica e público, porque o prazer feminino infelizmente não é prioridade no nosso mundo.”

Contos de fadas para adultos

A resistência do mercado, no entanto, não significa que essas obras não encontrem formas de chegar ao público. Hoje, entre os ebooks mais vendidos na Amazon, “O Avesso da Pele” (Companhia das Letras, 2021), de Jeferson Tenório — livro sobre racismo que ganhou nova visibilidade após ser recolhido em escolas públicas do Paraná —, divide as primeiras posições com títulos como “Pacto com o Bad Boy”, “Enlouquecendo o Mafioso” e “Vício Sombrio: O curandeiro demônio e a grávida”.

Há desejos e fetiches que muitos nem sabiam que existiam, como romances em que as protagonistas fazem sexo com dinossauros e dragões

A questão do acesso democrático aqui é central — com a assinatura Kindle Unlimited, muito desse conteúdo pode ser baixado de graça. Uma biblioteca tão ampla também permite a exploração de desejos e fetiches que muitos nem sabiam que existiam, como romances em que as protagonistas fazem sexo com dinossauros e dragões, caso de “No Ninho do Velociraptor” (Dragon Style Press, 2013) e “Dragões e Virgens” (2014).

A controvérsia relacionada a alguns títulos do gênero, especialmente os de “dark romance”, tem a ver com a romantização de relações abusivas, em narrativas que muitas vezes envolvem questões como tortura, incesto e estupro. Para quem acompanha, a receita tradicional é bem conhecida: uma jovem pura e inexperiente conhece um homem muito mais rico ou poderoso — com poderes que podem incluir elementos sobrenaturais —, e os dois acabam engatando um romance tórrido e um tanto violento.

O psicólogo e sexólogo Giovane Oliveira define esse tipo de narrativa como um “conto de fadas para adultos”. “Traz elementos como os da Bela tendo que se submeter à Fera, um cara super agressivo, para ele se descobrir um ser humano melhor“, exemplifica.

Embora considere que o conteúdo pode ter impacto relevante para muita gente — “Se um livro ou um filme da Netflix faz com que um casal que costuma ter um sexo super entediante se excite, não tem como negar que para a vida deles fez diferença” —, Oliveira também aponta questões problemáticas. Entre elas, o fato de essas narrativas reproduzirem estruturas machistas e heteronormativas da sociedade.

“Por que é sempre a figura de um homem poderoso e de uma mulher inocente, que vai ser quase desvirginada novamente? Por que a mulher não tem desejos e fantasias?”, questiona o sexólogo. Outro ponto é que a submissão acontece sempre do lado da mulher e acaba abrangendo todos os aspectos do relacionamento, não se limitando à relação sexual. “No BDSM, tem muito homem alfa que gosta de ser dominado. E a mulher pode encontrar prazer tanto em ser dominada quanto em dominar”, aponta.

Portas de entrada e saída

Uma maneira de subverter essas visões, diz Oliveira, seria revelar aos poucos que a personagem feminina também tem interesse por aquele universo que o homem apresenta para ela. “Em determinado momento, ela poderia dizer: vem cá que eu também posso te dobrar no meio, seja para dominar ou ser dominada.”

A editora Rafaella Machado explica que subgêneros como o “dark romance” ou até o “bully romance”, em que uma relação amorosa nasce de um caso de bullying, não estão na mira da Verus no momento. “Eles têm uma vertente bastante gráfica, violenta e problemática. Fazem muito sucesso na Amazon, mas não sei se vão migrar para um caminho mais tradicional”, analisa. Ainda assim, ela não descarta publicar narrativas mais gráficas e sexualmente ousadas no futuro.

Hoje, com uma filha e emprego fixo, Catty Villar não encontra mais tempo para escrever fanfics como na adolescência. Fã da autora indiana Rupi Kaur, de “Outros Jeitos de Usar a Boca” (Planeta, 2017), ela tem enveredado muito mais pela poesia, mas sempre com uma pitada de sexo e erotismo. Nem por isso despreza a importância de ler fanfics ou das histórias que escrevia quando mais nova.

“A fanfic foi para mim, e é hoje para muitos jovens, uma porta de entrada para a literatura e o erótico, levando a outras referências. E continua sendo uma forma de leitura extremamente democrática”, declara a ex-escritora de fanfics, que admite, porém, sentir uma ponta de vergonha ao reler algumas das cenas que escrevia.