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ReportagemCabelo, crianças e identidade
Longe do ideal, representações de cabelos em games, filmes, desenhos e livros infantis afetam a autoimagem, perpetuando padrões raciais e de gênero
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Cabelo, crianças e identidade
Longe do ideal, representações de cabelos em games, filmes, desenhos e livros infantis afetam a autoimagem, perpetuando padrões raciais e de gênero
Já virou uma trend recorrente nas redes sociais. Quase sempre que sai um novo filme, desenho animado, série ou game voltado para crianças e que seja protagonizado por um personagem não branco, logo começa uma avalanche de vídeos e histórias de pequenos emocionados ao finalmente encontrar nas telas uma pessoa parecida com eles — seja na posição de um super-herói ou super-heroína, de princesa, um ser mítico ou até um vilão particularmente carismático.
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Talvez o caso de maior repercussão este ano tenha sido o da Ariel vivida pela atriz Halle Bailey na recente adaptação live action “A Pequena Sereia” (2023). Para além das críticas à mudança de etnia da protagonista em relação ao desenho original, a grande maioria delas com viés racista, foram muitos os vídeos de pais que gravaram as reações de filhas finalmente podendo se reconhecer numa personagem tão querida.
Mas, se histórias como essas que viralizam com frequência são sempre capazes de nos emocionar, também revelam o impacto que a falta de representatividade pode ter, especialmente para crianças numa fase em que ainda estão desenvolvendo sua autoimagem e visão de mundo.
“Como uma jovem negra que joga video games, você acaba aprendendo desde muito cedo a se identificar com o protagonista. E já joguei tantos jogos pela perspectiva de homens brancos que parecia algo normal para mim. Não pensava necessariamente em ir contra isso”, conta a Gama uma artista e desenvolvedora de games norte-americana que se apresenta como A.M. Darke.
Foi só muitos anos mais tarde, já adulta, que a questão de fato saltou aos olhos dela por uma perspectiva específica: a dos cabelos. “Estava trabalhando num projeto em realidade virtual e precisava de um cabelo black para uma personagem”, relembra. No entanto, apenas uma dentre as várias opções de estilo capilar na plataforma que estava utilizando era explicitamente afro. “Eram dreads, e não tinham sido desenhados de forma muito realista.”
Logo Darke percebeu que, além da falta de opções, boa parte das alternativas de cabelos afro disponíveis para seu trabalho era mal feita, pouco refletindo as texturas e volumes da vida real. A partir dessa revelação, ela buscou a ajuda do lendário cientista de computação e animador da Universidade de Yale, Theodore Kim — vencedor de dois Oscars por sua contribuição para a animação digital —, para uma pesquisa mais aprofundada sobre o tema.
Uma das primeiras coisas que descobriu foi que o problema não era a indisponibilidade de tecnologias adequadas. Pelo contrário, o que estava em falta eram pesquisas realmente focadas no desenvolvimento de texturas de cabelo crespas, cacheadas ou onduladas — em resumo, tudo que fosse diferente do cabelo liso padrão. “De uma perspectiva técnica mas também cultural, o problema não é a tecnologia, mas quem está criando essa tecnologia. A questão é quais pessoas enxergamos hoje como protótipos de seres humanos.”
Por que o cabelo?
Mas, afinal, por que os cabelos são um ponto tão relevante para a identidade de personagens que protagonizam games, filmes, séries e desenhos animados, em frente dos quais crianças passam boa parte de seus dias?
“Durante muitos e muitos anos, sofremos com uma representação problemática, sempre a partir da estereotipação e do lugar do ridículo, do feio, da desumanização, de algo que precisa ser consertado”, afirma a coordenadora de diversidade e inclusão do Instituto Moreira Salles, Viviana Santiago, especialista em direito infantil e empoderamento feminino.
