O peso que um nome pode carregar — Gama Revista
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Reportagem

O peso que seu nome carrega

Dos apelidos à omissão, nomes podem ser fonte de violência e preconceito e dificultar até mesmo a busca por trabalho

Leonardo Neiva 22 de Janeiro de 2023

O peso que seu nome carrega

Dos apelidos à omissão, nomes podem ser fonte de violência e preconceito e dificultar até mesmo a busca por trabalho

Leonardo Neiva 22 de Janeiro de 2023

Quando criança, o nome de Arthur Bugre raramente era pronunciado fora de sua casa, fosse nas ruas ou na escola que cursava em Belo Horizonte. “Era neguinho da rua de cima ou ‘neguinho, vai buscar alguma coisa para mim’. Quando me chamavam a atenção, vinha sempre um apelido racista acompanhado de outro xingamento”, lembra o mineiro. Aos seis anos, ainda “não entendia porque amigos e pais de alguns coleguinhas me tratavam daquela forma, por que meu nome não era dito.”

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Hoje palestrante de diversidade e inclusão e colunista do jornal Estado de Minas, Bugre, 36, considera que os apelidos que recebeu na infância e juventude, assim como o constante “esquecimento” de seu nome, impactaram sua autoestima e até mesmo a forma de agir. “Como era criança, demorou mais de um ano para cair a ficha de que me tratavam assim por eu ser negro. Por isso cresci odiando a pessoa que enxergava no espelho.”

Embora fosse uma criança bastante criativa e conversadora, ele foi se tornando mais retraído. Evocando um relato da influencer Preta Caminhão, Bugre aponta que, muitas vezes, é difícil para as pessoas entender porque alguns indivíduos negros são muito calados. “Aprendemos desde muito cedo que, mais quietos, também seremos menos alvos de agressões e racismo”, declara Bugre.

A antropóloga, escritora e ativista brasileira Lélia González (1935-1994) dizia que “negro tem que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido… ao gosto deles”. Para Bugre, que cursou história na UFMG, certos apelidos podem até soar carinhosos ou inofensivos para muita gente, mas trazem consigo uma carga histórica pesada. “Uma das formas de desumanizar pessoas que foram escravizadas era retirar o nome e sobrenome delas, além de sua cultura. E arrancar o nome de alguém é algo brutal. Estamos falando de essência e identidade, é um direito universal”, aponta.

Para Bugre, a questão acaba sendo duplamente difícil. Como homem trans, lida com pessoas errando seus nomes e pronomes até hoje, seja de propósito, com o intuito de provocá-lo, ou mesmo por ignorância. Geralmente é por uma curiosidade considerada inocente que muitos se sentem no direito de perguntar sobre “seu nome antigo” ou “verdadeiro”. “Mas, mesmo que não seja por maldade, sempre respondo que não vou ressuscitar um falecido que costumava me fazer tanto mal.”

Violência tem nome

A psiquiatra e pesquisadora Ranjana Srinivasan, da Universidade de Columbia, define microagressões relacionadas a nomes como uma forma sutil de violência que usa nomenclaturas de origens étnicas ou estrangeiras para destilar racismo. O interesse da especialista no tema, aliás, surgiu de suas próprias experiências como única criança não branca na sala de aula da escola americana em que estudou na infância.

“Guardo fortes lembranças de me sentir excluída dos meus colegas devido à cor da minha pele e à textura do meu cabelo, e meu nome sul-asiático atraía ainda mais atenção para essas diferenças”, contou em entrevista à revista Psychology Today. “Era comum ser alvo de risos por parte dos professores, pausas antes de pronunciar meu nome e comentários como ‘você tem um apelido?’ ou ‘nunca vou conseguir decorar isso.'”

Aqueles que participaram das pesquisas de Srinivasan disseram sofrer com a pronúncia, a grafia e as complexidades culturais embutidas em seus nomes e sobrenomes. Por isso, até mesmo uma ação simples como se apresentar pode se transformar num momento de medo e ansiedade. Muitas vezes, segundo eles, também acabam recebendo apelidos que não escolheram e com os quais se sentem desconfortáveis. “As pessoas não pediram permissão. Eles não puderam escolher seus apelidos, e se espera que os aceitem”, conta a psiquiatra.

E o preconceito não se revela apenas nas pequenas interações cotidianas. Outro estudo realizado pela Universidade de Cambridge envolvendo imigrantes e refugiados na Austrália mostrou que aproximadamente 80% dos entrevistados tiveram problemas ao usar seus nomes reais no currículo. Ao fazê-lo, a maioria passou a receber muito menos convocações para entrevistas profissionais. Em alguns casos, a taxa de resposta chegou a zero.

Como estratégia, portanto, muitos revelaram ter escolhido “embranquecer” o currículo. Oksana Pugacheva, da Ucrânia, por exemplo, optou por adaptar o segundo nome, que, segundo ela, “soava excessivamente pós-soviético”. A repórter da BBC Noor Nanji, em uma matéria sobre o assunto, contou que ela mesma chegou a adaptar seu nome para Nina no ambiente profissional, para evitar o constrangimento de ouvir âncoras errando a pronúncia dia após dia. Em 2022, Nanji voltou atrás e retomou seu nome original.

Identidade profissional

Os últimos meses mostraram que, quando o assunto são oportunidades profissionais, nome e sobrenome podem ser aspectos fundamentais — para o bem ou para o mal. Em dezembro, a revista norte-americana Vulture publicou uma capa com a sugestiva manchete “Ela tem os olhos da mãe. E o mesmo agente”. A reportagem centrada no nepotismo existente em Hollywood causou uma avalanche nas redes sociais, com milhares de críticas de usuários contra os artistas citados e respostas hostis dos próprios artistas ao tom da reportagem.

