Chef Rodrigo Oliveira, do Mocotó, e a comida brasileira — Gama Revista
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Conversas

Rodrigo Oliveira: "Sinto um desencantamento com a alta gastronomia, que não é sustentável"

Chef do Mocotó comemora os 50 anos do restaurante com preocupações sociais e ambientais. “Deveríamos nos perguntar não o que fazer para ser o melhor do mundo, mas como fazer o melhor para o mundo”

Isabelle Moreira Lima 11 de Junho de 2023

Rodrigo Oliveira: “Sinto um desencantamento com a alta gastronomia, que não é sustentável”

Isabelle Moreira Lima 11 de Junho de 2023

Chef do Mocotó comemora os 50 anos do restaurante com preocupações sociais e ambientais. “Deveríamos nos perguntar não o que fazer para ser o melhor do mundo, mas como fazer o melhor para o mundo”

Faz 20 anos que Rodrigo Oliveira se encantou pela gastronomia. Era estudante de gestão ambiental quando ouviu falar de um novo curso que ensinava tudo sobre a alta cozinha. Naquele momento, ele tentava implementar melhoramentos na Casa do Norte da família na Vila Medeiros, zona norte de São Paulo. O restaurante conhecido hoje como Mocotó, que já tinha 30 anos, era um híbrido de venda, boteco e lugar para se comer, mas muito improvisado, “decadente” nas palavras de Oliveira. Acontece que quanto mais ele queria mudar o local, mais o pai, José Almeida, o fundador do lugar, se irritava. Os dois começaram uma queda de braço que durou anos e fez com que o filho saísse de São Paulo em busca das raízes nordestinas: o grande ponto de virada.

Depois de viajar 50 dias e 11 mil quilômetros, Oliveira se sentia pronto para fazer uma comida nordestina fiel às suas raízes e passou a usar da inteligência emocional para reduzir ao máximo os conflitos com o pai. Foi assim que colocou o Mocotó, um restaurante instalado na periferia paulistana, no mapa da gastronomia nacional.

Em 2023, o Mocotó faz 50 anos consolidado, com uma segunda casa de mesmo nome na zone oeste e outros estabelecimentos irmãos em diferentes pontos da cidade — um dos destaques é o Balaio, que fica no prédio do IMS, na avenida Paulista. Também tem presença nos Estados Unidos, com uma cozinha para eventos. Rodrigo Oliveira está na TV como jurado do Masterchef e virou uma voz relevante da comida no Brasil, com preocupações sociais sempre verbalizadas.

É nesse contexto que, em entrevista a Gama, ele avalia a gastronomia brasileira. A mais alta não o interessa mais. Ele a considera excludente, insustentável e irrelevante em um mundo em que os índices da fome só crescem. Por outro lado, acha que falta articulação para que o Brasil entre no mapa gastronômico mundial, e isso faria diferença para o país e para o trabalho dos chefs brasileiros. Hoje, Oliveira quer estar mais próximo da terra e vê no ato de plantar a verdadeira confecção da comida.

“Caminhamos para uma cozinha com mais essência e menos acessórios — uma coisa mais responsável também. Deveríamos nos perguntar não o que fazer para ser o melhor do mundo. Mas como fazer o melhor para o mundo, senão não vai sobrar tijolo sobre tijolo onde a gente possa pendurar uma estrela”, afirma na conversa que você lê abaixo.

Tinha receio de fazer algo que não fosse legítimo, uma desonra às nossas raízes

  • G |O Mocotó faz 50 anos neste ano. Os últimos 20 foram de adaptações suas para o restaurante ser o que é hoje. Como vê essa trajetória?

