A polêmica do menu QR Code — Gama Revista
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Reportagem

QR Code ou menu de papel?

Ame ou deteste, o menu digital veio para ficar em bares e restaurantes, mas a ferramenta tecnológica que ganhou força na pandemia gera debates apimentados sobre hiperconectividade e perda da experiência do cliente

Ana Elisa Faria 11 de Junho de 2023

QR Code ou menu de papel?

Ame ou deteste, o menu digital veio para ficar em bares e restaurantes, mas a ferramenta tecnológica que ganhou força na pandemia gera debates apimentados sobre hiperconectividade e perda da experiência do cliente

Ana Elisa Faria 11 de Junho de 2023

Para desanuviar do dia pesado no escritório, das reuniões chatas e das horas em frente ao computador, você escolhe jantar, sozinho ou acompanhado, em um restaurante aconchegante que serve uma comida gostosa, degustada ao som do bate-papo alheio e do tilintar de taças e talheres que ressoam pelo ambiente.

O programa, porém, pode se tornar indigesto com a adição de um ingrediente controverso: o cardápio em QR Code, uma das mais polêmicas — para não dizer odiadas — heranças da pandemia de Covid-19. Isso porque, ao apontar a câmera do celular para o código de barras disposto na mesa, o cliente sai dali e, novamente, é transportado para o mundo online que gostaria de esquecer ao menos por uma refeição.

Não é incomum que durante a olhadela no menu virtual mensagens de trabalho pululem do WhatsApp e do correio eletrônico, dispersando o freguês por algum tempo. Ou trazendo à lembrança os anos pandêmicos. Afinal, estamos ali, presencialmente em uma fase mais amena da crise sanitária que começou em 2020, mas tudo ao redor nos remete à memória do distanciamento social, como o álcool em gel, as máscaras dos garçons e o próprio cardápio, que parece estar longe do lugar onde realmente estamos.

Michel Alcoforado, antropólogo e pesquisador, diz que o fato de o telefone estar à mesa para ser usado como um display de opções alimentares tira o foco do motivo que leva as pessoas a frequentarem bares e restaurantes: se encontrar com amigos, familiares, paqueras e afins para comer e beber algo especial, conversar, conviver com os outros e esquecer um pouco da rotina, das questões do dia a dia. “O grande problema do QR Code, ou de qualquer tecnologia como ponto de partida para um encontro, é que ele breca a principal função dos encontros, que é a ruptura com o cotidiano.

O cardápio no QR Code cria uma dificuldade para entrarmos no túnel das relações

“Quando sentamos para jogar conversa fora com alguém, seja por interesses de negócios ou mesmo apenas para encontrar um amigo, entramos numa outra dimensão de tempo, um tempo sem preocupação com o que está no entorno. E a obrigação de a gente ainda ter que manter hoje, sem nenhuma necessidade biológica ou sanitária, o cardápio no QR Code cria uma dificuldade para entrarmos no túnel das relações”, pontua.

Com o menu digital, segundo ele, o smartphone ganha um protagonismo indevido com o arrefecimento do bate-papo a cada olhada na tela para fazer um pedido, o que não ocorre quando há à disposição a versão impressa. “O cardápio físico fica num canto, quase como um adendo, uma aba, não como um protagonista. Com toda a mobilização que o QR Code gera, o celular assume uma importância que não deveria ter naquele momento.”

Para Alcoforado, é extremamente difícil, na sociedade hiperconectada em que vivemos, conseguirmos nos livrar do celular para resolver problemas profissionais ou relacionados à família e que, portanto, em horas de lazer, não deveríamos estar condicionados a pegar a todo instante esse aparelhinho que não nos desconecta do mundo lá fora.

“Nesses tempos de conexão perpétua, como alguns pesquisadores chamam os dias de hoje, em que o trabalho apita a todo instante e as questões familiares pululam a qualquer segundo, você se sente imerso no universo digital de tal forma que se aflige para se afastar dele; desligar o celular vira uma batalha. E a experiência de ir a um restaurante não deveria estar nesse contexto”, afirma.

É o fim da experiência?

Depende. A tal experiência, que vem a ser transformar uma refeição numa vivência diferente, mágica, para além do paladar, é citada tanto por restaurateurs quanto pela clientela como um dos itens mais prejudicados pelo advento dos menus online. No entanto, a mesma experiência pode ser beneficiada pelos códigos de resposta rápida, os QRs, dependendo do tipo do estabelecimento.

