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Ilustração de Isabela Durão

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Reportagem

As livrarias do século 21

Marcado pela queda das grandes redes, a ascensão das livrarias independentes e a briga contra o varejo online, o setor vive um momento de profundas mudanças

Leonardo Neiva 20 de Abril de 2025

As livrarias do século 21

Leonardo Neiva 20 de Abril de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Marcado pela queda das grandes redes, a ascensão das livrarias independentes e a briga contra o varejo online, o setor vive um momento de profundas mudanças

Qual a última vez que você foi a uma livraria? O mais provável é que, mesmo que já tivesse esse hábito, tenha reduzido suas visitas às prateleiras de alguma loja física. Seja por conta da derrocada financeira nos últimos anos de grandes redes como a Saraiva e a Cultura, duas das maiores e mais importantes representantes do setor, seja pelo aumento considerável no número de vendas online ou pela crise que se abateu sobre o mercado editorial ao longo da última década, a compra de livros em lojas físicas vem decaindo gradualmente no Brasil.

Mas também há algumas, mesmo que poucas, notícias positivas. As últimas pesquisas demonstram que o mercado livreiro está encontrando saídas para a situação. Outras empresas — a exemplo da Leitura, que vem abrindo novas unidades — estão absorvendo parte dos leitores órfãos das redes que quebraram. E, como aponta a mais recente pesquisa Panorama do Consumo de Livros, divulgada em janeiro, as compras em livrarias de bairro também têm crescido de forma significativa — houve um salto de 4,5% em relação ao consumo total de 2023 a 2024.

Oferecendo experiências personalizadas e um atendimento mais acolhedor, as livrarias independentes têm se proliferado e chamado a atenção em grandes cidades como São Paulo e Belo Horizonte. Só em 2022, cerca de 100 novas livrarias abriram no Brasil, segundo dados da Associação Nacional de Livrarias (ANL). Tanto que, em meio à crise econômica enfrentada pelo país no período, houve uma redução de apenas 1,8% no total de lojas físicas entre 2013 e 2023.

O movimento livreiro tem sido tradicional ao resgatar as relações humanas como princípio fundamental das livrarias

“Percebemos que esses jovens livreiros independentes desenvolvem um trabalho coletivo para integrar a livraria à vida do bairro”, destaca Marisa Midori Deaecto, professora da USP e pesquisadora da história do livro e da leitura. Ela considera a tendência atual até um tanto contraditória. “Enquanto os debates do século 21 estão voltados para as tecnologias, para o fim das relações interpessoais e a ideia de uma solidão cibernética, o movimento livreiro tem sido, paradoxalmente, tradicional ao resgatar as relações humanas como princípio fundamental das livrarias.”

O presidente da ANL, Alexandre Martins Fontes, também à frente da livraria e editora que levam seu sobrenome, ainda considera o cenário do mercado livreiro alarmante. “Hoje, as livrarias enfrentam dificuldades muito grandes, com problemas para arcar com os seus próprios custos”, afirma a Gama. “Em dez anos, se levarmos em consideração somente as três grandes redes (Saraiva, Cultura e FNAC), o Brasil perdeu mais de 130 mil metros quadrados de livrarias. E o triste destino dessas empresas não é mera coincidência.”

Além da queda no número de leitores e nas vendas de livros, evidenciadas em pesquisas recentes, o presidente da ANL aponta como maior vilã do setor livreiro a concorrência com a Amazon e sua política de descontos impraticáveis em lojas físicas — já que estas precisam arcar com os custos de toda uma estrutura que envolve aluguéis, contratações etc.

A Amazon vem lentamente estabelecendo um monopólio no setor editorial brasileiro

“Ao usar o livro como isca, ao vendê-lo com descontos de 30%, 40%, 50% com o único objetivo de aumentar o fluxo de clientes em seu site, a Amazon vem lentamente estabelecendo um monopólio no setor editorial brasileiro”, afirma.