Apelidados de “nepo babies”, os bebês do nepotismo, atrizes como Zoë Kravitz e Kate Hudson, e até mesmo a cantora Lily Allen revidaram, criticando a reportagem e a forma como foram retratadas. A primeira é filha do cantor Lenny Kravitz e da atriz Lisa Bonet, a segunda da lendária atriz Goldie Hawn e do músico Bill Hudson, e Allen é filha do ator Keith Allen com a produtora Alison Owen.

Mas, no meio artístico, um simples sobrenome também pode significar não conseguir um papel, independentemente do talento do artista. Quando começou a carreira como atriz, Beatriz, 36, usava o sobrenome Koyama Diaféria, que remete à ascendência japonesa por parte de mãe e italiana e espanhola por parte de pai. “Só que, nos dois primeiros anos, era muito raro me chamarem para testes”, conta. Quando a convocação acontecia, era para interpretar papéis estereotipados, como de gueixa ou nerd. E, como Diaféria não tem o fenótipo asiático que geralmente se espera, devido a suas origens diversas, nem mesmo esses ela conseguia. Foi aí que teve a ideia de passar a usar apenas o sobrenome Diaféria, de origem europeia. “Só por mudar o nome, começaram a me chamar para testes mais diversos. Antes eu era sempre colocada na caixinha de asiática, e só. A partir daí, consegui começar a trabalhar.”

O impacto do nome e da indentidade no recrutamento profissional é tão grande que algumas empresas já têm recorrido a alternativas para levar mais diversidade ao seu corpo de funcionários. A gigante farmacêutica Novo Nordisk, por exemplo, adotou em agosto no Brasil e na Colômbia o protótipo de um processo de recrutamento anônimo.

Já no envio do currículo, não constam informações como nome, gênero ou idade. Em parceria com uma plataforma de seleção por vídeo, a empresa define uma série de perguntas para avaliar as competências dos candidatos e cada postulante grava um vídeo com as respostas. O xis da questão é que o sistema transforma a imagem do candidato num avatar aleatório, modificando sua voz e aparência. A ideia, afirma a diretora de pessoas e organizacional da empresa, Elisabete Strina, é limitar ao máximo a presença do viés inconsciente. “Porque nosso cérebro automaticamente vai em direção a padrões e estereótipos que nos fazem selecionar pessoas mais parecidas conosco”, esclarece. Esse seria um dos motivos porque vagas continuam sendo dadas em maior escala para homens brancos.

“No processo, 85% das vagas foram fechadas com mulheres, que talvez tivessem sido reprovadas por esse viés”, conta Strina. Após preencher cargos de liderança numa primeira seleção, a ideia agora é fazer uma segunda rodada de recrutamento para outros cargos. O objetivo, diz a executiva, é ampliar o processo para outros países onde a empresa está presente e chegar no futuro a 100% de novos funcionários selecionados a partir desse método.

Nas entrelinhas

A doutoranda em antropologia social Laís Miwa Higa, 35, cuja família veio de Okinawa — território que foi colonizado pelo Japão –, só entendeu de verdade que seu nome brasileiro era Laís quando entrou na escola. “Miwa era o nome que todo mundo usava em casa e na minha comunidade”, conta Higa, que estuda a identidade da comunidade japonesa no Brasil. No entanto, ela, assim como quase todas as pessoas de origem asiática que conhece, em algum momento perdeu o controle sobre seu nome ao ser chamada genericamente de “japa”.

“As pessoas asiáticas que são tratadas com essa ideia do que significa ser japonês no Brasil são vítimas de racismo”, afirma a pesquisadora. Segundo ela, ao ignorar o nome e a origem de um indivíduo, as pessoas objetificam e tornam homogêneas suas identidades, desclassificando-os como seres humanos. Sem contar que pode ser um processo doloroso para pessoas de origem chinesa, taiwanesa ou coreana, cujas famílias migraram para o Brasil a partir de territórios historicamente ocupados pelo governo do Japão, ser tratados como japoneses.

O nome nesses casos também acaba sendo um território minado por constrangimentos raciais. A influencer Bruna Tukamoto, que fala constantemente sobre preconceito amarelo em suas redes sociais, compartilhou há pouco um post em que conta sobre o longo tempo que levou para assumir seu nome japonês, “para fugir de preconceitos raciais, das famosas ‘piadas’ racistas.” Nomes japoneses, aliás, têm sido historicamente usados por aqui para fazer anedotas e trocadilhos que, pode até não parecer, mas oprimem e geram impactos negativos em indivíduos de origem asiática.

Assim como nesse caso, o racismo pode surgir em outras ações aparentemente banais. O especialista em diversidade e inclusão Arthur Bugre lembra que, com frequência, ouvia os patrões se referindo à sua mãe sem citar o nome dela. “Falavam dela sempre como a mulher que passava roupa lá em casa.” Ele também aponta que, em muitas famílias, ainda é comum ter membros ou conhecidos que recebem apelidos como Pelé ou Mussum. “Normalmente, a gente cresce com um tio ou conhecido de quem nem sabe o nome verdadeiro. Por que toda pessoa negra tem apelidos como esses? Certamente não foram elas que escolheram…”

Há pouco tempo, enquanto assistia a um jogo da Copa do Mundo num bar, Bugre relata que começou a ser chamado de “negão” por um dos frequentadores. “Quando avisei que meu nome real era Arthur, ele disse que era brincadeira, que eu estava brigando à toa”, conta. “Quando entro em qualquer lugar, meu fenótipo chega primeiro, carregado de uma herança escravista. Geralmente me chamam de pretinho quando querem me diminuir.”