Gabriela Barretto vive essa contradição. A chef é proprietária de duas casas bastante distintas em Pinheiros, na capital paulista, o Chou, restaurante aconchegante, de estilo minimalista, cuja marca são os pratos que saem tostadinhos da brasa, que queima lentamente carnes e vegetais, e o Futuro Refeitório, moderninho, abrigado num antigo estacionamento e que serve uma comida feita mais rapidamente, com café coado passado em qualquer horário.

O Chou aderiu ao QR Code quando estabelecimentos foram reabertos na pandemia, mas assim que a onda de transmissões baixou, a vacina chegou e a ciência demonstrou que o risco de transmissão do coronavírus a partir do toque em superfícies contaminadas era baixíssimo, o cardápio impresso voltou às mesas — e o virtual foi aposentado.

“Esse modelo faz mais sentido com a proposta do restaurante. Quero que os clientes tenham uma experiência mais lenta, leiam o cardápio com calma, sem tanta interferência da tecnologia. Ou seja, a ideia é ficar menos com o celular na mão, ter mais conversas, mais conexões, mais olhos nos olhos”, conta.

Já para o Futuro o plano sempre foi outro. Com alma futurista, como o nome adianta, o papel foi abolido, dando espaço ao QR Code, que ficou de vez e ainda ganhou companhia. Agora, os pedidos também são feitos por meio do mesmo aplicativo, só o pagamento que é realizado diretamente no caixa. “Foi uma decisão estratégica porque foi o jeito dado para o restaurante conseguir passar pela pandemia. Mais do que isso, foi uma reformulação no método de atender, que era algo que eu queria desde o começo lá. E essa atualização é uma tendência mundial no serviço dos restaurantes.”

Mesmo seguindo essa inclinação moderna, de inovação, o Futuro Refeitório possui um plano de contingência para quem tem dificuldade com a tecnologia do QR Code, mantendo alguns cardápios impressos e com funcionários a postos para ajudar.

Barretto sabe que há uma onda de reclamações a respeito do QR Code por parte da freguesia, incluindo a publicação de variadas piadas no Instagram, memes no Twitter e vídeos engraçadinhos no TikTok, chegando até a casas legislativas, como a do Rio de Janeiro, que quer proibir o uso exclusivo do menu em dispositivos eletrônicos. Mas ela acredita que esse ódio é um tanto equivocado.

“Honestamente, sempre vai ter alguém para reclamar, porém, acho que o cliente tem que pensar um pouco que há outras coisas por trás dessa escolha. Ela não é apenas um resquício da pandemia, mas tem a ver com os setores da gastronomia e de serviço, que estão em crise”, relata. E o QR Code barateia certos processos. Uma pesquisa da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) divulgada em setembro de 2022 mostrou, inclusive, que com a adoção do cardápio eletrônico, 13% dos empresários consultados apontaram a substituição de garçons e 39% dos entrevistados citou uma redução dos custos de produção.

Voltando à experiência, Dany Simon, sócio do restaurante Cora (que abriu em julho de 2021 com o menu em papel, formato que segue até hoje), localizado na Vila Buarque, em São Paulo, é também um gourmand que dá dicas nas redes sociais de endereços para comer bem e tomar bons cafés.

O cardápio em papel é uma peça que comunica a proposta e trabalha o conceito da casa

Para ele, os menus em QR Code foram extremamente importantes e úteis durante as fases mais graves da pandemia, mas não vê mais a necessidade de fazer uso dessa ferramenta em 2023. “Ter que pegar o celular e entrar em um link para escolher o que pedir fez parte de um contexto específico da vida. Atualmente, acho que o QR Code acaba afetando negativamente a experiência do cliente. O cardápio em papel é uma peça que comunica a proposta e trabalha o conceito da casa. Há todo um cerimonial envolvido”, fala.

Mauro Brosso é designer e sócio do Shuk, especializado em comida de rua do Oriente Médio. A lanchonete, instalada numa movimentada esquina do bairro de Pinheiros, tem um ano recém-completado. É uma cria pandêmica, mas nem por isso é adepta do QR Code.

Ele explica: “Inauguramos num cenário pós-apocalíptico, digamos assim, mas desde sempre foi uma opção nossa oferecer apenas o cardápio impresso. Como cliente, nunca gostei de mexer no celular enquanto como algo, fora que não é higiênico manipular, durante a refeição, esse objeto que anda com a gente por todos os lugares.”

