Como me livrei do vício em celular
Mais importante do que qualquer medida específica é a tomada de consciência sobre o problema, e a descoberta de que é possível seguir caminhos alternativos sem alienar-se da sociedade
Como eu percebi que tinha um problema
Tomei a decisão de adotar medidas drásticas para reduzir o uso de celular em maio deste ano, quando os dedões das minhas mãos começaram a doer.
Há algum tempo eu já tinha percebido que o uso excessivo vinha me fazendo mal. Os olhos terminavam o dia cansados de olhar para a tela brilhante, e mesmo assim eu passava mais tempo preso a ela antes de dormir. Momentos de lazer e cuidado com a minha filha eram interrompidos por movimentos quase automáticos e inconscientes de pegar o celular no bolso para checar notificações. O foco no trabalho e em outras tarefas se perdia quando eu desbloqueava o aparelho para conferir uma mensagem, e acabava me perdendo nos aplicativos. Até mesmo dores em outros dedos, nos dedinhos, eu já sentia em função da forma como seguro o aparelho.
Percebi, também, que o celular alimentava em mim um ciclo vicioso de ansiedade. Algumas pessoas descontam a ansiedade em compras compulsivas, outras em comida. Eu descontava cada vez mais no celular, com um agravante: enquanto o aparelho alivia a ansiedade por um lado ao oferecer distrações, por outro lado a alimenta ao nos expor ao fluxo incessante de estímulos das redes sociais e de outros aplicativos.
Ao tomar consciência do problema, a primeira coisa que fiz foi buscar entender o seu tamanho. Acessei as configurações do aparelho para ver quanto tempo eu passava olhando para a tela, e tomei um susto: eram, em média, 4 horas por dia – ou 25% das 16 horas por dia que eu passo acordado (aqui você encontra instruções para fazer isso em celulares Android, e aqui em celulares iOS). Me assustei ainda mais quando descobri que a média brasileira é de 5 horas, e que esse número vem subindo com o passar dos anos – o que indica que a tendência do problema é piorar se não tomarmos medidas para revertê-lo, individualmente e coletivamente.
Ao tomar consciência do problema, a primeira coisa que fiz foi buscar entender o seu tamanho
Além de me informar sobre o tamanho do problema, descobri quais aplicativos eram os que mais me mantinham preso à tela: Instagram em primeiro lugar, e Whatsapp em segundo lugar, ambos bem à frente dos demais – o que está alinhado à média brasileira. Isso não é exatamente uma surpresa porque há algum tempo as redes sociais e aplicativos de mensagem se consolidaram como portas de entrada para a internet, e como os principais canais de sociabilidade em tempos digitais.
Quando as dores nos dedões começaram, em função do tempo que eu passava rolando a tela e digitando mais coisas inúteis do que úteis, o primeiro recurso que testei foi o de gerenciamento de tempo de uso do Instagram. Rapidamente se mostrou um fracasso: o recurso não bloqueia o aplicativo quando você chega no limite de tempo diário definido, apenas te dá um aviso, e na maioria das vezes eu simplesmente continuava usando (com uma pontinha de culpa que só piorava a situação). Dá a impressão de que, no fundo, não é feito para funcionar – afinal, o modelo de negócios da Meta, empresa dona do Instagram, é justamente te manter usando o aplicativo pelo maior tempo possível, ainda que te passando uma ilusão de controle.
Após algumas buscas na internet, decidi tentar outra coisa: deixar a tela do meu celular em preto e branco. Pesquisas indicam que isso leva a uma redução significativa no uso do aparelho, e a uma maior consciência sobre esse uso. Para mim, funcionou melhor do que o recurso do Instagram, mas com limites: a queda no tempo de uso não foi tão significativa, e com alguma frequência eu tinha a necessidade de ver algo em cores, então voltava as configurações para colorido novamente e acabava não mudando para preto e branco novamente. A tela colorida, afinal, é muito mais sedutora.
Concluí, então, que eu não conseguiria domar meu próprio uso de celular apenas por meio das configurações de softwares que são feitos para nos manter presos. Eu precisaria partir para uma mudança de hardware, trocando o meu Samsung Galaxy S23 por algum outro aparelho menos convidativo e que me forçasse a usar menos.
