Zezé Motta: "O meu tesão pela vida está sempre se renovando" — Gama Revista
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Christopher Maia

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Conversas

Zezé Motta: "O meu tesão pela vida está sempre se renovando"

A atriz, cantora e ativista do movimento negro, que completa 80 anos em junho, reflete sobre o que a faz continuar ativa, namorando e sonhando, apesar do etarismo, do machismo e do racismo no país

Ana Elisa Faria 10 de Março de 2024

Zezé Motta: “O meu tesão pela vida está sempre se renovando”

Ana Elisa Faria 10 de Março de 2024
Christopher Maia

A atriz, cantora e ativista do movimento negro, que completa 80 anos em junho, reflete sobre o que a faz continuar ativa, namorando e sonhando, apesar do etarismo, do machismo e do racismo no país

“Eu sei por que vocês estão aqui, mas não temos mais tempo para lamúrias. Temos que arregaçar as mangas e virar esse jogo”. A fala da antropóloga, escritora e ativista brasileira Lélia Gonzalez (1935-1994) guia e dá ânimo para a atriz, cantora e militante do movimento negro Zezé Motta, 79, continuar lutando e trabalhando contra o etarismo, o machismo e o racismo da sociedade. Tudo isso com bom humor, uma risada inconfundível, “unhas negras e íris cor de mel”, como descreve Caetano Veloso na música “Tigresa” (1977), uma homenagem à artista.

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Perto de completar 80 anos de idade — ela faz aniversário em 27 de junho — e 60 de carreira, Zezé segue na ativa e não pretende parar tão cedo, mesmo depois de 70 filmes, cerca de 50 produções televisivas, entre programas, participações e novelas, mais de uma dúzia de peças de teatro e prestes a lançar o 15º álbum, em que cantará apenas compositoras pretas.

Desde a pandemia de Covid-19, uma nova função se somou à rotina agitada da artista: a de digital influencer, com contratos com marcas como Natura, Bradesco Seguros e L’Oréal. “Veja só, depois de idosa, virei garota-propaganda”, diz a Gama. “É importante as pessoas me verem na atividade com essa idade. Não faz parte dos meus planos me aposentar.”

O segredo de Maria José Motta de Oliveira, que se tornou ícone após dar vida à protagonista de “Xica da Silva” (1976) — filme do cineasta Cacá Diegues sobre uma mulher escravizada que se tornou rainha —, é um combo de ações, como manter a expectativa por novos trabalhos, ter fé, conservar amizades, preservar a família por perto e ter saúde, além de pessoas fiéis, com caráter e bem-humoradas ao redor. “Eu sou privilegiada porque o meu tesão pela vida está sempre se renovando com essas coisas, trabalho, família e amigos”, afirma Zezé na entrevista que você lê abaixo.

Acho bom e natural que eu tenha um namorado e transe até hoje

  • G |Recentemente, você disse que algumas pessoas se assustam ao saber que, aos 79 anos, você namora. Como lidar com o etarismo e com quem pensa que não existe tesão na terceira idade?

    Zezé Motta |

    Com saúde, a gente mantém o tesão. Até porque a vida é um tesão. O tesão, em si, envolve uma série de coisas, né? Eu reconheço que hoje, com quase 80 anos, não é igual à minha juventude, não dá para comparar, mas o tesão pela vida continua. É por isso que minha mãe viveu até os 95 — e o meu projeto é chegar até lá. Para manter o tesão, eu penso que você não pode, por exemplo, se achar uma pessoa feia, pensar que não tem mais idade para a atividade sexual ou para realizar qualquer atividade, de um modo geral; não pode achar que está velho para fazer isso, frequentar tal lugar ou fazer tal coisa por causa da idade. Uma vez, tive um orientador que me falou que a cabeça da gente pode ser o nosso maior inimigo. E está tudo junto, né? Então, é muito relativo. Penso que a saúde é fundamental, acho que os amigos e a família também ajudam com estímulos para termos mais tesão pela vida. E bons parceiros, não só de cama, mas de caráter. Também acho que uma pessoa bem-humorada é fundamental para estar do nosso lado. Enfim, são vários detalhes que mantêm a chama do tesão viva.

  • G |Em 2023, no Dia do Orgasmo, você publicou nas redes sociais uma reflexão sobre a importância de se ter uma vida sexual regular. Como uma mulher feminista, que viveu no auge da liberdade sexual e que se casou cinco vezes, qual o papel do tesão e do sexo na sua vida hoje?

    ZM |

    O sexo é fundamental e faz bem para tudo: para o corpo, para a alma e para a cabeça. Vejo com muita naturalidade o fato de eu ter quase 80 anos e estar com a libido em dia, não com a mesma proporção de quando era mais jovem, mas a libido está em dia. Acho muito bom e natural que eu tenha um namorado e transe até hoje.

  • G |O que te faz perder o tesão? Seja sexual ou tesão por um trabalho, por uma amizade?

