CV: Gustavo Glasser
Fundador da Carambola, startup que leva diversidade ao mercado de tecnologia, diz ter comprado a briga de uma vida: quer acabar com a desigualdade social no Brasil
Aos 19 anos, depois de se assumir gay, o paulistano Gustavo Glasser, hoje com 38, foi abandonado pelos pais. Na época, ainda não se entendia como um homem transgênero, identidade que reconheceu só mais velho, quando fez sua transição, aos 35. Na juventude, precisou trabalhar para sobreviver: ganhava R$ 30 por semana, dinheiro suficiente para colocar comida na mesa — e só. Apesar da trajetória dura, ele a define como uma benção. “Vivi na pele algo que me fez pensar e, talvez, se eu não tivesse vivido, jamais teria pensado nessa solução”, diz ele, referindo-se a sua empresa social, a Carambola, que capacita pessoas para o mercado de tecnologia e leva diversidade para grandes empresas do ramo. Claro que, mesmo tendo essa visão, ele reconhece as dificuldades que precisou enfrentar e brinca, entre risadas, que “resolveu jogar a vida no modo hard”.
Depois de descobrir quanto ganhava um amigo da área de TI, algo em torno de R$ 5 mil por mês no primeiro emprego, Glasser se assustou com a quantia e quis entrar para a área. Encontrou um curso gratuito, de período integral, na Microsoft. Para conseguir se dedicar, largou os bicos e trabalhos braçais que fazia para pagar as contas — e por isso chegou a ficar três meses sem energia elétrica. O curso deu frutos, e Glasser acabou em um cargo dentro de um banco. “Mas percebi que ninguém tinha uma história de vida parecida com a minha. Desde as viagens, as comidas que as pessoas comiam, as experiências que tinham tido. Era tudo diferente. Foi quando surgiu uma inquietação de querer fazer diferente.” Saiu do banco onde trabalhava e fundou seu negócio próprio, com um modelo totalmente novo. “Entendi que eu não precisava fazer as coisas do jeito que as pessoas me diziam.”
Percebi que ninguém tinha uma história de vida parecida com a minha. Foi quando surgiu uma inquietação de querer fazer diferente
Glasser é um verdadeiro questionador e, para ele, não há outra opção senão lutar, mudar, transformar. “A briga que a Carambola quer comprar é a briga de uma vida. Nos propomos a acabar com a desigualdade social no Brasil. Acho que é a briga de umas cinco gerações.” Durante o papo com a Gama, ele falou também sobre a desvalorização de suas experiências pessoais, e como um intercâmbio fora do país muitas vezes vale mais do aquilo que ele teve que enfrentar. “Eu não tenho inglês fluente, mas será que o cara que tem consegue viver com R$ 30 na semana? São experiências diferentes”, questiona. “O fato é que a medida de sucesso é igual para todo mundo, deixa de lado o contexto de cada situação. Tudo que está fora do contexto homem branco heterossexual cisgênero de classe média alta fica atrás nessa corrida.”
A seguir, Gustavo Glasser conta sobre sua trajetória, os desafios e os aprendizados, deixando claro que, para ele, a vida profissional não é uma escolha — é a única opção para continuar existindo.
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G |O que te trouxe até aqui?
Gustavo Glasser |Minha história. Foi apenas depois de passar por tudo que passei que consegui pensar em uma solução como a Carambola. Queria fundar uma empresa de educação, que formasse pessoas e as incluísse no mercado de trabalho. Mas eu não queria dar um curso de graça, porque não queria que ninguém precisasse ficar sem luz, como precisei ficar. Foi quando me perguntei se poderíamos pagar para as pessoas estudarem. E a resposta é sim. É economicamente viável para as pessoas que participam, para as empresas que contratam e para a sociedade, a fim de acabar com essa desigualdade social que não é mais tolerável. Toleramos essa realidade por muito tempo, não dá mais. Provamos um modelo que tem se mostrado sustentável com essa simples pergunta: como mudamos o contexto social das pessoas? Digo que sou um privilegiado, porque na época em que fiquei sem trabalhar, eu tinha o privilégio de ficar sem luz. Porque ficar sem luz não é só viver no escuro, é ficar sem geladeira, sem chuveiro. E tive o privilégio de poder escolher. Se eu fosse uma mãe com três filhos, talvez eu não tivesse essa escolha. A realidade do país é que metade da população não tem acesso a saneamento básico. Então, como a gente cria um modelo que seja compatível com a realidade do país? Nesse sentido que digo que minha história foi uma benção, porque vivi na pele algo que me fez pensar e que, talvez, se não tivesse vivido, jamais teria pensado numa solução dessa. É absurdo que ainda toleramos que as pessoas não tenham saneamento básico ou que sofram exclusão social porque nasceram de tal jeito. Na maioria das vezes, não são escolhas de ninguém, e você vai ter que lidar.
