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Duane Hanson / Guilherme Falcão

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Semana

Um bonde chamado desejo

Como a pandemia revela (e altera) nossos comportamentos de consumo. Por que nem sempre é fácil ser racional na hora de passar o cartão?

Juliana Sayuri 13 de Dezembro de 2020

Um bonde chamado desejo

Juliana Sayuri 13 de Dezembro de 2020
Duane Hanson / Guilherme Falcão

Como a pandemia revela (e altera) nossos comportamentos de consumo. Por que nem sempre é fácil ser racional na hora de passar o cartão?

No fim de fevereiro, enquanto glitter para colorir o carnaval era o must-have do momento no Brasil, outro tipo de produto era disputado quase a tapa no Japão. Um insosso objeto de desejo: papel higiênico.

Na época, uma fake news dizia que a matéria-prima para o papel viria da China, primeiro epicentro do novo coronavírus, e que seria preciso estocar o produto pois as fronteiras sino-japonesas poderiam se fechar de uma hora para outra – o vírus Sars-Cov-2 desembarcou desse lado do mundo primeiro, antes da declaração oficial de pandemia de covid-19 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que só se daria em 11 de março.

Foi esse bonde chamado desejo que levou multidões atrás de papel higiênico, máscaras cirúrgicas e frascos de álcool gel nos mercados na Ásia. E não demorou para esse trem descarrilar no Brasil: entre 16 e 22 de março, segundo levantamento da consultoria Kantar, o consumo de papel higiênico aumentou 211%, produtos para casa, 98%, e detergente, 79%. Outro estudo, da empresa Nielsen, indicou crescimento considerável de venda de itens como antisséptico (623%) e softwares (389%).

Richard Hamilton — Just what is it that makes today's homes so different, so appealing?, 1956

Mas se março lembra uma longínqua primeira temporada da pandemia entre quarentenas e que tais, de lá para cá pipocaram estudos sobre tendências de comportamento e consumo. Entre os itens mais desejados ficaram os equipamentos de proteção individual (EPIs), como máscaras e luvas. “Desde que a rápida e mundial transmissibilidade desse novo tipo de vírus foi detectada, os estoques de EPIs se tornaram escassos, desencadeando uma corrida para produzir máscaras hospitalares. As iniciativas destinadas a propor métodos alternativos de fabricação de EPIs também se multiplicaram para atender às demandas imediatas”, escreveram os acadêmicos Harrison Lourenço Corrêa e Daniela Gallon Corrêa, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), na revista Brazilian Journal of Health Review, apostando na aceleração da economia circular na pandemia, mediante produções alternativas e práticas de consumo sustentável.

A covid-19 acelerou futuros, antecipando mudanças que já estavam em curso, mas que o mundo levaria décadas para implementar voluntariamente

Da antropologia ao marketing, diversos setores vêm diagnosticando direções do consumo no balanço deste 2020 pandêmico, o que inclui a intensificação dos negócios digitais e a priorização de itens considerados básicos, por exemplo, para o conforto de casa. “A covid-19 acelerou futuros, antecipando mudanças que já estavam em curso, mas que o mundo levaria décadas para implementar voluntariamente (como o trabalho remoto e a educação a distância). Isso mudou a forma como produzimos e consumimos e a tendência é de que o mundo pós-pandemia seja diferente”, diz a engenheira ambiental Larissa Kuroki, coordenadora de conteúdos e metodologias do Instituto Akatu.

Ficar em casa, diz Kuroki, nos permitiu observar de modo mais intenso o impacto do consumo, da energia elétrica necessária para o wi-fi ao filé para o arroz e feijão de cada dia, o que é tido como ponto positivo rumo ao consumo consciente.

“Consumo consciente não significa deixar de consumir, mas consumir melhor e diferente, sem excessos, para que todos vivam com mais bem-estar hoje e no futuro. Significa ter a visão de que o ato de consumir um produto ou serviço está num contexto maior de ciclo de produção, trazendo consequências positivas e negativas não apenas ao consumidor, mas também ao meio ambiente, à economia e à sociedade, que vão além dos impactos imediatos”, define.

