Carnaval e política — Gama Revista
Qual é a sua fantasia?
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Reportagem

Seu Carnaval é político?

Das manifestações em blocos de rua à forte presença da cultura nordestina nas avenidas, o Carnaval revela sua face política e de luta por justiça social

Leonardo Neiva 19 de Fevereiro de 2023
Reuters/ Ueslei Marcelino

Seu Carnaval é político?

Das manifestações em blocos de rua à forte presença da cultura nordestina nas avenidas, o Carnaval revela sua face política e de luta por justiça social

Leonardo Neiva 19 de Fevereiro de 2023

Este ano, a escola de samba Beija-Flor de Nilópolis vai desfilar na Sapucaí um enredo que traz à tona os excluídos do grito do Ipiranga e da independência do Brasil. “Desfila o chumbo da autocracia/ A demagogia em setembro a marchar/ Aos ‘renegados’, barriga vazia/ Progresso agracia quem tem pra bancar”, diz uma das estrofes mais fortes do samba que os foliões vão cantar pela avenida na segunda-feira (20).

Embora trate de um dos assuntos mais contundentes neste Carnaval, este ano a escola carioca está longe de ser a única com conotações políticas. Referindo-se à data da expulsão das tropas portuguesas e independência da Bahia, a Unidos da Tijuca vai cantar: “Nesse eterno dois de julho/ Sou caboclo rebelado/ Terra que banho de luta”. E o samba da Imperatriz Leopoldinense, oficialmente sobre a trajetória do cangaceiro Lampião, parece ecoar o resultado das últimas eleições no dúbio verso “E foi-se então… Adeus, capitão!”

“Raramente quando a gente fala em política pensa em desfiles de escolas de samba”, pondera a historiadora cultural Fátima Costa de Lima, professora de artes cênicas na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). “Mas desde o começo a temática é política.” Além dos inúmeros enredos abordando temas como a escravidão, o preconceito e a intolerância, sátiras políticas também costumam dar as caras com frequência.

Existe uma vontade geral de se expressar politicamente, e a forma carnavalesca é quase perfeita para isso

Vice-campeã em 2018, a Paraíso do Tuiuti levou para a avenida um “presidente vampiro do neoliberalismo”, uma ala de manifestantes fantoches e críticas à reforma trabalhista promovida no governo Temer. No mesmo ano, a Beija-Flor abriu seu samba-enredo com os versos: “Oh pátria amada, por onde andarás?/ Seus filhos já não aguentam mais!/ Você que não soube cuidar/ Você que negou o amor”.

Para Lima, dois fenômenos têm convergido dentro do Carnaval brasileiro nos últimos anos: o crescimento dos blocos em grandes capitais com pouca tradição em celebrações de rua, como São Paulo e Belo Horizonte, e o hábito de conversar mais abertamente sobre política, “para o bem ou para o mal”, por conta da instabilidade que o país enfrentou desde a década passada. “Existe uma vontade geral de se expressar politicamente, e a forma carnavalesca é quase perfeita para isso”, frisa a historiadora, que pesquisa o tema.

Não à toa, a política dominou as ruas e avenidas da capital paulista desde os ensaios até os desfiles de blocos no pré-Carnaval. As manifestações de euforia foram variadas: alegria por retornar às ruas após três anos desafiadores, celebrações da mudança de comando do país e defesas enfáticas da arte e da cultura, entre outros. “Vamos às ruas também para expressar o que queremos politicamente, contestando o que acontece aqui e agora nas nossas vidas e na sociedade brasileira”, afirma Lima.

Da Antiguidade às metrópoles

Na Roma Antiga, celebrava-se em dezembro a Saturnália, festival que marcava o solstício de inverno e o renascimento do ano. Um dos costumes das festividades era inverter as normas sociais do período, com senhores servindo seus escravos, enfatizando que, naqueles poucos dias, todos estavam em pé de igualdade. Hoje, a Saturnália é considerada uma das festas precursoras tanto do Natal quanto do Carnaval como o conhecemos.