    ZM |

    Acho que falta de caráter e de fidelidade minam o tesão. Quando falo sobre fidelidade, não é no sentido careta, mas no sentido ligado ao caráter mesmo. No caso de um relacionamento afetivo, por exemplo, é preciso ter sinceridade e abrir o jogo. Se a pessoa com quem me relaciono está em outra, eu tenho que saber, até para que eu tenha opção de decidir se é isso o que quero para minha vida ou não.

Me broxava porque o cara estava numa fantasia, ele não estava comigo, estava com a Xica. Ele não me desejava, desejava a Xica

  • G |Na época do filme “Xica da Silva” (1976), você virou símbolo sexual e já falou que esse posto não a incomodava, pelo contrário, fez bem para a sua autoestima. Em contrapartida, teve que lidar com parceiros que a viam apenas como a personagem Xica, e não como a Zezé. Esse comportamento era broxante? Como você se sentia?

    ZM |

    Ah, sem dúvida, era broxante porque era muito comum o parceiro dizer: “Não acredito que vou transar com a Xica da Silva” ou, depois da transa, falar: “Ninguém vai acreditar que eu transei com a Xica da Silva”. Era uma coisa que me broxava totalmente porque aquele cara estava numa fantasia, ele não estava comigo, ele estava com a Xica. Ele não me desejava, ele desejava a Xica. Eu fiquei no imaginário masculino por meio da Xica da Silva, os homens tinham muitas fantasias e muita curiosidade. Para mim, foi desconfortável no sentido de ter que desempenhar o papel de Mulher-Maravilha na cama. Isso não existe, Mulher-Maravilha existe só nas histórias em quadrinhos. Foi uma fase bem complicada e tive que recorrer à análise para lidar com isso, para saber como resolver essa questão.

  • G |Para responder com embasamento ao racismo, você fez, nos anos 1970, um curso com a antropóloga Lélia Gonzalez, de quem, depois, ficou amiga. Em entrevistas, você costuma contar que uma fala dela a marcou profundamente: “Não temos mais tempo para lamúrias. Temos que arregaçar as mangas e virar esse jogo”. Esse encontro e os ensinamentos dela deram força para enfrentar o preconceito?

    ZM |

    Sim, a Lélia é fundamental na minha vida. Sinto muita falta dela, morro de saudades, mas a mantenho viva no meu coração. Ela entrou na minha vida no momento em que eu estava precisando de orientação, desse socorro, dessa parceria, dessa ajuda. Com o sucesso da Xica, minha responsabilidade aumentou, principalmente, a responsabilidade como mulher negra. Eu tinha que dar conta de tudo, de dar conselhos para mulheres mais jovens, de responder certas questões que eu tinha no meu coração. Eu tinha o sentimento daquilo que acontecia, sabia que havia algo errado, mas não tinha um discurso articulado sobre várias questões, principalmente a respeito do racismo e da negritude. Quando eu li no jornal que haveria um curso sobre cultura negra no Parque Lage [Rio de Janeiro], ministrado por aquela mulher maravilhosa, a Lélia Gonzalez, eu saí correndo. E foi a melhor coisa que fiz.

  • G |Você fez parte do Movimento Negro Unificado (MNU) e, desde então, é um nome importante no ativismo negro brasileiro, principalmente na área cultural, com a criação do CIDAN (Centro de Informação e Documentação do Artista Negro). Como você enxerga a militância hoje? Quais os principais avanços do negro na TV, no cinema e no teatro?

    ZM |

    O que eu percebo é que pessoas como eu, Taís Araújo, Sheron Menezzes, Ruth de Souza, Léa Garcia e Milton Gonçalves, por exemplo, ocupam e ocuparam a função de servir de inspiração para os mais jovens, que, nos vendo em cena, chegam à conclusão daquela frase famosa do ex-presidente dos Estados Unidos [Barack Obama]: “Yes, we can” [Sim, nós podemos]. O pensamento das novas gerações é: “Se eles chegaram lá, eu também posso”. E acho que isso é muito importante.

Christopher Maia
  • G |Você gosta de dizer que é uma “cantriz”. O que dá mais tesão: a atuação ou a música?

    ZM |

    Essa pergunta já foi mais difícil de responder porque eu amo representar e amo cantar. Mas, ultimamente, isso está mais bem resolvido porque tenho me dedicado mais à música. Há mais espaço na música do que no teatro ou na televisão, que dependem de você ser convidada. O teatro, na verdade, não depende tanto de um convite, você pode produzir algo, mas, para isso, é preciso bancar, o que é mais difícil. Nesse sentido, a música ficou mais fácil. Mas nos meus shows, a atriz está sempre bastante presente. A cada música pela qual eu me apaixono e escolho colocar no repertório, eu procuro na música um personagem. Que mulher é essa? Ela é sofrida, está de bem com a vida? E vou fundo na interpretação. Às vezes, eu chego às lágrimas, dependendo da minha viagem.