Andy Warhol — Brillo Box, 1964

Sociedade 5.0

Enquetes recentes traduzem essas tendências em números: 85% dos brasileiros declarar querer reduzir muito seu impacto no meio ambiente e apenas 17% dizem precisar de muitos bens materiais para serem felizes, indica a pesquisa Vida Saudável e Sustentável 2020, do Instituto Akatu em parceria com a consultoria Globescan; cerca de 69 milhões de brasileiros (42% da população adulta) pretendem comprar menos nos próximos meses comparado ao que gastavam pré-pandemia, destacou levantamento do Instituto Locomotiva – “é momento de focar na saúde e sobrevivência das pessoas e de poupar, porque não se sabe quanto tempo a crise irá durar”, justificou um dos entrevistados do estudo.

Entre os brasileiros ouvidos para a pesquisa Consumo e Pandemia, feita EY Parthenon e publicada pela Veja Insights no fim de setembro, 71% disseram que se tornaram mais conscientes acerca dos cuidados de higiene pessoal, como reflexo da necessidade de aumentar esforços para evitar a disseminação do vírus; 59% disseram ter aumentado o cuidado com a casa; 54% passaram a comprar apenas o essencial e 39% aumentaram o consumo pela internet. E, conforme o estudo Novos Hábitos Digitais em Tempos de Covid-19, da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), 70% dos brasileiros desejam incorporar esses novos hábitos de compra e consumo no pós-pandemia.

Querer, entretanto, nem sempre é poder. Afinal, como saltamos do impulso quase que inconsciente de acumular papel a uma tendência de consumo mais consciente e eco-friendly neste fim de 2020? Em outras palavras, por que consumimos como consumimos? “Esta é uma pergunta de 1 milhão de dólares”, diz o escritor Ricardo Cavallini, fundador da consultoria Makers e professor da Singularity University.

“Muito do nosso consumo se deve a nossa cultura e a covid-19 é um gatilho para repensarmos muitas coisas. Do mais óbvio ‘por que não posso trabalhar de casa?’, ao comportamento cotidiano ‘por que preciso me maquiar todos os dias?’, até questões mais complexas como ‘será que não estou jogando dinheiro fora ou consumindo da maneira errada?’”, exemplifica. “Agora, o marketing terá que entender essas mudanças para se adequar a nova realidade. Se o consumidor mudou, se cultura mudou, o marketing também deve mudar.”

Cildo Meireles — Inserções em circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola, 1956

Para a gestora de marketing Caroline Capitani, VP de design digital e inovação da consultoria Ilegra, o consumo não segue simplesmente um caminho linear, das gôndolas do mercado às nossas casas. Isso porque estaríamos vivendo um momento pautado por propósito, de busca de bem-estar humano e enfrentamento de mazelas sociais. Trata-se, segundo o estudo Futuros Plurais, capitaneado por Capitani, de uma sociedade 5.0.

No século 21, o que legitima as conquistas mudou: o que é sucesso ou ser feliz para um, não é para outro. Os objetos de desejo mudaram

“No século 20, éramos uma sociedade da certeza: nascíamos, estudávamos no colégio, namorávamos, casávamos e na sequência, linear, vinham filhos, casa, carro, poupança. Dar certo na vida era ter título, diploma e bens”, assinala. “No século 21, diante da abundância de dados, da constante evolução tecnológica e das transformações sociais, foi-se a linearidade. O que legitima as conquistas mudou: o que é sucesso ou ser feliz para um, não é para outro. Os objetos de desejo mudaram”, argumenta.

Para as marcas não perderem o bonde da história, diz Capitani, é preciso apostar na personalização dos produtos, destinados a um público muito diverso, que não se restringe à antiga linearidade e valoriza a diversidade, a sustentabilidade e a responsabilidade social. Que olha o rótulo, quer saber como é produzido tal produto e como a empresa trata seus empregados. Que exige transparência e não tolera certas condutas, como práticas preconceituosas, racistas, xenofóbicas, misóginas ou homofóbicas. “Que está vigilante.”

