As novas gerações e a satisfação e felicidade no trabalho — Gama Revista
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Conversas

Renata Rivetti: "Se antes o trabalho era um fardo, as novas gerações buscam sentido e realização"

Para especialista em felicidade no trabalho, jovens hoje se negam a aceitar abusos e exigem mais flexibilidade e ambientes saudáveis

Leonardo Neiva 07 de Abril de 2024

Renata Rivetti: “Se antes o trabalho era um fardo, as novas gerações buscam sentido e realização”

Leonardo Neiva 07 de Abril de 2024
Isabela Durão

Para especialista em felicidade no trabalho, jovens hoje se negam a aceitar abusos e exigem mais flexibilidade e ambientes saudáveis

Embora se fale cada vez mais sobre saúde mental e bem-estar no ambiente de trabalho, a preocupação com o tema nem sempre se traduz em realidade. Mais de 80% dos brasileiros consideram a felicidade profissional tão importante quanto o salário, mas 28% deles estão infelizes no ambiente profissional, segundo uma pesquisa realizada pela plataforma de bem-estar corporativo Gympass. Número bem próximo dos cerca de 30% de trabalhadores no país que sofrem com burnout, como apontam dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho.

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Nessa realidade difícil, também são comuns notícias sobre supostos problemas de comportamento envolvendo profissionais da geração Z — nascida entre a segunda metade da década de 1990 e 2010 — e a exigência de pontos como mais flexibilidade e redução da jornada de trabalho. Segundo um estudo da empresa norte-americana Cangrade, os jovens dessa geração constituem também o grupo menos feliz com o trabalho atualmente. Não é à toa que se ouve falar cada vez mais em movimentos até então inexistentes como o “quiet quitting” e o “quiet ambition” — respectivamente, demissão silenciosa e ambição silenciosa, em que jovens têm recusado assumir as responsabilidades de posições de liderança.

Para a administradora e especialista em felicidade corporativa Renata Rivetti, certificada no assunto por universidades como Harvard e Berkeley, a chegada das novas gerações ao mercado sinaliza não só uma mudança no pensamento dos trabalhadores, mas também a necessidade de reformular a própria lógica do trabalho. “Julgamos que essa geração não quer trabalhar, quando na verdade só querem trabalhar de uma nova forma. O trabalho faz parte, mas não é tudo”, aponta.

À frente da Reconnect | Happiness at Work, Rivetti atua oferecendo consultoria, palestras e workshops sobre como promover a felicidade no ambiente corporativo. Entrega também a certificação do Chief Happiness Officer, uma espécie de gerente responsável pela felicidade dos colaboradores numa empresa. Para empreender na área, hoje ainda bastante incipiente no Brasil, a profissional chegou a abandonar uma carreira de mais de uma década no marketing corporativo. “Sempre falo para as pessoas não romantizarem esse tipo de mudança, porque o mercado muitas vezes nem está pronto. Temos que abrir mão de coisas como status, segurança, um bônus no final do ano”, conta.

Mas afinal, quando o assunto é felicidade, o que satisfaz as novas gerações no trabalho? Na visão de Rivetti, isso depende. Por se tratar de algo momentâneo, a oferta de benefícios pontuais pode até ser suficiente para satisfazer. No entanto, o prazer e a felicidade duradouros estão atrelados a pontos mais desafiadores: encontrar um sentido e um propósito na jornada profissional. Isso porque, ela diz, se antes a felicidade estava mais ligada ao fim dessa jornada, com a aposentadoria, os jovens hoje buscam trabalhos e empresas alinhados com seus valores, numa realidade em que vida pessoal e profissional vêm se tornando muito mais próximas.

Questões como flexibilidade de horário, trabalho híbrido e saúde mental também são cruciais para manter uma boa relação com o mundo corporativo, diz Rivetti. “Essa geração começa a questionar e sente que não precisa mais aceitar abusos”, afirma. Uma forma de lidar com o trabalho que tem deixado gestores de cabelo em pé e, segundo a especialista, exige cada vez mais ambientes de trabalho saudáveis e novas formas de liderança.

Uma das principais representantes na defesa da redução da semana de trabalho para quatro dias, que vem sendo testada em dezenas de empresas aqui no Brasil, Rivetti enxerga uma consciência maior sobre a necessidade de mudanças profundas no mundo corporativo. “O grande desafio, falando das grandes empresas, é transformar tudo isso numa cultura.”

 Divulgação

A seguir, no papo com Gama, a especialista em felicidade corporativa fala dos dilemas do trabalho híbrido, da ineficiência de artifícios como videogames e aulas de ioga frente a um ambiente corporativo tóxico e da Inteligência Artificial como possível aliada em vez de temível inimiga.