  • G |Além de dar vida à Xica da Silva, mulher escravizada que se tornou rainha, em “Quilombo” (1984), também de Cacá Diegues, você interpretou outro ícone da resistência, a guerreira Dandara dos Palmares. Tem mais alguma heroína negra que a inspire e que você gostaria de viver?

    ZM |

    Descobri há pouco tempo uma personagem que eu não conhecia. Chama-se Esperança Garcia, que viveu no Piauí nos anos 1770, uma mulher muito interessante que conheci por meio do convite para narrar um documentário sobre a vida dela. Fiz uma narração, uma pequena participação, mas me apaixonei por ela. Acho que seria bacana protagonizar um filme sobre a Esperança porque a história dela tem que ser conhecida pelo Brasil inteiro, quiçá pelo mundo, porque ela era uma mulher incrível. Ela foi uma mulher negra escravizada, era letrada, sabia ler e escrever, e a gente sabe que a cultura empodera, né? A Esperança se casou, teve filhos, mas foi separada da família e passou a sofrer maus tratos na fazenda para onde foi transferida. Um dia, decidiu denunciar as violências que ela e as pessoas negras do seu entorno vinham sofrendo escrevendo uma carta ao governo [da capitania de São José do Piauí]. Essa carta é curta, mas é tão sofisticada que a fez ser considerada a primeira advogada do Brasil.

  • G |Você já passou por lutos de grandes amigos de trajetória, como Marília Pêra, Elke Maravilha e Luiz Melodia. Como voltar a ter tesão pela vida após perdas tão difíceis?

    ZM |

    Tempo, tempo, tempo, tempo [canta Zezé, no ritmo de “Oração ao Tempo”, música de Caetano Veloso]. Caetano tem razão quando compôs essa música, que é uma ode ao tempo, uma homenagem ao tempo. Porque o tempo se encarrega de cicatrizar as feridas e você acaba aceitando que realmente aqui não é o paraíso e que essas perdas fazem parte da vida no planeta em que a gente vive. É só tempo mesmo. Demora muito? Sim. Mas eu confio no tempo e no poder da oração. Quando as coisas ficam muito difíceis, pra mim, é fundamental a nossa conexão com Deus. Há situações em que realmente sem uma fé, a gente não dá conta.

Se a gente perder o tesão pela vida, caímos em depressão. Temos que ter uma motivação para acordar todos os dias e continuar, botar o pé no chão e seguir em frente

  • G |E como continuar tendo tesão pela vida em um mundo racista, etarista e machista?

    ZM |

    Se a gente perder o tesão pela vida, caímos em depressão. Temos que ter uma motivação para acordar todos os dias e continuar, botar o pé no chão e seguir em frente. A depressão é uma doença perigosa que pode levar à finitude, à morte.

  • G |No próximo mês de junho, você completa 80 anos de idade. Qual é o balanço da sua vida até aqui e o que espera do futuro?

    ZM |

    Agradeço todos os dias a Deus. Diariamente, faço a minha oração, quando acordo e antes de dormir. Eu gosto de viver, então, agradeço pelo ar que eu respiro, por estar viva, por ter amigos e familiares, por ter prestígio e disposição para o trabalho. Um dos desconfortos da vida é ter consciência da morte, da finitude. Por isso, eu procuro manter firme essa gratidão. Minha mãe viveu até os 95 anos, então eu espero viver até lá. Até pouco tempo atrás, eu dizia que queria viver até os 90, mas conforme foi chegando mais próximo, passei a meta para os 95, desde que com saúde física, mental e espiritual.

  • G |O que te dá tesão hoje?

    ZM |

    Tudo o que faz parte da minha vida, como o trabalho e a convivência com os amigos e com a família, me dá tesão. As expectativas, também. Lembro que até poucos anos atrás, eu brincava com a minha filha mais velha, dizendo: “É muito bom ter filhos, pena que vocês crescem”. Criança é tudo. Minha filha ficava furiosa. Então, agora, tem a vida que se renova, tenho os netos para curtir. Eles estão por aí, tenho neto em Maceió, neto no Canadá e agora tem uma caçulinha aqui no Rio de Janeiro. Eu sou privilegiada porque o meu tesão pela vida está sempre se renovando com essas coisas que eu mencionei: trabalho, família e amigos. É muito legal essa coisa da expectativa por um filme que vai estrear, por exemplo, a expectativa sobre qual será o próximo trabalho. Também tem as redes sociais, que foram crescendo na pandemia e, hoje, faço muita publicidade no Instagram. Veja só, depois de idosa virei garota-propaganda. É importante as pessoas me verem na atividade com essa idade e dizerem: “Nossa, não é o fim da linha”. Enfim, não faz parte dos meus planos me aposentar. Eu só vou parar quando Deus me aposentar.