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ReportagemSó é bom negócio se tiver propósito?
Gama investiga a apropriação do discurso de propósito por empresas, se essa é de fato uma nova tendência dos negócios e o que podemos tirar dela
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Só é bom negócio se tiver propósito?
Gama investiga a apropriação do discurso de propósito por empresas, se essa é de fato uma nova tendência dos negócios e o que podemos tirar dela
Quem se arrisca a investigar a aba “quem somos” em sites de marcas de diferentes setores possivelmente se espanta com a semelhança no discurso. De skincare a bebidas alcoólicas, passando por moda e alimentos, parece não haver mais empresa que não levante uma bandeira para fazer deste um mundo melhor. Todas passaram a abraçar causas, e se comprometem a impactar positivamente sua comunidade.
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A lista de exemplos é longa e inclui nomes de gigantes, como a varejista Magazine Luiza, que criou a campanha “Mete a Colher” em 2018, e se posicionou contra a violência doméstica; até menores, como a Positiva, que vende produtos de limpeza e higiene pessoal veganos e ecológicos e mergulhou na campanha contra a covid-19: incentivou a vacinação, compartilhou cuidados adequados para conter a transmissão do vírus e ainda associou a ação a seu manifesto — assim com a lógica da vacinação, o trabalho da marca é em rede. Fora do país, a prática também é comum. A canadense Cuddle and Kind, a cada boneco artesanal vendido, doa dez pratos de alimento para crianças; e a norte-americana Toms, conhecida por suas alpargatas, diz que “transforma seus consumidores em benfeitores”, já que doa um par de sapatos a cada par vendido nas lojas.
Quando todas as empresas começam a oferecer produtos absolutamente equivalentes, a diferença precisa ser construída simbolicamente
De certa forma, a estratégia tem a ver com a sobrevivência dos negócios, ainda mais na pandemia, que deixa de ser centrada apenas na lógica de mercado e oferece uma justificativa que vai além do simples consumo para quem compra. “Quando todas as empresas começam a oferecer produtos absolutamente equivalentes na sua materialidade ou nos seus benefícios, a diferença precisa ser construída simbolicamente”, explica Bruno Pompeu, professor de publicidade de faculdades como USP e ESPM, além de sócio da Casa Semio, uma organização voltada ao estudo da semiótica. Há uma necessidade de diferenciação, e também de reconexão das marcas com os consumidores, já que com a chegada das redes sociais e algoritmos, a decisão da compra saiu de mãos humanas para ser de alçada tecnológica. “É um antídoto contra essa transferência.”
Quando o mundo é assolado por uma crise de saúde pública, acompanhada por uma forte recessão econômica, o que acontece é uma espécie de seleção natural — sobrevivem as mais adequadas ao ambiente, conscientes e evoluídas. “É de se esperar que as empresas que fossem sobreviver depois desse tsunami que passamos tivessem esse tipo de consciência, um propósito”, explica o especialista na área de voluntariado corporativo e diretor da MNG Consultoria Marcelo Nonohay. “Não sei se arriscaria dizer que graças a essa consciência elas sobreviveram. Elas já estavam mais aptas a sobreviver, e até por isso mais conscientes de que não dá para, em um momento como esse, se fechar nos muros da empresa.” Estamos frente a uma nova era dos negócios.
O fenômeno
Ao contrário do que você possa imaginar, uma marca que manifesta um propósito não é algo novo nos negócios. Na década de 1970, o célebre autor, professor e consultor de marketing norte-americano Philip Kotler lançou um livro e um artigo que explicavam o que ele chamou, na época, de marketing social. Segundo ele, era aplicado a organizações sociais, não mercadológicas, com o objetivo de ampliar sua atuação. Mas Kotler diferenciou esse conceito de outro: o marketing societal, que seriam ações com finalidades sociais em empresas ditas normais, que visam o lucro. “É um marco importante, que sinaliza, desde sua origem, uma aproximação entre as esferas pública e privada”, explica o professor Bruno Pompeu.