Quando fala em desumanização, ela se refere desde a representações historicamente pensadas para ridicularizar, como a prática do blackface, até a manifestações que, no cotidiano e na mídia, chegaram a tratar — e em alguns casos, ainda tratam — cabelos crespos como ruins, comumente comparados a materiais a exemplo de arames ou palhas de aço. Imagens como essas ajudaram a influenciar negativamente a visão de muita gente sobre o próprio cabelo desde muito cedo, reforçando práticas como a do alisamento na busca por maior aceitação social.
Embora a falta de representação atinja de alguma forma todos os que possuam cabelos cacheados, enrolados ou crespos, ajudando a perpetuar um padrão estético determinado, a questão de identidade ligada ao cabelo é essencial para pessoas negras, já que o preconceito nasce principalmente de uma posição de racismo. Não à toa, o cabelo da nova versão de Ariel nas telonas, em que a sereia ganhou dreads ruivos, foi um dos principais alvos de ataques.
Segundo Santiago, a relação das pessoas negras com os próprios cabelos só começou a mudar quando novas formas de representação como essa também passaram a ganhar força. Ela conta que, ao longo do crescimento do filho, hoje com 18 anos, sempre buscou apresentar personagens que trouxessem uma identificação racial positiva. Sem deixar, no entanto, de mostrar também as ausências e estereótipos, “ajudando a ler esse mundo tão atravessado pelo racismo”.
“Quando vejo esse cabelo representado como bonito, possível, um cabelo como os outros, fico em paz e construo uma relação de mais respeito e acolhimento”, destaca Santiago. “Quando a gente tem uma representação respeitosa, que trata esse cabelo não como o cabelo que não é, mas como o que é, um cabelo crespo, cacheado, que tem aquela curvatura, estou respeitando um traço da identidade”
Tela de escolha de penteado do jogo “Hair Nah” Momo pixel
O fio da leitura
Apesar da busca por uma literatura infantil com escritores e personagens mais diversos do que num passado em que livros do gênero eram exclusivamente focados em personagens brancos, a representação de cabelos para os pequenos segue sendo bastante limitada. Essa é uma das principais conclusões a que chegou a professora da educação infantil de Juiz de Fora (MG) Cristiane Veloso em sua tese de doutorado sobre o tema.
Após analisar mais de 150 livros infantis protagonizados por personagens negros, a pesquisadora identificou a repetição de um padrão: quando há cabelos não lisos na literatura infantil eles são apresentados no formato de cachos e caracóis. “Nem toda pessoa negra tem cachos ou cabelos compridos, mas são poucos os livros em que as meninas têm cabelos mais crespos ou curtos”, afirma Veloso.
Do mar de obras analisadas, apenas duas continham personagens femininas com cabelos que divergiam dessa tendência. Para a pesquisadora, isso demonstra respingos do racismo estrutural que vivemos. “Se a gente colocar na vitrine um livro com uma menina de pele preta e cabelo crespo curto, talvez não chame tanto a atenção. Mas uma menina negra de pele mais clara, com cachinhos, pode ser mais aceita”, considera.
Essa lacuna de diversidade, na opinião de Veloso, é também um indicativo da falta de uma crítica literária no país especializada em literatura infantil, que, apesar de usada com frequência em escolas, é analisada a fundo apenas em casos muito raros. “Acabamos de completar 20 anos da lei que obriga o ensino de cultura afro nas escolas, mas a gente ainda vê livros que reeditam personagens brancos como negros sem nenhum critério, só para cumprir uma questão mercadológica.”
Variedades de cabelos disponíveis no acervo da Afro Hair Library Open Source Afro Hair Library / Adésayo Adéoyé
Meninos e meninas
Outra descoberta feita pela professora foi a clara predominância de meninas, em detrimento dos garotos, especialmente quando o assunto são as madeixas. E, nos casos raros em que eles aparecem em livros, costumam ostentar sempre um black power, sem grandes variações. Dos dois únicos exemplos que encontrou voltados para o tema com protagonistas masculinos, um deles Veloso considerou uma representação profundamente inadequada.