Descobri que um grupo cada vez maior de pessoas busca por isso, preocupadas com as consequências individuais e coletivas do vício telas, e mergulhei no universo do “minimalismo digital”: a busca por escolhas mais conscientes sobre quais tecnologias usar, focando nas que trazem benefícios e tirando do dia-a-dia as que são prejudiciais.
Puxando esse fio, cheguei a Jose Briones.
A busca por um celular não-viciante
Em 2019, Jose Briones passava de 12 a 13 horas por dia olhando para a tela do seu celular. Certa madrugada, enquanto assistia Netflix, pensou: “Chega”. Decidiu abandonar o uso de smartphones, abraçar o minimalismo digital e ajudar outras pessoas a seguir o mesmo caminho.
Na busca por um celular que me forçasse a reduzir meu tempo de tela, o Dumbphone Finder criado por Briones foi essencial, assim como seu canal de YouTube com centenas de análises de aparelhos não-convencionais. O canal de Reddit moderado por ele, com mais de 80 mil membros, também tem algumas conversas pra lá de interessantes.
Meu primeiro impulso foi o de buscar justamente por um dumbphone, termo usado para definir celulares que não têm acesso à internet. Com a mesma estética e funcionamento dos aparelhos que comprávamos nos anos 1990 e 2000, eles cortam o mal pela raiz. Me bateu forte a nostalgia de um “Nokia da cobrinha”.
Porém, ao pensar no que significaria viver sem internet no bolso, e ao ler relatos de muitas pessoas que abandonaram seus smartphones, concluí que o salto seria grande demais para mim. Eu precisava de algum aparelho intermediário, que me permitisse usar pelo menos três aplicativos sem os quais eu dificilmente conseguiria sustentar a mudança: WhatsApp, Google Maps e Spotify.
Felizmente, o guia de Jose Briones não se limita aos dumbphones mais radicais, e também inclui outras categorias de aparelhos: feature phones, que rodam alguns poucos aplicativos; smart feature phones, que rodam diversos aplicativos, mas são mais rudimentares e limitados do que smartphones; e também smartphones minimalistas, projetados para estimular um menor tempo de uso.
Após muito pensar e pesquisar, acabei optando pelo Jelly Star, da Unihertz, que se encaixa na última das categorias. Ele roda em Android, o sistema operacional do Google, e oferece todos os aplicativos e funcionalidades de um smartphone qualquer – mas com uma grande diferença: a tela tem apenas 3 polegadas. Como referência, o iPhone 16 Plus e o Samsung Galaxy S24+ têm 6,7 polegadas. Desligado, o meu Jelly Star é muito mais parecido com um pager do que com um celular.
A tela pequena tem uma consequência bem concreta para a experiência do usuário: ela é desconfortável. O teclado, minúsculo, me desmotiva a escrever qualquer mensagem muito maior do que “ok” ou “estou chegando” – se preciso mandar um texto mais longo, prefiro esperar ter acesso a um computador para usar o Whatsapp Web. Quando abro o Instagram, as fotos e vídeos não são tão sedutores, e o aplicativo não engole mais a minha atenção. Ler também é cansativo, o que me impede de ficar navegando a esmo pela internet.
É uma experiência ruim na medida certa, e ao mesmo tempo plenamente funcional. Exatamente o que eu precisava.
Passados quatro meses da mudança, posso dizer que estou totalmente acostumado, e que a experiência é um sucesso: meu tempo de tela caiu de 4h para 2h por dia.
Nem tudo fluiu perfeitamente, e eu precisei de algumas mudanças adicionais no meu uso de eletrônicos para me adaptar. Além disso, não considero a jornada concluída, e tenho a intenção de avançar mais, na direção de um feature phone.
Mas antes de falar mais disso, não tem como fugir de uma dimensão central da jornada que estou vivendo: o problema para o qual busco solução não é individual, mas coletivo. E os principais culpados não são os donos de aparelhos celulares.
A diferença entra o Google Maps na tela do Jelly Star, à esquerda, e em um celular de tamanho padrão Pedro Telles para Gama Revista
Identificando a raiz do problema
É fácil nos sentirmos culpados pelo tempo que passamos presos ao celular. Nos percebemos deixando de dar atenção aos nossos filhos para ficar olhando para uma tela, deixando de ler um livro para consumir conteúdo que nos faz mal nas redes sociais, perdendo tempo de trabalho e lazer a troco de nada. Parece que, por incapacidade pessoal, não conseguimos priorizar aquilo que merece ser priorizado.