Tanto o 100% remoto quanto o 100% presencial têm perdas. O modelo híbrido traz  flexibilidade, mas também conexão

  • G |Para os profissionais mais jovens entrando hoje no mercado de trabalho, encontrar satisfação e prazer no trabalho é mais importante do que era para as gerações anteriores?

    Renata Rivetti |

    A geração Z olha para o trabalho de outra forma. Se antes a gente enxergava que o trabalho podia ser um fardo e só ia pensar em felicidade na aposentadoria, essa geração já começa a buscar um trabalho que traga sentido, realização, qualidade de vida e que não impacte a saúde mental. A palavra-chave é flexibilidade. Para eles, não faz sentido ter que trabalhar oito ou nove horas por dia se você já terminou o que tinha que fazer ou se pode se dedicar mais no dia seguinte. Então buscam um trabalho que traga mais alegria, prazer e emoções positivas, mas também significado e realização.

  • G |De que formas eles encontram esses sentimentos? Tem a ver com propósito, com sentir que está fazendo alguma diferença?

    RR |

    A satisfação é mais momentânea, quando recebo algum benefício da empresa. A felicidade vem de algo mais duradouro, como encontrar mais realização no dia a dia, gostar do que faz, se sentir reconhecido e valorizado, encontrar um propósito, o que é super importante para a nova geração. O Kahneman (1934-2024) [psicólogo e economista israelense-americano vencedor do Nobel] dizia que satisfação é diferente da felicidade porque a primeira vem de momentos de prazer, e a segunda, de um lugar mais profundo e duradouro, do significado.

  • G |A flexibilidade de trabalhar em home office hoje é um fator crucial para o bem-estar profissional? Muitas empresas vêm exigindo o retorno ao escritório. Como enxerga essa tendência?

    RR |

    Começamos a perder o controle porque muitas relações ainda acontecem através do medo e do comando. Então o presencial pode parecer o melhor caminho nesse sentido. Estudos mostram que tanto o 100% remoto quanto o 100% presencial têm perdas. O modelo híbrido traz essa flexibilidade, mas também conexão, momentos para resolver questões em conjunto. As empresas que acreditam ter que voltar ao terreno conhecido, o presencial do comando e controle, das relações sem confiança, vão perder talentos. Essa geração começa a questionar e sente que não precisa mais aceitar abusos ou o microgerenciamento. Quem acha que voltar para o presencial é o melhor caminho não vai ter os melhores resultados.

  • G |Não há uma perda nas relações pessoais? Como isso afeta a felicidade no ambiente profissional?

    RR |

    Antes a gente vestia a camisa da empresa, coisa que talvez não aconteça mais. E está tudo bem, só não podemos perder as relações. O maior preditivo da felicidade são as pessoas na nossa vida. É super importante ter no trabalho um grupo de apoio com que contar. Isso não é culpa do mundo híbrido, mas de não sabermos nos relacionar dentro dele. Pegamos aquilo que conhecíamos e levamos para o remoto. Precisamos criar novos rituais, usar o escritório de uma nova forma. Em vez de ir cinco vezes por semana para entrar numa reunião no Meet, como usar o ambiente de trabalho para trocar, cocriar, estar juntos? A geração Z quer mais diálogo. Antes a gente só fazia, não questionava. Hoje eles questionam, querem ser parte da construção e do planejamento. Em vez de culpar o mundo híbrido, devemos encontrar novas formas de nos relacionarmos.

  • G |O interesse na felicidade e no bem-estar dos colaboradores vem crescendo no mercado? O que mudou ou vem mudando?

    RR |

    Por muito tempo, o tema da felicidade era exclusivo do RH. Existia a crença de que bastava oferecer bons benefícios e um ambiente bonito para fazer as pessoas felizes. Então as empresas se preocuparam em criar salas de descompressão, com mesa de ping-pong, videogame e oferecer terapia, meditação e ioga, pensando que seria suficiente. Mas começamos a entender que o que torna as pessoas felizes tem mais a ver com o trabalho em si do que com o que acontece fora dele. Estamos educando o mercado sobre três aspectos importantes para a felicidade no trabalho. O primeiro deles é a qualidade de vida. Se antes a gente vivia para trabalhar e era feliz aos sábados ou quando se aposentava, hoje não existe mais separação. Eu saio do trabalho e ele continua dentro da minha casa, no celular. Então como a gente consegue ser mais eficiente e produtivo de forma mais saudável? Não é trabalhar mais, mas trabalhar melhor. O segundo aspecto é levar mais realização e significado para os trabalhadores. Não tem como ser a mesma descrição de cargo para todo mundo, cada um é um. Como ajudar os líderes a trabalhar os pontos fortes das pessoas? E o terceiro aspecto são as relações. Se antes elas eram hierárquicas, com medo e controle, hoje a gente entende que é necessária uma relação mais humana e empática, um ambiente de segurança psicológica onde me sinta valorizado e reconhecido, com diversidade, equidade e inclusão. A felicidade deixou de ser um aspecto liderado só pelo RH, porque é a construção de uma cultura de bem-estar que gera qualidade de vida, realização e melhores resultados.