A crítica e os questionamentos sobre os papéis dentro da sociedade, portanto, integram as raízes da celebração. “No Brasil, não tem como desligar uma coisa da outra”, diz a historiadora. Ao longo do século 19, as primeiras sociedades carnavalescas usavam suas fantasias e “carros de ideias” — antecessores dos alegóricos — para endossar e fazer críticas às autoridades. Segundo Lima, também era comum que grupos abolicionistas e republicanos transformassem os desfiles em arenas de debate sobre o fim da escravidão e da monarquia no país.

Hoje, o próprio ato de ocupar as ruas ao longo de fevereiro é visto como resistência e reivindicação do espaço público pela população. “O Carnaval é a maior expressão anual da nossa identidade. Talvez seja a instituição com o maior sentido de coletividade do Brasil”, considera o gestor cultural e ex-Secretário Municipal de Cultura de São Paulo Alê Youssef, cofundador do bloco Acadêmicos do Baixo Augusta — um dos pioneiros na retomada do Carnaval de rua da cidade.

Era comum que grupos abolicionistas e republicanos transformassem os desfiles em arenas de debate

Após dois anos sem desfilar, o maior bloco da cidade sai às ruas com o tema “Atentos e fortes”, uma alusão à música “Divino Maravilhoso” em homenagem a Gal Costa (1945-2022), mas também um recado sobre a luta em defesa da democracia. “Com a tradição do Baixo Augusta de ser um bloco ativista pelo direito à cidade e por valores fundamentais, com a derrota do Bolsonaro e do fascismo, já considerávamos permanecer atentos e fortes em defesa da democracia, da diversidade e da cultura.”

O ativismo do bloco vai dos ensaios — realizados no galpão do MST no bairro Campos Elíseos, numa inédita parceria com o movimento — à participação este ano do Olodum, um dos maiores representantes da cultura baiana e afro-brasileira. “Misturando a retomada pós-pandêmica com a pós-Bolsonaro, temos tudo para fazer um Carnaval histórico do ponto de vista da ocupação cultural e da consciência política”, afirma Youssef.

À frente da produtora Pipoca, que promove alguns dos principais blocos de São Paulo, Rio, Olinda e Belo Horizonte, Rogério Oliveira revela que um dos maiores desafios do Carnaval hoje é alavancar blocos na periferia. “O dinheiro ainda circula de forma muito centralizada”, afirma. Por isso, quando fecha patrocínios para blocos conhecidos, a produtora busca influenciar as marcas a apoiar também outros menores, em regiões como a zona leste de São Paulo. Hoje, a Pipoca apoia mais de 50 blocos fora dos eixos centrais das capitais. “Também trabalhamos para que o Carnaval se profissionalize e vire possibilidade de emprego para cada vez mais gente”, diz Oliveira.

O Nordeste sempre esteve historicamente no centro do debate político e social do Carnaval. “Também se faz política na rua cantando e dançando, e nisso o Nordeste é exemplar”, diz a historiadora Fátima Lima  Reuters/Paulo Whitaker PW/GN

Carnaval e sociedade

Se no passado era difícil visitar um baile de Carnaval sem escutar os versos da conhecida marchinha “O Seu Cabelo Não Nega”, de Lamartine Babo, hoje a canção está ausente da maioria dos blocos pelo conteúdo considerado racista. Autor de canções famosas como “Cabeleira do Zezé” e “Maria Sapatão”, também banidas da maior parte das festas devido às letras ofensivas para a população LGBTQIA+, o compositor João Roberto Kelly acaba de lançar a marchinha “Eu Sou Gay”, uma exaltação à comunidade que, segundo ele, é quem faz o Carnaval acontecer.

A contestação de antigos símbolos do Carnaval também vem se mostrando em questionamentos a fantasias como a “Nega Maluca”, que incorporava o problemático blackface, e a longa discussão a respeito do uso de motivos indígenas. “Vejo o Carnaval como uma das ferramentas mais poderosas para invadir o coração e a mente das pessoas com questões importantes do nosso dia a dia, como assédio, preconceito, relação com a cidade, sustentabilidade etc.”, diz Oliveira. “É uma ferramenta muito poderosa para trazer consciência, e não alienação.”

