As minas seguram todas — Gama Revista
Christopher Barr
Imagem da série em que o fotógrafo irlandês Christopher Barr registra o envelhecimento do pai

O dia em que minha mãe envelheceu Uma série de quatro textos da jornalista Angélica Santa Cruz sobre o processo de envelhecimento de sua mãe e a constatação de que nem todos seremos idosos à maneira de Jane Fonda. Vivemos mais. Mas vivemos melhor?

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As minas seguram todas

Angélica Santa Cruz 15 de Dezembro de 2020

Comecei a ler com atenção sempre que topo com algum conteúdo que trata do envelhecimento – não do ponto de vista filosófico ou demográfico, mas dos efeitos físicos. Fui agarrando algumas respostas de interesse pessoal. Por que a voz da minha mãe ficou mais grave, parecida com a da minha avó? Por causa da presbifonia, alterações vocais que aparecem quando os músculos da laringe perdem força e as cartilagens endurecem. Por que a expressão sorridente dela passou a sair nas fotos meio carrancuda? Porque com o tempo ela foi perdendo o controle dos músculos. Por que ela não se lembra do que almoçou hoje, mas é capaz de recitar poemas e modinhas inteiras que aprendeu na infância? Porque a memória remota falha, mas vai buscar os registros mais antigos – no caso dela, um conjunto precioso de um tempo em que uma educação oral ensinava as crianças a dizer poemas e canções.

Achar respostas para os efeitos físicos de todos os graus de envelhecimento, com a profusão de informações disponíveis por aí, é fácil. Mas para aprender sobre cuidados práticos o caminho é outro. Aqui entra uma rede que, como se sabe, é essencialmente feminina. Pesquisas mostram que as chances de uma pessoa não ter de ir para uma casa de repouso na velhice estão diretamente relacionadas ao número de filhos – e ter por perto uma filha é crucial. Quando chega a hora de tomar pequenas medidas que são na verdade grandes rendições existenciais – como colocar a primeira fralda geriátrica ou pedir ajuda da primeira cuidadora – as iniciativas e as trocas de informações vêm das mulheres.

Uma olhada pelos corredores dos hospitais dedicados à geriatria é um passeio pela tradição nociva que, com raras exceções, exime os homens da rotina de criação dos filhos

A cada internação, as enfermeiras ensinam macetes diferentes – da melhor maneira de ajeitá-la na cama a um jeito de rasgar a fralda para acomodar melhor ao corpo. As cuidadoras comparecem com dicas de higiene – como usar uma colherzinha para dar os comprimidos na boca, quando usar luvas descartáveis etc. As filhas que passam a cuidar pessoalmente ou a coordenar esses cuidados quase sempre estão ensanduichadas entre a criação dos filhos, a administração da casa e o mercado de trabalho – é uma jornada quádrupla.

A ausência de homens nesse ambiente é escandalosa. Uma olhada pelos corredores dos hospitais dedicados à geriatria é um passeio pela tradição nociva que, com raras exceções, exime os homens da rotina de criação dos filhos e, mais adiante, os retira da linha de frente dos cuidados com os idosos. É uma nova fronteira do feminismo: homens, não basta aprender a dividir as tarefas com os filhos e com a casa, assumam também os cuidados com os nossos velhos! E é uma briga inglória. Envolve uma sociedade com pavor de lidar com a finitude de seus parentes e que trata o envelhecimento deles como um fracasso, um peso, um assunto para tirar da frente. No antropocentrismo em que fomos parar – e de onde achamos que dá para controlar a natureza, a vida, a passagem do tempo, a morte – a velhice que exige cuidados virou um defeito a ser escondido. Acho que esse é um dos grandes temas dos nossos tempos.

Cuidar da minha mãe às vezes é espinhoso. Assumir a administração financeira e dos 15 remédios que ela toma por dia não é um passeio na praia

Cuidar da minha mãe às vezes é espinhoso. Assumir a administração financeira e dos 15 remédios que ela toma por dia não é um passeio na praia. Foi ela quem criou a gente – e a inversão dos papéis é esquisita. Assim como acontece em qualquer núcleo familiar, não é um universo instagrâmico o tempo todo. De vez em quando estouram uns quebras entre ela e a minha irmã, ou entre ela e eu, ou entre a minha irmã e eu – todos rapidamente resolvidos logo adiante, ainda bem. Mas é um ciclo de vida da nossa família, como outro qualquer. Perguntando a mesma coisa cinquenta vezes, de vez em quando dizendo que queremos matá-la com tantos remédios, guardando presentinhos em uma caixa para uma vizinha de quatro décadas atrás como se fosse vê-la de novo em algumas horas, conversando com amigos imaginários, zoneando nosso esquema de trabalho por não querer tomar banho na hora que se encaixaria melhor na rotina, ela ainda é ela. A minha mãe está ali, lindona em mais esse período da vida. É o grande fio de afeto que liga as nossas horas fundamentais, as nossas incríveis noites de Natal.

Filho único, meu marido deixou anos atrás a possibilidade de uma vida acadêmica no exterior e voltou ao Brasil para ficar até o fim perto da mãe que sofria as sequelas de um AVC. Com o pragmatismo dos cientistas, costuma me dizer que nada, nada mesmo, substitui a tranquilidade emocional de saber que fez tudo o que podia pelo bem-estar dos pais em seus momentos de dependência. Ele está certo, eu acho.

Você aí, cuide do seus idosos.

Angélica Santa Cruz dirigiu oito títulos da editora Abril, foi editora-executiva da revista Época e do Diário de São Paulo, repórter especial do Estado de S.Paulo, editora da Veja e chefe de sucursal do site NO.com.

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