Procurada pela Gama, a Amazon se posicionou sobre o tema: “Na Amazon, acreditamos que autores, editoras e livrarias trabalham juntos para conectar leitores a livros”, afirma a empresa em nota oficial. “Trabalhamos todos os dias para oferecer aos consumidores preços baixos em toda a nossa ampla seleção de produtos, com entregas rápidas e confiáveis. Isso vale para todos os nossos produtos, incluindo livros.”

Fontes também destaca “o grande número de livrarias menores abrindo pós-pandemia”, com um modelo de negócios mais enxuto e estratégico. “Apostam na curadoria, no vínculo com a comunidade local, em eventos culturais e na experiência personalizada como diferenciais frente à impessoalidade do comércio online.” Mas, mesmo com o impacto positivo para o total de livrarias do país, ele recomenda olhar esses números com cautela. “O aumento no número não significa necessariamente que o setor está saudável.”

Terra sem lei

Numa crise de proporções mundiais, com as vendas globais de livros hoje abaixo do patamar de 2017 e quedas acentuadas como herança do período pandêmico, é importante localizar essa realidade das livrarias brasileiras na comparação com o cenário geral. Segundo Fontes, o mercado livreiro no mundo hoje gira em torno de algumas tendências centrais: “diversificação de formatos, sustentabilidade e valorização da experiência cultural presencial”. Alguns países, como França, Alemanha e Japão, aprovaram políticas públicas para proteger a diversidade da cadeia do livro, o que também gera um mercado mais concentrado nas lojas físicas.

Na França, a legislação proíbe o frete grátis e estabelece um teto de 10% de descontos nos primeiros 12 meses de lançamento de um livro — mesma proposta da Lei Cortez, cuja aprovação é defendida pelo setor no Brasil. A Alemanha também tem leis tradicionais de controles de preços para evitar a concorrência predatória. Já o Japão, que tem estudado novas formas de apoiar livrarias, criou um modelo em que as lojas podem alugar prateleiras e estantes a terceiros que querem vender livros.

O presidente da ANL vê o Brasil inserido nas transformações globais desse mercado, mas “com características muito próprias”. Lá fora, por exemplo, livrarias independentes também têm se multiplicado. Claro que há uma diferença considerável em dimensões, principalmente na comparação com países mais desenvolvidos. Enquanto a ANL estima que o Brasil possui 2.972 livrarias — mais de um terço delas só no estado de São Paulo —, um país como EUA tem mais de 64 mil, um módico abismo de 2.200%. Mesmo a Alemanha ou a França, consideravelmente menores em território e população, têm mais livrarias que aqui, ambas ultrapassando a barreira das 3.500 lojas

“Estamos, sim, refletindo algumas tendências internacionais, como a busca por experiências culturais mais autênticas e locais.” No entanto, outra diferença, ele diz, está justamente na falta de uma estrutura regulatória mais definida, que garanta um mercado mais saudável.

Nesse sentido, vivemos uma realidade mais próxima da dos Estados Unidos, onde também não há uma legislação para controlar os preços aplicados sobre os livros. “Nos EUA, a Amazon representa mais de 50% do mercado editorial, e as livrarias independentes do país vêm lentamente fechando suas portas. Na Alemanha, onde há décadas prevalece uma lei que impede a concorrência predatória, a Amazon representa somente 18% do mercado livreiro”, reforça Fontes. E pesquisas recentes corroboram essa visão: 49% dos brasileiros afirmam que prefeririam comprar livros presencialmente se o preço fosse equivalente ao online, de acordo com o Panorama do Consumo de Livros.