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G |Quais foram seus maiores aprendizados nesses anos?
GG |Um aprendizado que mudou muita coisa para mim foi quando entendi que não precisava fazer as coisas do jeito que as pessoas me diziam que tinha que fazer. Foi esse aprendizado que mais mudou minha cabeça e a direção da minha carreira. As pessoas podem me perguntar por que criei um modelo totalmente diferente, sendo que existem outros já prontos que eu poderia fazer parecido. Mas se fizer da forma como as coisas já foram feitas vou cair no mesmo buraco. É burrice pensar que, se quero acabar com a desigualdade social, tenho que reproduzir um modelo de empresa que existe hoje. Porque o modelo que existe hoje é o que causou a desigualdade. As pessoas não tem água, sabe? Não é um app como o Uber que vai resolver esse problema. Não é um modelo que concentra riqueza que vai gerar distribuição de riqueza. E não sei se achamos que não se pode fazer diferente. Durante toda a minha vida, achei que eu não podia fazer diferente porque “não é assim que as coisas funcionam”. Mas partindo de que ponto? Deixamos que as pessoas coloquem verdades na gente que nem sei se são realmente verdades. Temos que encontrar as nossas. Você vai sofrer consequências disso? Claro que vai, mas seguir o caminho da verdade dos outros também vai trazer consequências. Então, meu maior aprendizado é que arco com as consequências das minhas próprias verdades, e não vou mais arcar com as consequências das verdades dos outros.
É burrice pensar que, se quero acabar com a desigualdade social, tenho que reproduzir um modelo de empresa que existe hoje. Foi esse modelo que causou a desigualdade
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G |Você teve um mentor?
Gustavo Glasser |Meu sócio, que é meu melhor amigo, foi a pessoa que mais me inspirou. Nos conhecemos por um amigo em comum. Acho que o Renato foi a primeira pessoa que teve um olhar diferente para mim. Diferente do que tinham me dito antes, ele falou que eu podia mais, que podia fazer muito. E é legal porque ele tem uma origem totalmente diferente da minha. Falo que nasci do lado de lá da ponte, e ele no de cá, no Jardins, com nome de rua, sabe? Tivemos um processo de aprendizagem mútuo, não foi um mentor inalcançável, em que só um aprende. A gente se conectou e estávamos abertos a olhar para o outro, ambos tínhamos o que ensinar e o que aprender. Fazemos essa troca todos os dias e nos complementamos. Esse processo foi uma construção muito legal. Tirei uma culpa de mim, porque a partir dali não precisei mais lidar sozinho com as coisas. Não preciso saber de tudo. Aprendemos na nossa carreira que precisamos saber de tudo e não que precisamos colaborar com outro. Somos insuficientes, não conseguimos resolver todos os problemas do mundo. E é muito importante ter pessoas que nos complementam. Eu e o Renato nascemos em mundos diferentes, mas temos uma visão de construção de sociedade muito similar, e assim nos unimos.
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G |Você vive para trabalhar?
GG |Trabalho para sobreviver. Não tenho uma separação entre meu trabalho e minha vida pessoal. Meu trabalho reproduz uma forma possível de acabar com a desigualdade social, mas essa é uma pauta que está na minha cabeça o dia inteiro. Não consigo ir ao mercado sem pensar nisso. Consigo me distrair, me desconectar em alguns momentos, mas é um trabalho que temos que lutar o tempo todo. Porque é o meu destino, é o seu, é o de todo mundo. Eu tenho um menino de 14 anos, e se não mudarmos a forma como a nossa sociedade existe, ele vai presenciar uma das duas coisas: ou o fim da sociedade ou vamos acabar com a maneira que está posta. Porque a maneira como existimos no mundo é incompatível com a vida. Então, meu trabalho é uma forma de sobrevivência, entende? É uma forma de atuação para, justamente, continuar existindo. Não é um trabalho, é uma existência.
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G |Como você enfrenta a LGBTfobia no mercado de trabalho?