O burnout é uma doença ocupacional que não vem só do cansaço ou da vida pessoal. Ele surge de ambientes tóxicos, de abuso e assédio

  • G |A gente ouve cada vez mais sobre estresse, ansiedade, burnout… Hoje todo mundo está um pouco esgotado? A saúde mental no ambiente corporativo é mais trabalhada do que no passado?

    RR |

    Ela deixou de ser um tabu. O burnout é uma doença ocupacional que não vem só do cansaço ou da vida pessoal. Ele surge de ambientes tóxicos, de abuso e assédio. As empresas entendem que é responsabilidade delas, mas ainda não sabem o que fazer. Investem milhões em programas de bem-estar, tratando os sintomas sem cuidar da causa, aquilo que de fato está adoecendo as pessoas. Não adianta oferecer meditação se uma pessoa tem um líder tóxico ou abusivo, se o ambiente é de assédio ou se falta equidade e inclusão. Tenho levado essa provocação para as empresas, que têm consciência do problema, mas ainda não atuam na raiz.

  • G |Num mercado profundamente desigual, essa busca da felicidade profissional ainda é mais difícil para mulheres ou profissionais negros?

    RR |

    Os grupos minorizados costumam se sentir menos pertencentes, têm uma autoestima menor e sofrem mais abusos. A gente precisa dar repertório e letramento para os líderes, mas também ferramentas para que atuem de forma mais saudável. Não é nem que o líder seja má pessoa, talvez ele não tenha o conhecimento para fazer diferente. A gente ainda não fala disso nas faculdades. Muitos entendem de resultados, mas não de pessoas. Temos discutido muito na Reconnect como conscientizar as lideranças de que a sustentabilidade humana é essencial para a sustentabilidade dos negócios. Se queremos continuar inovando, crescendo e gerando resultados, precisamos ter pessoas saudáveis. E isso passa por uma revisão na forma de liderar.

  • G |Vêm surgindo expressões como quiet quitting ou quiet ambition. Essas tendências têm ganhado um tamanho significativo? Elas existem também no Brasil?

    RR |

    Vejo globalmente três grandes desafios no mundo do trabalho atual. Um é a sobrecarga. Não tem nenhuma empresa que eu conheça em que ela não exista. Isso ficou mais óbvio porque, no mundo híbrido, fomos colocando uma reunião atrás da outra como se fosse normal. Esse modelo, a ideia de uma cultura que não para, tem adoecido e sobrecarregado as pessoas, trazendo impacto na ansiedade e até na produtividade. O segundo desafio é a falta de motivação. O quiet quitting e o quiet ambition são reflexo de as pessoas não se sentirem motivadas nem úteis, sem encontrar significado no trabalho. E o terceiro aspecto tem a ver com os ambientes tóxicos. A gente pensa que, em 2024, tudo mudou, mas ainda existem abuso e assédio, às vezes de forma óbvia, às vezes sutil, como uma piada que deixa as pessoas ofendidas, afetando sua autoestima. Temos um jeito de liderar que não vai funcionar daqui para frente. Trabalhamos da mesma forma desde a Revolução Industrial, há mais de cem anos. Vivemos num mundo dinâmico, híbrido, em que os negócios não serão sustentáveis se não começarmos a olhar para as pessoas. Podemos retornar para o que conhecemos, o que vai ser insustentável pois já estamos adoecendo, ou encontrar novas formas de trabalho, discutindo sustentabilidade, a semana de quatro dias, o uso da Inteligência Artificial. São discussões que precisamos ter. Não adianta tapar os olhos e achar que não está acontecendo. Podemos ser protagonistas dessa mudança e ajudar a construir uma cultura mais saudável ou morrer em cima desse olhar antigo.

  • G |Os jovens estão mais dispostos a enfrentar a realidade do mercado, exigir seus direitos e apontar o que está errado?

