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ReportagemAté onde vai a privacidade do relacionamento nas redes?
Do envio de nudes a posts sobre a intimidade do casal, como definir regras e limites para a exposição do relacionamento amoroso nas mídias sociais
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Até onde vai a privacidade do relacionamento nas redes?
Do envio de nudes a posts sobre a intimidade do casal, como definir regras e limites para a exposição do relacionamento amoroso nas mídias sociais
Em julho, a ex-BBB e influenciadora Maíra Cardi, atualmente num relacionamento com o influencer e escritor Thiago Nigro — criador do canal do YouTube O Primo Rico —, tomou uma atitude que pode ser o pesadelo dos defensores da privacidade nas redes sociais. Em seu perfil no Instagram, Cardi compartilhou uma série de mensagens elogiosas e um tanto ousadas que o noivo vinha recebendo de uma seguidora, cuja identidade ela expôs com a legenda “alguém aí para apagar o fogo da …”.
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Além das críticas por tornar público o perfil da usuária e também pela suposta insegurança no próprio relacionamento, Cardi gerou polêmica ao revelar que ela e Nigro compartilhavam entre si as respectivas senhas nas redes. “Acho ridícula e insegura [a atitude] de um modo nocivo e impertinentemente invasivo”, chegou a criticar a cantora, atriz e também ex-BBB Linn da Quebrada.
Embora boa parte dos casais não chegue a esses extremos na hora de lidar com a privacidade individual e a intimidade amorosa em suas redes, definir limites e um meio-termo entre as expectativas online ainda é um desafio para muita gente envolvida num relacionamento amoroso. Até porque hoje interagir nas redes é quase tão inevitável quanto respirar. O que, como aponta a psicóloga Ligia Baruch, autora do livro “Tinderellas: o amor na era digital” (e-galáxia, 2019), também vai se refletir de forma inevitável na relação do casal.
“Os aplicativos de namoro e redes sociais interferem inclusive no rompimentos de vínculos ou na forma de lidar com a exposição excessiva do parceiro que quer falar sobre a vida conjugal a partir de sua imagem pública”, afirma Baruch, que lembra que a relação acaba sempre afetada quando o parceiro não pretende ter esse mesmo nível de exposição.
Estamos vivendo um embaralhamento do público e privado. As próprias redes deixaram borrada essa linha antes muito clara
Para muita gente, compartilhar senhas ou recorrer a demonstrações ostensivas como a boa e velha foto de casal no perfil são provas públicas de amor — assim como uma maneira de mostrar ao mundo a felicidade do casal. No entanto, para especialistas, mesmo que consentidas, várias dessas práticas podem configurar invasão de privacidade, insegurança e tentativa de controle do parceiro. Na verdade, um estudo da revista científica estadunidense Personality and Social Psychology Bulletin apontou que casais que evitam expor a relação nas redes tendem a ser mais felizes — o que também não é regra nem deve ser levado a ferro e fogo.
Se para alguns essas questões podem parecer apenas um capricho, a discussão desses limites dentro de um relacionamento envolve pontos essenciais no mundo de hoje: a segurança de dados pessoais, a privacidade de filhos e até mesmo a exposição do corpo, especialmente de mulheres, seja por meio de nudes ou vídeos compartilhados sem consentimento.
“Estamos vivendo um embaralhamento do público e privado. As próprias redes deixaram borrada essa linha antes muito clara”, considera a psicóloga. “Esse dilema é cada vez mais atual, e o limite depende de cada casal, de cada família. Vai implicar em toda uma negociação sobre aquilo com que cada um fica confortável na exposição da vida íntima.”
A (in)segurança dos nudes
A prática de compartilhar nudes ou gravar vídeos de conteúdo sexual já gerou tantos problemas, principalmente para mulheres, que organizações como a Coding Rights, que promove a proteção e promoção dos direitos humanos online, precisaram criar mecanismos de defesa para as usuárias. O “Guia Sensual de Segurança Digital”, elaborado pela organização, não chega a desaconselhar o envio de nudes, mas apresenta estratégias para compartilhá-los com mais segurança. Entre as dicas, a organização inclui enviar imagens que não mostrem seu rosto, usar somente canais seguros para compartilhá-las e sempre lembrar de deletar ou esconder tudo com segurança depois.
No consultório da psicóloga Adriana Nunan, a recomendação é mais radical. “Jamais tirar fotos nuas, em hipótese alguma, não importa se é para o marido de 30 anos ou o namorado de dois meses”, declara a profissional, uma das organizadoras do livro “Relacionamentos Amorosos na Era Digital” (Editora dos Editores, 2019).
Segundo a psicóloga, é importante lembrar que mesmo alguém com quem você conviveu num relacionamento de muitos anos pode mostrar uma outra face mais sombria após o término. É o que acontece na chamada “revenge porn”, ou pornografia de vingança, em que o ex-parceiro divulga cenas íntimas do outro como forma de constranger e humilhar a vítima. Uma outra possibilidade é o celular ou computador ser hackeado ou até mesmo acabar caindo nas mãos de um terceiro, que acabaria tendo acesso às imagens.
E se…?
Como aponta a diretora do think tank InternetLab, Mariana Valente, em seu novo livro “Misoginia na Internet” (Fósforo, 2023), para ser vítima da disseminação não consentida de imagens íntimas, “basta ser mulher”. Na obra, o capítulo que trata do assunto reúne uma série de exemplos de casos em que imagens das vítimas são divulgadas para extorqui-las financeiramente, por vingança devido ao término do relacionamento ou até como estratégia para forçá-las a manter relações sexuais com o perpetrador.