“Tinha ilustrações muito ruins, em que o cabelo do personagem ficava cheio de mato e bichos”, lembra. Como parte das crianças com quem trabalha ainda não sabe ler, a professora enfatiza o poder das imagens quando se trata da literatura para esse público. “Tem que ter imagens bem construídas para não criar um imaginário negativo.”
Um relatório de 2017 da organização Common Sense mostrou que a reprodução de estereótipos relacionados a gênero em filmes e na TV pode impactar de forma duradoura o desenvolvimento dos pequenos. O estudo enfatiza que, como chegam às crianças num momento do desenvolvimento em que elas estão altamente suscetíveis a influências externas, muitos desses produtos são bastante efetivos para cristalizar aquilo que supostamente se espera de homens e mulheres na sociedade.
A pesquisa destaca ainda que estilos de cabelo com que meninas e mulheres costumam ser retratadas, com madeixas geralmente compridas e lisas, assim como cortes curtos e com poucas características marcantes para homens, ajudam a reforçar estereótipos, agindo muitas vezes para definir estéticas de gênero e restringir outras possibilidades.
“Acredito que, na literatura, a questão do gênero se dá pela ausência de representação do cabelo masculino”, destaca Veloso. “Talvez por uma questão mercadológica mais forte de beleza e estética para mulheres. Enxergo um certo descaso nesse sentido.”
As próximas gerações
Quando a professora de programação e game design Taty Calixto deu aula para jovens de periferia, lá em 2019, percebeu que as narrativas que eles construíam costumavam fugir com frequência daquelas a que estamos acostumados na indústria mainstream. “Nunca vou esquecer de um jogo que eles fizeram que tinha até o carro do ovo, uma representação perfeita da periferia.”
Esses estudantes, em sua maioria pretos e pardos, queriam jogos que representassem suas vidas e o dia a dia das comunidades onde viviam, de acordo com a professora. Se ainda não vemos esses elementos retratados nas telas com frequência, isso diz bastante sobre quem está por trás dessas produções. “Na indústria de games, os desenvolvedores em geral são homens brancos de classe média alta”, afirma Calixto.
Segundo ela, o debate sobre jogos mais diversos, com retratos que fujam dos estereótipos, ainda é muito recente — uma questão social maior que apenas se reflete nesse universo. Até por isso, boa parte dos games que surgem dentro dessa temática costumam ser criados por produtoras pequenas e independentes. “Muitos deles surgiram justamente porque os jogos tradicionais não retratavam esse público”, aponta a professora. “Para mim, a aposta de mudança vem justamente desses estúdios menores.”
Um exemplo recente é o game “Hair Nah”, em que o objetivo do jogador é impedir que pessoas toquem sem permissão e de forma indevida no cabelo da protagonista negra — além de entretenimento, um alerta contra a prática invasiva, mas infelizmente ainda comum.
Foi para incentivar mais produções com cabelos diversos e fiéis às texturas e formatos da vida real que A.M. Darke criou a iniciativa pioneira Open Source Afro Hair Library, uma comunidade de artistas que criam e disponibilizam gratuitamente representações dos diversos tipos possíveis de cabelos afro. No site, é possível escolher entre texturas enroladas, encaracoladas, cacheadas, onduladas e até mesmo alisadas, além de estilos com tranças ou lenços.
“Queria um espaço que desenvolvesse uma comunidade em torno do conhecimento e linguagem da cultura negra, usando o cabelo como ponto de partida”, revela Darke. A artista segue investindo esforços na ampliação do catálogo de imagens, assim como na construção de uma comunidade de desenvolvedores negros que consigam apoiar uns aos outros dentro da profissão, ainda restrita para eles.
“Tenho testado meus jogos com minha irmãzinha desde que ela tinha cinco anos, inclusive games que são sobre a identidade dela”, conta a desenvolvedora. “Penso com frequência nela. É parte da razão porque tento melhorar a representatividade positiva numa iniciativa como essa, para que ela possa abrir um jogo e encontrar personagens com cabelos belíssimos como os dela.”
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