Brosso ressalta ainda o ponto fundamental para a adoção do menu impresso no Shuk: o trabalho anterior como designer — é ele, aliás, quem cria e diagrama o material da casa. “O papel dá a dimensão do cardápio como um todo. Conseguimos enxergar de uma vez todas as seções, entendemos melhor como o restaurante pensa, qual é a proposta, o conceito, a identidade, qual é a comida servida.”

Outro ponto citado é que o papel, seja de qual tipo for, é um meio de comunicação que aproxima o restaurante do comensal. “A gente escolheu trabalhar com comida de rua, então, o formato do nosso cardápio, e o visual dele, foi todo pensado no estilo de uma lanchonete. É mais um ponto de contato nosso com o cliente, de falar e reforçar que vendemos uma comida simples, de rua”, completa ele.

Além disso, Brosso menciona que a lógica de leitura do cardápio digital pode confundir quem está fazendo o pedido por ter de subir e descer a tela inúmeras vezes, sem uma noção panorâmica da coisa. “Você dá o scroll down, vai e volta por um monte de seção. No online, a organização é feita de forma linear, e não disposta como um todo. Quando o cardápio está fisicamente aberto na frente da pessoa, ela pode escolher enquanto conversa com o colega, eles pensam juntos no que vão pedir, no que dá para compartilhar.”

Se o cardápio é bonito e marcante, o restaurante especial, e a comida traz memórias afetivas, há quem leve para casa um exemplar da listinha de opções de comes e bebes. Defensores do cardápio impresso acreditam que esses papeizinhos guardam registros importantes de culturas e momentos históricos.

A Biblioteca Nacional, por exemplo, tem um acervo de cardápios doados por D.Pedro II. O imperador colecionava os itens, trazidos de viagens pelo mundo. Olavo Bilac e Mário de Andrade também eram adeptos da prática, uma forma de lembrar de uma bela refeição.

Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo

Os argumentos mais levantados por quem é contra esse novo normal gastronômico estão relacionados à tecnologia — ou à falta dela. Telefone celular antigo, sem câmera, plano de dados no fim, wi-fi do estabelecimento que não conecta ou é lento, o zoom eterno na telinha para enxergar melhor a descrição dos pratos e o sobe-e-desce na tela fazem parte da lista de ódio ao QR Code.

Para agradar gregos, troianos e apreciadores de comida francesa, o tradicional La Casserole, no centro de São Paulo, tem três opções de cardápio, a gosto do freguês: o QR Code, o “cardapião”, cópia ampliada do cardápio que, hoje, fica na entrada do estabelecimento, mas no início da pandemia era acomodado de mesa em mesa, numa cadeira vazia, para que cada grupo escolhesse o que pedir em segurança, além do bom e velho menu em papel, individual.

Marie-France Henry, proprietária do restaurante, conta que, do lado dela do balcão, o QR Code proporciona uma grande facilidade de processos, principalmente para atualizar o conteúdo dos pratos ou qualquer falta de ingrediente que ocorra no dia, praticidade impossível com o material impresso. Entretanto, a maioria dos frequentadores tem elogiado a volta do cardápio impresso. “As pessoas ficam felizes com a hospitalidade do maître em recebê-las com os cardápios. Então, acho que os clientes gostaram muito de ter recuperado essa parte da experiência”, revela.

Por enquanto, o trio de menus está à disposição, mas a equipe do local está avaliando qual opção pode ser retirada de circulação caso não haja tanta saída.

As pessoas ficam felizes com a hospitalidade do maître em recebê-las com os cardápios

De acordo com José Eduardo Camargo, líder de conteúdo da Abrasel, o QR Code já era uma tendência que ganhou forte impulso com a pandemia, e não deve deixar de circular.

“O universo de bares e restaurantes é bastante diverso, com vários tipos de culinária e serviços. Portanto, há espaço para o cardápio digital e para o impresso, os dois vão conviver tranquilamente e até concomitantemente. Cada estabelecimento conhece o público que tem, as preferências e os hábitos de consumo para optar por um ou outro”, indica. Camargo lembra que a intenção é sempre atender o cliente da melhor maneira possível e, por isso, ninguém deixará de ser servido porque não gosta desse ou daquele menu. “Mesmo os locais com QR Code têm guardados cardápios impressos para quando precisar.”