Elmgreen and Dragset — Prada Marfa
Elmgreen and Dragset — Prada Marfa
Elmgreen and Dragset / Guilherme Falcão

‘Só uma lembrancinha’

Consumo, vale lembrar, não quer dizer apenas o ato de comprar. É, na verdade, um processo sociocultural, pondera a antropóloga Lívia Barbosa, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Começa antes da aquisição (já que envolve as condições de produção) e termina depois do descarte da mercadoria (seja o lixo, seja um bazar solidário ou outro destino final).

Isso quer dizer que o consumidor está inserido em determinado contexto cultural e social, e é isso que dá sentido ao consumo, que pode envolver uma transação financeira ou não. “Por exemplo, o que é presentear? É dar algo a alguém. Mas o presente só faz sentido se compatibilizo certo produto/serviço a um destinatário de um contexto”, ilustra a autora de “Sociedade do Consumo” (2003) e co-organizadora de “Consumo: Cosmologias e Sociabilidades” (2009). “Por que damos presentes de aniversário? Queremos celebrar o dia de alguém. Por que dizemos ‘é só uma lembrancinha’ no Natal? Queremos dizer que é para não passar em branco. Tem presente de bom gosto, de mau gosto, isto é, as ações só fazem sentido dentro desse processo, cujas regras mudam de acordo com o tempo. Tem uma gramática própria”, diz.

O consumo não é inocente e inclui uma reflexividade: estamos sempre conversando com a gente mesmo para monitorar, pensar e repensar nosso comportamento. É um diálogo entre consciente e inconsciente

A lógica também vale para o consumo de alimentos: as balizas que orientavam a escolha dos cardápios vão mudando segundo a época. Pensar uma alimentação adequada e saudável, por exemplo, pode passar não só pelo valor nutricional de uma dieta, mas vai desde a origem orgânica dos ingredientes até o descarte de embalagens ecológicas. “Da terra até minha mesa, da fábrica a até meu armário, do ateliê até o aniversário do meu amigo, tudo isso perpassa o consumo.”

O processo envolve escolhas que podem nos levar a cultivar culpa ou satisfação, o que a antropóloga define como economia moral do consumo, uma ideia de certo e errado. “Noções de ‘necessário’ e ‘supérfluo’ são categorias culturais, como quem legisla moralmente sobre o gasto dos outros, como se o básico fosse legitimado e o desejo, supérfluo e suspeito. Mas o que é básico e para quem? É supérfluo para quem?”, questiona. “Para mim e para meu entorno, não preciso justificar se compro muitos livros. Mas e se gastasse em jeans? E se gasto em queijos franceses e champanhe em vez de arroz e feijão? Às vezes precisamos fazer um exercício emocional para justificar o consumo, pois muitos associam a palavra apenas a artigos de luxo, compulsões ou consumismo – e se esquecem que consumimos água e eletricidade todo dia. Em outras palavras, o consumo não é inocente e inclui uma reflexividade: estamos sempre conversando com a gente mesmo para monitorar, pensar e repensar nosso comportamento. É um diálogo entre consciente e inconsciente, principalmente quando o consumo se torna cada vez mais instrumento de ação política”, pontua.

Entre as questões que surgem nessas conversas com a gente mesmo estão as tendências identificadas por Barbosa, Capitani e Cavallini: para chegar às vitrines, esse produto prejudicou animais?, essa marca é justa nas suas relações de trabalho?, esse mercado é sustentável?

Caminha-se em direção a uma realidade nova: se antes o consumo era visto como um ato individual e privado, hoje tem consequências públicas. A pandemia acelerou esse processo, que não opera mais na antiga chave necessário x supérfluo, mas na valorização do sustentável, justo, inclusivo, ecológico e diverso. O consumo se torna cada vez mais instrumento de ação política.”
Lívia Barbosa

Jac Leirner — da série Osso 008, década de 1980

Dos limões, uma limonada?