    RR |

    As novas gerações, quando entram no mercado, se recusam a trabalhar em lugares que não têm a ver com seus valores. As empresas começam a entender que não adianta continuar gerando impacto negativo no mundo. As novas gerações trazem esse olhar super positivo. Sem eles, talvez não tivéssemos várias mudanças que estão acontecendo agora. O que temos ainda é um conflito geracional. Julgamos que essa geração não quer trabalhar, quando na verdade só querem trabalhar de uma nova forma. O trabalho faz parte, mas não é tudo. Em vez de julgá-los, como criar um futuro do trabalho que seja bom para o trabalhador, a empresa e a sociedade? Passa pela construção de um capitalismo mais consciente, uma sustentabilidade humana. Precisamos entender o que podemos aprender e ensinar para as novas gerações. Eu tenho 42 anos, venho de uma geração mais resiliente. Aprendemos a gerar resultados, mas não é necessário adoecer para isso. Precisamos construir um mundo do trabalho que olha para o bem-estar das pessoas.

Temos o desafio de valorizar aquele que coopera e colabora, não o agressivo e competitivo

  • G |Isso inclui também exigir melhores condições e valorização financeira?

    RR |

    São necessidades básicas. Assim como na vida pessoal, não dá para romantizar a felicidade para uma pessoa em situação de vulnerabilidade. Os estudos da felicidade mostram que não ter dinheiro traz mais ansiedade e preocupação. No trabalho é a mesma coisa. Não adianta dizer que valoriza, mas não pagar em dia nem oferecer nenhum benefício. Também não pode só pagar bem, dar um ótimo computador, mas sobrecarregar o colaborador. Uma jornada bem-sucedida passa por ter um bom salário e recursos para fazer o trabalho, mas não é suficiente. Precisa ter esse outro olhar que fale de autorrealização e sentido. São complementos em que é preciso pensar como organização.

  • G |Quais principais dificuldades vocês encontram nas empresas e lideranças no mercado brasileiro?

    RR |

    O grande desafio, falando das grandes empresas, é transformar tudo isso numa cultura. Já existe um olhar para cuidar das pessoas, mas segue sendo uma responsabilidade do RH. Como levar isso para todo mundo, da alta liderança ao conselho, construindo uma cultura de bem-estar? O desafio é esse, incluindo o próprio colaborador, que não vai encontrar uma empresa perfeita e pode ajudar a mudar o seu entorno. O que o Brasil tem de diferente, principalmente quando olhamos as culturas europeias, é que lá existe uma maior conscientização de qualidade de vida. Na Suécia, se alguém estiver trabalhando às 10h da noite, é considerado ineficiente. No Brasil, isso ainda é valorizado. Continuamos premiando o workaholic, que se mata de trabalhar e é insustentável a longo prazo. Então temos o desafio de começar a valorizar aquele que coopera e colabora, não o agressivo e competitivo, gerando resultados de forma mais humana e saudável.

  • G |A tecnologia e a IA vêm sendo tratados como inimigos, que vão tirar vagas de trabalho. Tem como essas coisas funcionarem juntas para melhorar a qualidade de vida na empresa?

    RR |

    Eu estava no South by Southwest, em Austin, onde falaram muito sobre isso. Tem um olhar mais pessimista, mas também o de usar a IA a nosso favor. Hoje a gente perde muito tempo com coisas operacionais e burocráticas. O Bill Gates fala que nossa semana de trabalho poderia ser de três dias com a IA. Perdemos muito tempo com coisas que não são nem estratégicas nem criativas. Poderíamos focar esforços naquilo que precisa do lado humano. Só precisamos tomar cuidado para não criarmos duas classes de trabalhadores: a elite, um percentual pequeno com acesso a tudo isso, e uma grande parte da população excluída. Então é preciso evitar que acabe aumentando a desigualdade que a gente já vive hoje.

  • G |As novas gerações devem levar mais tempo para se aposentar. Hoje, as barreiras entre trabalho e vida pessoal também parecem difusas. Isso torna a questão da felicidade profissional mais urgente?

    RR |

    Pesquisas dizem que vamos trabalhar 100 mil horas ao longo da vida. Ser feliz no trabalho é essencial para uma vida feliz, não adianta esperar se aposentar. Até porque um aspecto crucial da felicidade vem da realização e do propósito. O trabalho pode ser uma fonte de felicidade na minha vida. A sobrecarga e o ambiente tóxico é que acabam atrapalhando. Criar um ambiente que seja mais leve, flexível, humano e empático é possível, sem antagonizar a performance e os resultados. Quando um projeto me motiva, utiliza meus dons e traz realização, eu me dedico mais. Não adianta o senso de dono se isso só vale na hora de produzir, mas não para ter mais direitos. Ao mesmo tempo, não dá para exigir mais flexibilidade sem produzir. Devemos nos tratar como adultos, construindo um lugar de confiança que seja também mais flexível.