Contudo, indo mais a fundo na raiz do problema, descobrimos que ele não existe por acaso, mas por projeto.
Dizer que vivemos na era da “economia da atenção” não é novidade. Em um mundo onde as relações pessoais, profissionais e de consumo são cada vez mais mediadas por plataformas digitais, e o mercado publicitário é pautado por métricas de engajamento em conteúdos online, tudo que grandes empresas de tecnologia querem é te manter preso (e consumindo) nas suas redes sociais, aplicativos, mecanismos de busca e agregadores de conteúdo.
Tempo de tela é dinheiro.
Big techs como a Alphabet (dona do Google e do YouTube), a Meta (dona do Facebook, Instagram e Whatsapp), a ByteDance (dona do TikTok) e a Amazon têm times de engenheiros, psicólogos e outros especialistas dedicados a um objetivo bem específico: criar produtos tecnológicos viciantes. Objetivo, esse, que traz um enorme custo para a sociedade.
Justamente por isso, essas empresas já enfrentam centenas de processos de pessoas que tiveram suas vidas gravemente impactadas por esse vício arquitetado, que se somam a outros processos vindo do poder público por promover o vício em crianças e adolescentes, e a problemas judiciais por mentir para reguladores e investidores a respeito do uso de dados dos usuários.
Sabendo disso, fica fácil concluir que eu e você não somos os principais responsáveis pelo nosso vício em telas. Nós somos, na verdade, vítimas. Afinal, não tem como competir com times de especialistas dedicados a identificar e explorar os pontos fracos da psicologia humana para criar produtos viciantes, contando com orçamentos bilionários para conduzir pesquisas e experimentos.
Eu e você não somos os principais responsáveis pelo nosso vício em telas. Nós somos, na verdade, vítimas
Casos como o de Frances Haugen, ex-funcionária da Meta que divulgou milhares de documentos internos da empresa para denunciar práticas anti-éticas, e o de Timnit Gebru, ex-funcionária do Google que apontou graves problemas éticos da empresa no desenvolvimento de novas tecnologias, deixam claro que a cultura que hoje impera nas big techs é a de conscientemente oferecer produtos danosos aos usuários – e fazer isso omitindo e combatendo estudos que comprovam a existência de problemas, seguindo a cartilha de indústrias como a farmacêutica, a do tabaco e a do petróleo.
Não à toa, o Facebook foi fundado em 2004 sob o princípio “mova-se rápido e quebre coisas”, mantra defendido pelo CEO Mark Zuckerberg, para quem danos a terceiros parecem ser uma consequência aceitável na busca pelo sucesso. E, em 2018, o Google atualizou o código de conduta seguido pelos seus funcionários para remover da abertura o mote “não seja mau”, indicando que a empresa não está mais tão preocupada com isso.
Assim, uma solução estrutural para o problema exige grandes avanços na regulação do setor, algo a que essas empresas se opõem ferozmente. Um problema coletivo e estrutural exige uma solução coletiva e estrutural.
Mas enquanto lutamos por uma regulação adequada, parece prudente também nos defendermos individualmente. Como recomenda Yuval Noah Harari: use a tecnologia, mas não deixe ela te usar.
A vida com o celular novo e os próximos passos
Além de cortar o meu tempo de tela pela metade, o Jelly Star que comprei para me livrar do vício em celular trouxe outra grata surpresa: todos os dias bato bons papos com desconhecidos na rua, porque pessoas que vêem o mini celular em minhas mãos ficam curiosas e puxam conversa. Como uso o aparelho para fazer pagamentos com aplicativos de banco e de carteira digital, esses papos geralmente são com funcionários e clientes de mercados, lojas e restaurantes onde vou.
A reação é sempre a mesma: todo mundo diz que passa tempo demais no celular, e se identifica com o desejo de mudar isso. Muitos perguntam o modelo do aparelho, e dizem que vão pesquisar algo parecido para comprar. Até hoje, ninguém achou a ideia ruim ou descabida. Minha amostragem não é científica, mas tenho bastante certeza de que a angústia com o uso excessivo de celular é generalizada. Celulares são vistos como uma espécie de prisão da qual as pessoas querem liberdade e, ao descobrirem que alternativas viáveis existem, elas manifestam sentimentos parecidos com os que tive quando acessei o Dumbphone Finder de Jose Briones pela primeira vez.