Segundo ele, existem algumas formas de analisar o fenômeno da apropriação do discurso de propósito pelos negócios. Uma das visões vem de uma perspectiva crítica, baseada no pensamento marxista, que questiona: até que ponto uma empresa, que tem o lucro como finalidade, pode estar comprometida com o bem-estar coletivo, social e comunitário?
Uma segunda reflete sobre a diminuição do papel estatal. Dentro deste ponto de vista, o governo e suas instituições perdem força em meio ao discurso do Estado mínimo, e assim, empresas precisam ter propósitos e abraçar causas como forma de suprir a falta de um Estado mais atuante. Dessa maneira, os negócios assumem, na nova configuração do sistema social e político, um papel de manutenção do bem-estar das pessoas. “Isso tem a ver, por exemplo, com o fato de que empresas com propósito cresceram na pandemia. Sim, porque elas ocuparam uma função estatal”, diz Pompeu.
Já uma terceira maneira de enxergar o fenômeno, talvez mais contemporânea, se relaciona com o que alguns definem como capitalismo de vigilância. Nesse contexto, em que entende-se que as empresas se sustentam por meio da captação, gestão e venda de dados dos indivíduos, os negócios precisam oferecer algo em troca. Se essa nova lógica de mercado digital causa efeitos negativos e nocivos à sociedade, é como se a empresa buscasse um discurso que legitime sua atuação — assim, continuamos comprando sem culpa ou vontade de sumir da internet. “Aí você tem a Uber, por exemplo, fazendo campanha antirracismo ou antiassédio. Ou o Facebook se responsabilizando por levar internet à África”, diz Pompeu. A mineração de dados e golpes digitais é uma realidade, e Gama já elencou dicas para se proteger.
Nem só de empreendedorismo social vive o propósito
É crescente o número de empresas que já nascem com objetivo de impactar positivamente a sociedade intrínseco a seu DNA. O advogado Joel Luiz e os empreendedores Monique Evelle e Gustavo Glasser são alguns exemplos de nomes que seguiram o caminho do empreendedorismo social. Esse tipo de negócio tem enorme prestígio, e atualmente é visto com bons olhos pela sociedade. “Há algumas décadas ninguém ia pensar em abrir uma empresa com propósito. O objetivo era ter um produto ou serviço que suprisse uma necessidade, e um negócio que fosse viável economicamente. A própria evolução das discussões hoje abre um leque para outros tipos de negócios”, analisa Marcelo Nonohay, especialista em voluntariado corporativo.
Mas além dos empreendedores, há também espaço para que grandes empresas, mais tradicionais, se tornem aliadas do fenômeno, seja por meio de investimentos sociais privados, seja pela criação de uma nova iniciativa, dentro da marca, que adota um propósito específico. Um exemplo: uma empresa financeira que cria um braço para fazer a bancarização de pessoas da periferia, com menos acesso. A definição de propósito, no contexto empresarial, não tem uma definição única. “Vai muito de como o negócio define sua missão e, claro, se o mercado compra a ideia. Não adianta nada uma empresa dizer que tem propósito se o consumidor não enxerga dessa forma.”
Hoje, as empresas precisam fazer mais, o que tira a eficiência máxima. Mas dá para fazer. É preciso rever parâmetros, ajustar as expectativas
É fato que uma iniciativa com propósito, que se posiciona frente à injustiças, promove mudanças e atrela isso ao produto ou serviço que fornece, valoriza sua reputação. Mas ainda é preciso ter em mente que abraçar causas vem com um custo. “Isso exige uma discussão dura, que é: não podemos esperar eficiência máxima das empresas, porque aí você usa, por exemplo, embalagens mais baratas, e portanto mais poluidoras”, explica Nonohay. “Hoje, só cumprir a lei não é mais suficiente, a empresa precisa fazer mais, o que tira a eficiência máxima. Mas dá para fazer. É preciso rever parâmetros, ajustar as expectativas de um negócio.” Talvez o resultado financeiro seja menor, mas os efeitos sociais serão maiores.