Dos 90 casos analisados no livro, apenas quatro tinham homens como vítimas. A autora pontua a diferença: “Uma imagem íntima de uma mulher tem o condão de destruir uma carreira e relações familiares e comunitárias, enquanto a de um homem muitas vezes é esquecida em poucos dias.”
A gente não deveria sofrer uma violência por se expor num momento em que se sente confortável
Tempos atrás, viralizaram no Twitter denúncias contra homens que tiravam fotos íntimas de suas esposas dormindo e compartilhavam em grupos de amigos sem nenhum tipo de autorização. “É desesperador pensar que, em 2023, isso ainda acontece dessa forma”, diz a jornalista e escritora Michele Contel, autora de “Amores Eternos de um Dia” (Paralela, 2018). “Antes a gente ficava muito presa a essa ideia de que quem vaza as imagens é alguém que você mal conhece. Mas pode acontecer até quando se é casada.”
Para a jornalista, o problema faz com que as mulheres, mesmo quando querem apenas curtir e se expressar livremente, estejam sempre com uma pulga atrás da orelha. “A gente não deveria sofrer uma violência por se expor num momento em que se sente confortável. A mulher até pode acabar fazendo, por querer muito aquilo, mas sempre vai ficar aquela pequena dúvida no fundo: e se…?”
Contratos, liberdades e limites
Desde likes em fotos sensuais até a troca de mensagens sugestivas, mesmo quando não há um contato físico de fato, as possibilidades de interações nas redes sociais abriram o leque para ações hoje descritas como “microtraições”. As atividades acabam entrando inclusive no rol daquelas mais difíceis de definir, que podem significar uma coisa para um dos parceiros e algo completamente diferente para o outro.
É mais ou menos o mesmo que acontece em relação ao nível de exposição da vida íntima do casal nas redes sociais, de acordo com especialistas. E nem é necessário que um dos dois seja influencer ou tenha um trabalho diretamente ligado ao uso cotidiano das redes, que pode requerer falar da rotina familiar ou até da relação amorosa — situação extrema que pode gerar uma cisão profunda entre o casal, caso um dos parceiros não concorde ou adote uma utilização bastante oposta da internet.
Cada parceiro tem que informar o outro das suas limitações, das suas restrições, o que te faz mal ou não
Para Contel, que é casada e hoje utiliza as redes com bem menos frequência que o marido, o diálogo na hora de estabelecer limites e uma relação saudável dentro e fora da internet é sempre fundamental. “Se me incomoda, preciso ser clara e avisar que incomoda. Não existe uma regra. Cada parceiro tem que informar o outro das suas limitações, das suas restrições, o que te faz mal ou não”, afirma.
Por outro lado, também é importante que as restrições não acabem limitando demais a liberdade do outro. Até por isso a jornalista defende que a conversa trate dos sentimentos e limites pessoais, e não de imposições. “Assim a gente sai de um lugar de julgamento, porque você avisa seu parceiro do porquê aquilo te faz mal. É sobre entender as suas limitações.”
Uma conversa mais profunda sobre a importância e o ganho pessoal ou profissional desse uso das redes pode ajudar inclusive a definir melhor essas regras sem degringolar para uma briga, aponta a psicóloga Adriana Nunan. “Precisa conversar sobre o que significa para você ou para o outro postar algo. O que vocês vão ganhar e perder com isso? Quais as consequências?”
Filhos e redes
Para um jovem publicitário de São Paulo, os conflitos com a esposa em torno do uso das redes começaram com o nascimento do filho, em 2021. Com uma base de mais de 50 mil seguidores no Instagram e um ganho mensal considerável por meio de publicidade e contratos com marcas voltadas para a rotina doméstica, ela se conectava com boa parte de seus usuários falando sobre o dia a dia e a intimidade do casal.
“Já sentia que vinha perdendo um pouco da naturalidade e liberdade da relação, mas não tínhamos chegado a ter uma briga séria sobre isso, porque ela já era usuária hardcore das redes quando nos conhecemos”, conta o publicitário, que prefere não ter seu nome divulgado. A entrada de uma criança na equação, no entanto, acabou sendo a gota d’água.
“Ela começou a postar uma série de situações em casa com nosso filho que considerei um exagero. Tivemos algumas discussões feias na época”, lembra. Com a crise, o casal passou a formular regras mais claras sobre o que e como postar a intimidade, principalmente quando envolvia a criança. “Agora ela conversa comigo antes de postar sobre quase qualquer coisa da nossa vida.”
Segundo Nunan, o dilema da privacidade nas redes ganha contornos ainda mais críticos na maioria das relações que envolvem crianças. “Uma pessoa pública está mais exposta a violências de diversos tipos, como assaltos e sequestros. E falar da rotina de um filho com os seguidores pode ser um risco adicional”, afirma.
A própria psicóloga optou por não postar nada que exponha o filho pequeno, não só por uma questão de proteção, mas também por sentir que a criança ainda não tem autonomia sobre a própria imagem. “As pessoas às vezes nem sabem que sou mãe”, conta. “Ele não tem capacidade para autorizar uma postagem, ainda é muito pequeno. Quando for adolescente ou adulto, ele posta o que achar que deve, mas não vou fazer isso por ele.”
Contel, que hoje tem uma filha de um ano, também já teve esse diálogo com o marido, e os dois acabaram chegando a um acordo mútuo. “Até porque na internet a gente não tem como saber o alcance e as consequências daquilo que publica. É diferente de um post que depende única e exclusivamente de mim, do meu sentimento, e do que o outro vai fazer com essa informação. Quando envolve uma terceira pessoa, uma criança, tem que ter um acordo muito bem fechado.”
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