O Brasil é uma espécie de faroeste, de terra sem lei. Se você compara com países como Alemanha e França, não tem nada

“A impressão que se tem trabalhando com livro é que o Brasil é uma espécie de faroeste, de terra sem lei. Se você compara com países como Alemanha e França, não tem nada”, considera João Varella, editor da Lote 42 e criador das livrarias Banca Tatuí e Gráfica, em São Paulo. Embora tenha citado exemplos europeus, ele também destaca que não é preciso ir longe. A Argentina — cuja capital, Buenos Aires, está entre as cidades com maior número de livrarias por habitantes no mundo — possui desde 2001 uma lei de preço fixo para os livros.

“A literatura lá é vista como um pilar nacional, é parte da identidade argentina. E aí você tem essa diversidade muito grande de livrarias. E tem pequenas editoras que vivem de vender livros muito específicos, plaquetes de poesias contemporâneas, em três, quatro livrarias”, conta Varella. “Como a coisa está um pouco mais regulamentada, as editoras não precisam fazer algo que aqui no Brasil está ficando comum, que é vender direto para o consumidor final por falta de canais, de livrarias.”

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Circuitos literários

O livreiro e editor acaba de abrir, ao lado da esposa e sócia Cecilia Arbolave e do designer Gustavo Piqueira, uma dessas livrarias supersegmentada, que se dedica a um tema apenas e bastante específico, na região central de São Paulo: a Livraria Gráfica. Assim como a também paulistana Gato Sem Rabo, focada em livros escritos por mulheres, ou a pequena Vertov, de Curitiba, cuja coleção é centrada em temas de humanidades e em diversidade, entre várias outras, a livraria traz volumes de um assunto só. No caso, contém apenas livros que falam de livros.

Varella também está à frente da Zona Livreira, iniciativa lançada em março que reúne em um mesmo roteiro literário cinco livrarias próximas, também no centro. Já nos panfletos da iniciativa, em que os livros aparecem propositalmente como produtos de mercado em promoção, a descrição do trajeto entre os estabelecimentos é precisa: “Você desce no metrô Santa Cecília. Sobe ao lado da igreja, segunda à direita, segunda à esquerda…” Além da Banca Tatuí e da Gráfica, engloba a Ponta de Lança, a Sentimento do Mundo e o Sebo da Ponta.

Livrarias passam a se confundir com centros culturais, ao extrapolar a atividade de vender livros com a oferta de experiências para atrair mais público

A iniciativa é mais um passo numa caminhada que vem transformando as livrarias em centros culturais, que extrapolam a atividade pura e simples de vender livros buscando atrair público com a oferta de experiências. É a filosofia que integra as atividades da também paulistana Megafauna, no Copan, que abriu em 2024 sua segunda unidade bem pertinho dali, no teatro Cultura Artística.

“É muito importante quando a gente organiza eventos e debates, porque isso traz público para a loja”, destaca a editora e crítica literária Rita Palmeira, curadora de livros da Megafauna. “Quando começamos, os sócios decidiram que a gente não faria um lançamento de livro sem alguma conversa, leitura ou performance. Isso já nasce com a ideia da livraria de ser um espaço cultural.”

As ações da Megafauna também se estendem à produção dos podcasts “Vinte Mil Léguas” e “Livros no Centro” e de eventos voltados para o mundo literário. Um dos mais ousados é o circuito Poesia no Centro, que ocorre de 5 a 16 de maio na região central da capital paulista e vai envolver 100 poetas, além da realização de atividades em livrarias e museus da região, e da Biblioteca Mário de Andrade.

Eventos desse porte, especialmente voltados para a poesia, ainda são raros aqui no Brasil. “Um festival é certamente o maior dos desafios. Vai ser bonito”, conta Palmeira, que também reflete sobre a necessidade em comum das empresas do setor de diversificar e atrair público. “Você tem que fazer alguma coisa que seja muito particular, que não tem como substituir pela experiência online.”