O processo para me adaptar ao meu novo celular foi mais fácil do que eu imaginava. Meu tempo preso ao Instagram despencou, outros aplicativos perderam relevância e o Whatsapp assumiu a liderança apesar do uso dele também cair – o que indica que ele é mais essencial. Ativei o recurso de controle de tempo de uso de aplicativos do próprio sistema operacional do aparelho, que funciona melhor do que o recurso que testei no Instagram, e vem ajudando como medida complementar. Continuei me comunicando normalmente com outras pessoas e cumprindo outras tarefas, agora usando mais o computador do que o celular, o que faz um bem danado para as minhas mãos e o meu pescoço. Também se mostrou providencial o fato de ser um aparelho pouco visado para roubo, algo que faz diferença para alguém que anda muito a pé, de bicicleta e de transporte público como eu.
Nem tudo são flores, e dois principais incômodos surgiram, que exigiram de mim adaptações. Em primeiro lugar, a câmera do aparelho é ruim, uma característica compartilhada por praticamente todos os celulares alternativos. Funciona, mas não dá pra esperar fotos bonitas. Não vejo isso como um grande problema no dia a dia, quando é raro eu sentir falta de uma câmera melhor (se sinto, peço emprestado o celular de um colega ou familiar para fazer o registro). Mas, para uma viagem de férias, optei por levar o celular antigo no bolso e tirar fotos com ele. Agora, estou considerando comprar uma câmera digital, que está voltando à moda – ideia alinhada às recomendações de pessoas mais experientes do que eu no minimalismo digital, que sugerem adotar um estilo de vida onde você tem dispositivos diferentes para cumprir funções diferentes. Também estou começando a usar um relógio tradicional para a função de alarme, o que permite deixar o celular fora do quarto à noite.
A diferença entre uma foto feita com a câmera do Jelly Star, à direita, e uma feita com o Android Pedro Telles para Gama Revista
O segundo incômodo que surgiu foi na leitura matinal de notícias, que eu tradicionalmente fazia no celular, acessando aplicativos de jornais e newsletters que chegam por email. É bastante incômodo ler textos longos em uma tela de 3 polegadas, e logo cansei de tentar. Para lidar com isso, acabei comprando um tablet dos modelos mais baratos – que além de cumprir essa missão de forma bem mais agradável do que até o meu celular antigo cumpria, também facilita a vida em outras tarefas como ler receitas enquanto cozinho ou assistir um filme enquanto viajo.
Algumas pessoas próximas, com quem me comunico mais, dizem que minha responsividade em redes sociais e aplicativos de mensagem caiu. Não vejo isso como um problema, mas sim como um sinal de que o objetivo de me desconectar está sendo cumprido. Posso estar inadvertidamente alimentando a ansiedade dos outros, mas acredito de verdade que todos nós nos beneficiaríamos de uma dinâmica digital menos imediatista. É plenamente possível conciliar isso com o cumprimento adequado de responsabilidades e o atendimento adequado de reais necessidades.
Dito tudo isso, a troca de celular não é uma solução mágica. O tempo de uso caiu pela metade, mas eu continuo me distraindo com o telefone sem querer, pegando o aparelho do bolso por impulso, e me percebendo perdido em timelines de vez em quando. A tela pequena gera uma barreira física realmente eficaz, mas pretendo seguir avançando com outras medidas – e considero inclusive trocar de celular novamente em um futuro próximo, para um com menos recursos.
Mais importante do que qualquer medida específica é a tomada de consciência sobre o problema, e a descoberta de que é possível seguir caminhos alternativos sem alienar-se da sociedade. Um tanto de gente já navega por essas águas há mais tempo do que eu, e muito mais gente parece ter interesse em começar a navegar. Se nos organizarmos direitinho, dá pra transformar essas jornadas de transformação individuais em uma jornada de transformação coletiva, rumo a uma sociedade onde tecnologias viciantes são tratadas, no debate público e nas políticas públicas, com o rigor e a seriedade que merecem.
Pedro Telles é diretor do Democracy Hub (D-Hub), professor da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV RI) e senior fellow em Equidade Econômica e Social na London School of Economics and Political Science (LSE)
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