Vejo o Carnaval como uma das ferramentas mais poderosas para invadir o coração e a mente das pessoas

Também já faz algum tempo que críticas a atitudes machistas e a luta contra o assédio e a violência nas festividades ganharam destaque na mídia e vêm ajudando a mudar o comportamento principalmente nos blocos de rua. Foi com essa intenção que a cientista política e escritora Débora Thomé lançou em 2015 o bloco Mulheres Rodadas, no Rio de Janeiro. “Uma grande novidade naquele momento foi insistirmos que era um bloco não só de mulheres, mas feminista, com uma agenda política”, conta Thomé.

À frente do primeiro bloco feminista do Carnaval carioca, a cientista política e foliã tem consciência de que, embora o assunto tenha avançado, a agenda ainda não chegou a todas as bolhas. “Estamos falando principalmente com mulheres de classe média, mas o Brasil ainda é um país machista. Muitos casos de assédio e estupro continuam acontecendo debaixo das nossas barbas”, afirma Thomé. “As mulheres já tocam nos blocos de rua e têm mais agência, isso não muda mais. Mas quem está trabalhando essa questão com os homens?”

A contestação de antigos símbolos do Carnaval também vem se mostrando em questionamentos a fantasias como a “Nega Maluca”, que incorporava o problemático blackface, e a discussão sobre o uso de motivos indígenas  Reuters/Ueslei Marcelino

O Nordeste decisivo

Das ondas e da cultura ribeirinha da Baía de Todos os Santos, com a Unidos da Tijuca, à visita de Lampião ao céu e ao inferno, cantada pela Imperatriz Leopoldinense, as escolas de samba carioca têm este ano um tema principal: a cultura e o povo nordestino. Isso porque metade das 12 agremiações que vão passar pela Sapucaí abordarão questões ligadas à região.

No caso da Imperatriz, o Lampião que habita o enredo da escola é aquele que entrou para o imaginário nordestino e hoje é cantado em cordéis. “Em diferentes áreas das artes, ele foi abraçado como uma figura típica da brasilidade”, explica o carnavalesco Leandro Vieira. Na história contada na avenida, Lampião não é aceito nem no céu nem no inferno, passando a ocupar seu lugar de símbolo do Nordeste. “Quando se escolhe um enredo sobre Lampião, está fazendo política. Quando escolhe enredo que trata de um pedaço do Nordeste, está fazendo política”, apontou Vieira em entrevista à Veja.

As escolas de samba carioca têm este ano um tema principal: a cultura e o povo nordestino

Para a historiadora Fátima Costa de Lima, a forte presença do Nordeste nos desfiles acaba refletindo a polarização político-social do país, em que os votos da região foram decisivos para a vitória de Lula e a derrota de Bolsonaro nas urnas. “A partir dos desfiles de 2018, em que a pauta política foi mais explícita, temos visto um maior interesse das escolas do Rio de se posicionarem”, diz Lima. “Provavelmente veremos alegorias da política recente no Brasil nos desfiles do Rio e de São Paulo, da campanha eleitoral à tragédia dos Yanomamis.”

O Nordeste, aliás, esteve historicamente no centro do debate político e social do Carnaval. É da Bahia, por exemplo, o Ilê Aiyê, primeiro bloco afro do Brasil, fundado em 1974, que este ano homenageia a ancestralidade angolana pelas ruas de Salvador. “Também se faz política na rua cantando e dançando, e nisso o Nordeste é exemplar”, reforça Lima.

No caso do tradicional Carnaval de Olinda (PE), a política também está presente este ano, mas se manifesta por meio de uma ausência: pela primeira vez em 16 anos, o boneco do Presidente da República não vai desfilar. Tanto a versão gigante de Lula quanto a de Bolsonaro desta vez ficarão descansando. “O país vive um momento muito polarizado no lado político e isso acaba indo para um dia a dia com conflitos. Carnaval é um bom momento para o brasileiro se unir mais e se divertir”, disse ao UOL o administrador da Embaixada dos Bonecos Gigantes, Leandro Castro.