Festivais do tipo são mais comuns lá fora. No caso dos nossos vizinhos, a Argentina já realiza o tradicional Festival Internacional de Poesia, durante a Feira do Livro de Buenos Aires, que este ano vai para sua 18ª edição. Varella também conta que a sócia, Cecilia Arbolave, esteve recentemente num festival de livrarias independentes na Filadélfia, EUA — que, nesse caso, englobava mais de 40 lojas.

“O que ela notou, que a gente não faz muito por aqui, é uma postura anti-Amazon declarada. Tinha até livraria com cartazes na entrada, dizendo: não use o celular aqui dentro”, conta o livreiro. Segundo ele, em outros países, esse debate já ganhou contornos mais políticos, que interferem inclusive no consumo. “Lá a chapa está mais quente. Alguns livreiros disseram que o fato do Bezos ter apoiado o Trump até ajudou nas vendas, porque muitos leitores críticos ao governo foram apoiar.”

Uma realidade desigual

Apesar da importância de iniciativas como essa, o setor ainda enfrenta uma falta crônica de livrarias fora da região central ou de áreas abastadas das grandes cidades. Além disso, a nível nacional, as regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste contam com apenas 26% do total de livrarias do país, ainda fortemente concentradas no Sudeste e Sul. Segundo o IBGE, em 2017, apenas 17,7% dos municípios brasileiros tinham pelo menos uma livraria. Num cenário como esse, plataformas online como a própria Amazon fazem diferença em termos de acesso.

“Essas iniciativas não podem se restringir apenas a bairros em processo de gentrificação ou a áreas de classe média — onde, diga-se de passagem, muitas vezes se instalam à revelia, seguindo o fluxo de uma cidade que continua sem acesso a esses espaços”, reflete Deaecto, estudiosa da história do livro.

“Essa realidade não apenas evidencia, mas também reforça a desigualdade. Trata-se de um Brasil onde as livrarias são exceção, um cenário radicalmente diferente do de países mais desenvolvidos, onde esses estabelecimentos estão amplamente distribuídos e presentes em todas as partes.” Ela também defende uma intervenção do poder público, com políticas de estímulo à abertura de livrarias nos comércios de bairro, com descontos em impostos, subsídios para aluguéis e ações de apoio a microempreendedores.

Varella destaca que, pelo Brasil, os estabelecimentos existentes costumam suprir públicos diferentes dependendo da localização. Ele lembra que, em cidades menores, alguns servem mais como papelarias do que propriamente livrarias. E há cidades como Goiânia, explica, em que o que prevalecem são os sebos. “São vários modelos de livrarias, que atendem demandas locais. Por isso é interessante fortalecer a cultura literária como um todo, porque aí você passa a ter um público que acompanha lançamentos e o debate público de forma mais qualificada.”

Sobre a realidade atual desse negócio, o presidente da ANL, Alexandre Martins Fontes, destaca que as pequenas livrarias representam sim um avanço em termos de diversidade cultural e presença territorial, mas ainda têm participação tímida no volume total de vendas. “Muitas delas enfrentam imensas dificuldades para se manter, justamente por operarem em um ambiente de concorrência desleal.”

São as ferramentas de que a gente dispõe: criar um espaço acolhedor, com um café em que os livreiros têm uma relação efetiva com o livro

Os livreiros consultados por Gama apontam que o fato de cada livraria de rua ter características específicas e únicas — ao contrário da uniformidade das grandes redes, com lojas geralmente localizadas em shoppings — ajuda a formar um público frequentador mais assíduo, fazendo com que o visitante tenha experiências distintas ao adentrar cada uma delas.

“Perto de onde eu moro, tem a Miúda, que é uma livraria genial para crianças na Pompeia. É um programa em que muitos pais levam as crianças de manhã”, dá como exemplo Palmeira. “São as ferramentas de que a gente dispõe: criar um espaço acolhedor, com um café em que os livreiros têm uma relação efetiva com o livro, transmitida aos clientes, que muitas vezes se tornam amigos.”

Colaborou Sarah Kelly

Um assunto a cada sete dias