Mas nem sempre é fácil negociar com nosso cérebro na hora de consumir, lembra o consultor Alexandre Michels Rodrigues, que pesquisa sistema de gamificação e neurociência aplicada no doutorado na Universidade Lusófona de Lisboa e ministra cursos como “Psicologia do Consumo” na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Temos racionalidade, mas também instinto. Isto é, negociamos o tempo todo com nosso corpo e nossos pensamentos diante dos estímulos de fora. É um confronto constante”, define.

Para Rodrigues, consumo quer dizer busca de recursos, um comportamento humano que data de milhares de anos, desde o Homo sapiens: um smartphone, por exemplo, corresponderia a uma ferramenta para se aclimatar a certa sociedade. A diferença estaria no último “upgrade” do cérebro, com o desenvolvimento da área pré-frontal do córtex, que é responsável pelas escolhas e estratégias comportamentais.

Temos racionalidade, mas também instinto. Isto é, negociamos o tempo todo com nosso corpo e nossos pensamentos diante dos estímulos de fora

O que acontece é que cerca de 95% das informações e estímulos que recebemos ficam armazenadas no subconsciente e muitas vezes tomamos decisões por impulso. “Por que às vezes preferimos parcelar um item hoje, em vez de poupar e deixar para amanhã? Porque parte de nós pensa como nossos antepassados: quero agora, afinal, e se eu encontrar um tigre dentes-de-sabre e morrer no caminho? Por que há acumuladores? Porque parte de nós entende que está se desfazendo de recursos que podem ser necessários diante de intempéries. E assim vamos negociando, mas o cérebro sempre vence”, diz o pesquisador.

Buscar recursos pode liberar dopamina e dar prazer, pois pode ser um estímulo positivo, por motivos diversos (autoestima, ambição, competitividade). Mas pode ser negativo, quando vem carregado de sentimentos como culpa e frustrações. “Daí a pergunta: isso me faz bem? Devo me entregar? Todos temos fragilidades. É a cena clássica de alguém que terminou um namoro e devora um pote de sorvete: o corpo está atrás de dopamina, quer gordura e glicose. Se pararmos para pensar, lembramos que o excesso não é bom. Mas o cérebro negocia: só por hoje, por que não?”, exemplifica.

James Rosenquist — Fahrenheit 1982 Degrees, 1982
James Rosenquist — Fahrenheit 1982 Degrees, 1982
James Rosenquist / Guilherme Falcão

Enquanto muitos autores apostam num futuro diferente pós-pandemia, Rodrigues é mais cínico. “Passamos por pandemias e guerras, mas não evoluímos como espécie. O mundo muda e nós só nos adaptamos. Hoje usamos máscaras nas ruas, por adaptação. Compramos menos, por contingência. Mas quando tudo reabrir, a maioria de nós vai voltar a antigos hábitos, vai esbanjar e desperdiçar – basta ver quanta gente está esperando ‘tudo isso passar’ para voltar aos shoppings centers. Queria dizer que sairemos melhores e mais inteligentes dessa experiência. Mas, infelizmente, não somos tão racionais quanto gostaríamos.”

Nos primeiros dias de dezembro viralizou uma foto de limão-caviar à venda na Casa Santa Luzia, no bairro paulistano dos Jardins. O preço: R$ 2.392 o quilo. “Uma bandeja com dois frutinhos, míseros 30 gramas, custava R$ 71,76”, relatou o jornalista Marcos Nogueira, no blog Cozinha Bruta, abrigado no jornal Folha de S.Paulo. Sob risco de resvalar em um discurso moralizante sobre o consumo: em um país que periga voltar ao Mapa da Fome, é difícil imaginar desses limões uma limonada.

*As obras de arte que ilustram esta matéria tratam, de alguma maneira, do tema consumo. O nome de obra e do artista acompanha cada imagem