GG |A questão dos meus pais foi uma agressão que me marcou — o que veio depois disso é irrelevante perto do que sofri. Então, essa medida é muito difícil. Mas tenho percepções. Não acho que seja uma pessoa ativa na causa LGBTQIA+, isso entra na questão de escolher causas e brigas. Enquanto quero acabar com a desigualdade social, tem que ter um cara lá salvando os golfinhos que comem plástico no oceano. Os trabalhos são complementares. Meu trabalho é na consequência do preconceito, tento incluir as pessoas dessa comunidade que são mandadas para fora de casa e morrem de fome. Lido com a exclusão delas, enquanto tem gente que lida com o ‘isso não pode mais acontecer’, e assim a gente se complementa. Em relação a mim, hoje sou um homem branco heterossexual de classe média alta. É assim que as pessoas me veem. Não escondo que sou trans, mas no meu dia a dia, não sinto que as pessoas me tratam diferente. Mesmo assim, é claro que o preconceito existe. E tenho certeza que se eu fosse uma mulher preta, transexual, com 1,80m de altura e um gogó aparente — não teria os mesmos privilégios. O preconceito existe, mas eu, Gustavo, sinto muito menos do que outras pessoas. Nós, pessoas LGBTQIA+, não partimos do mesmo lugar, mesmo que não sinta o preconceito escancarado no dia a dia, eu comecei nessa corrida muito depois, em desvantagem. Há uma medida de sucesso na sociedade que não é definida pelo contexto. É igual para todos e leva em conta uma parcela mínima da sociedade: os brancos, cisgêneros, héteros, de classe média alta. Todo o resto fica de fora do ranking.
A expectativa de vida de uma pessoa transexual no Brasil é de 35 anos. Sou um sobrevivente. Se eu parar de lutar, estou morto no dia seguinte
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G |Já pensou em desistir?
Gustavo Glasser |Não tem essa opção. Para mim, desistir desse caminho é sinônimo de morte, é como estar em alto mar e parar de nadar. É deixar de existir, e não desistir. A expectativa de vida de uma pessoa transexual no Brasil é de 35 anos — sou um sobrevivente. Se eu parar de lutar, estou morto no dia seguinte. E não porque eu me matei, mas porque a sociedade vai me matar. Se eu parar de lutar, acabou.
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G |Você já falou muito sobre a importância de errar, e errar diferente. Quais erros foram essenciais para que você chegasse até aqui?
GG |O erro é relativo. Num universo de dúvidas, eu tenho perguntas que vão gerar resultados bons ou ruins e vou buscar perguntas diferentes para ter resultados diferentes. A questão é sair do círculo do conhecido. Se você expande e adentra a borda do conhecimento, um lugar que você não conhece, que não entende todos os caminhos, onde não existam verdades, porque é tudo diferente daquilo que você está acostumado, o erro deixa de ser um erro. Na dúvida, o erro está dado e isso não é um problema.
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G |Você se considera otimista?
GG |Não acredito nisso. Sou uma pessoa realista, mas no sentido de realizar, me sinto capaz de realizar. Mas não me sinto otimista, não acho que tudo vai dar certo. No tema da diversidade, não consigo enxergar que melhorou, por exemplo. Não tenho isso de ver o lado bom das coisas. Eu olho os fatos, o que aconteceu, o que não aconteceu. E se não aconteceu, vou descobrir como vou fazer acontecer, esse é o caminho que busco.
Meu trabalho é uma forma de sobrevivência, entende? É uma forma de atuação para, justamente, continuar existindo. Não é um trabalho, é uma existência.
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G |O que você diria para alguém que pensa em trilhar um caminho parecido?
Gustavo Glasser |Quando recebi o prêmio da Folha de S. Paulo em 2019 [como Empreendedor Social de Futuro naquele ano], descobri que tinha uma empresa de impacto social. E me perguntei: “Mas qual empresa não é?” O Itaú, por exemplo, distribui R$ 6 bilhões de lucro em um trimestre, não tenho dúvida de que eles são uma das maiores empresas de impacto social do Brasil. Se o impacto dele é positivo tanto quanto poderia, isso podemos questionar. É um fato: qualquer negócio gera impacto social. Você tem uma escolha: ou você decide qual é o impacto e trata ele de uma forma positiva ou você vai deixar de lado e ele vai ter um impacto negativo. As próximas gerações vão precisar ter isso como competência. Nós só aprendemos a abrir um negócio, jamais a lidar com as consequências dele. E todo negócio tem consequência, seja no clima, na sociedade, no meio ambiente, em você mesmo. Ou vamos fechar os olhos e fingir que está tudo bem ou vamos olhar para isso. Para mim, só tem o caminho de olhar. Se não fizer isso, a conta vai cobrar lá na frente. O único caminho para começar é entender que todas as suas ações têm consequências.