Não só a comunidade se beneficia pelo propósito nos negócios — o ambiente interno das empresas, segundo especialistas, é positivamente afetado também. Há um desejo, por parte dos empregadores, de identificarem na empresa e em seus chefes valores similares àqueles que carregam. Essa conexão dá sentido ao trabalho. “As pessoas têm esse orgulho de pertencer, sentem que vale a pena trabalhar para aquela empresa.”
A caixa de vidro das empresas
“Tendo a questionar bastante quais são as possibilidades de uma empresa abraçar um propósito, porque acho que isso é sempre dependente do lucro. E principalmente porque surte um efeito colateral muito ruim, de esvaziamento da função e descrença no Estado”, responde o professor de tendências Bruno Pompeu. Além das consequências que aponta, é inevitável que a pergunta manifeste-se rapidamente na cabeça: será, então, que isso tudo não é balela?
Ana Carolina Souza, neurocientista e sócia da Nêmesis, iniciativa que oferece assessoria e treinamento aplicando conhecimentos da neurociência organizacional, explica a magia e definição por trás do conceito de propósito. Segundo ela, é uma motivação intrínseca, capaz de estimular o comportamento e causar uma sensação de pertencimento. Mas mais do que tudo, o propósito é algo genuíno, tanto no âmbito particular, de cada indivíduo, quanto no contexto empresarial. Dá para dizer que negócios que usam o discurso de propósito como pura estratégia de marketing, quando isso fica evidente para o exterior, perdem a máscara de responsáveis e saem prejudicadas.
Consumidor é uma pessoa, e pessoas têm sentimentos, sonhos, exigências, causas. Não é apenas um público alvo
Claro que o mundo não está livre de perversidade e oportunismo. Ainda existem negócios que ou levantam bandeiras sociais da porta para fora e, no ambiente interno, agem no sentido oposto aos valores que pregam; ou adotam propósitos para, simplesmente, aumentarem as vendas e surfarem no sucesso do fenômeno. Se gigantes que passaram a se movimentar em prol de questões sociais fazem isso por pressão externa e política, jamais saberemos. Seja qual for o motivo, o impacto positivo é, invariavelmente, gerado. A Natura é um exemplo: foi a primeira empresa de capital aberto certificada pelo Sistema B, que atesta negócios responsáveis e que balanceiam lucro e propósito. Além de gigante na economia, desde 2007, é carbono neutro, promove relacionamento com comunidades da floresta amazônica e combate o desmatamento.
Entretanto, é evidente que as organizações se aproximam cada vez mais do que a neurocientista Ana Carolina definiu como caixas de vidro — ou seja, não conseguem manter uma apresentação pública de marca que não seja verdade internamente. “Isso vai ficando mais difícil com as redes sociais. Cada colaborador é uma vitrine em potencial. A empresa se torna frágil, porque não há mais uma fronteira clara entre o que está dentro e o que está fora.” Segundo ela, a teoria é que propósitos arquitetados não se sustentam, e não geram o mesmo impacto social do que um movimento autêntico. Mas esse processo ainda está em formação, em constante movimento. “As empresas ainda estão entendendo o que é propósito, como dar vida a ele dentro da organização. Nesse processo, vão haver momentos de fragilidade. O importante é que o debate se inicia e, conforme o tempo passa, só vai ficar no jogo quem investir de forma verdadeira.”
A empreendedora Monique Evelle aponta para uma consciência social maior e para consumidores com mais filtros na hora de comprar, boicotar ou exigir o que faz sentido. Ela também acredita que as marcas que não se comprometerem com assuntos da humanidade logo deixarão de existir. “Consumidor é uma pessoa, e pessoas têm sentimentos, sonhos, exigências, causas. Não é apenas um público alvo, não é um número. Entendendo isso, as empresas podem afinar e internalizar discursos, e construir produtos e serviços que façam sentido pro mundo. Se não, nem precisam existir”, finaliza Monique.
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