    Rodrigo Oliveira |

    Dá para resumir a trajetória do Mocotó em uma palavra: improvável. Era um boteco num lugar onde as pessoas não queriam ir. Dizer que ele ia ganhar alguma notoriedade nacional, e ainda mais internacional, era quase cômico. Comecei aos 13 lavando louça, ajudava no que podia, saía com meu pai para fazer compras na Kombi azul. Mas era difícil imaginar uma carreira lá, então fui estudar engenharia ambiental, depois larguei para fazer a gestão ambiental e foi aí que conheci gastronomia por um colega de curso. Descobri esse universo e me encantei. Já o Mocotó nem se chamava Mocotó, era uma casa do Norte anônima e não parecia fazer parte desse universo que eu estava descobrindo. Mas comecei a tentar implementar algumas ideias ingênuas (separar cumbucas dos copos na lavagem, tirar o caixa de debaixo da estufa, tirar o lixo do lado das panelas, etc.) na marra e comecei a tomar gosto, larguei a faculdade e foi esse o momento da virada. Entendi que o Mocotó poderia fazer parte da gastronomia, afinal as leis são universais, poderíamos decodificá-las para a nossa realidade. Tinha pouquíssimo recurso, zero experiência, mas intuição e coração. Criei coragem para largar o curso de gestão ambiental e fazer gastronomia. Mas ali, embora eu tivesse aula de cozinha brasileira e nordestina, elas estavam em um patamar diferente da francesa.

  • G |E como foi que isso mudou? Quando passou a haver um interesse gastronômico pela cozinha nordestina e a do Mocotó?

    RO |

    O primeiro a falar do Mocotó com esse interesse foi o Josimar Melo, que foi ao restaurante por causa do [concurso gastronômico] Comida di Buteco, em 2004. Ele percebeu algum valor ali. Depois o Arnaldo Lorençato ia escrever uma resenha e ligou para checar informações. Eu atendi e achei que era trote. Ele queria saber se era bar ou restaurante, eu nem sabia. Dias depois saiu essa super-resenha elogiosa, muito generosa. Naquela época eu já estudava gastronomia e fazia adaptações pra dar uma cara mais de restaurante, tirar aquela cara decadente, que é uma palavra muito precisa porque a casa já existia há 30 anos sem planejamento ou investimento. Acho que a grande virada foi em 2004.

  • G |Seu pai não aprovou suas ideias de cara e ficou louco da vida quando viu você mudando “só tudo”. Quando acha que ele ganhou confiança?

    RO |

    Eu abandonei o restaurante muito magoado com meu pai, que nunca pareceu feliz com nada que eu fazia. Tivemos uma desavença por causa de uma pessoa da família, que tinha problemas, mas meu pai insistia em manter no restaurante. Procurei o documento de compra e venda do carro, uma caminhonete velha, fiz um roteiro de viagem numa folha de caderno e saí para conhecer o Brasil. Falei: “Se acabar o dinheiro, eu vendo o carro, compro uma passagem de ônibus e continuo”. Foi um choque em casa. Percebi que era sério quando fui me despedir, mas não tinha volta. Eu nem sabia se voltaria. Queria conhecer o Brasil, especialmente o Nordeste, e tudo o que estava no caminho que eu não tinha conhecido. Foi a primeira vez que fui ao Rio de Janeiro. Fui até a costa do nordeste, a Fortaleza, fazendo um zig zag para ver o sertão: Petrolina, Juazeiro… Foi uma viagem muito intensa, eu estava curioso demais, meu pai dizia que eu não sabia de nada e eu queria encontrar quem sabia. Visitei todos os mercados municipais, conheci muitos produtores, eu tinha receio de fazer algo que não fosse legítimo, uma desonra às nossas raízes. Mas viajando percebi que pouca gente no Nordeste tinha o mesmo compromisso. Uma vez falei com um amigo chef italiano, o Luca Gozzani, que disse que se sentiu verdadeiramente italiano apenas fora da Itália. Então eu, apartado dessa cultura, queria honrá-la. Foram 50 dias e quase 11 mil quilômetros de estrada e muita mudança dentro de mim: fiquei confiante, sabia que o que a gente fazia era importante. Tinha muita coisa para evoluir, mas sabia que era o caminho. Foi o momento mais dramático da nossa história, mas o que me deu mais confiança para seguir.

  • G |E o ponto mais alto?

    RO |

    O Mocotó conquistou muita coisa, muito reconhecimento. Acho que a gente contribuiu com esse entendimento de que a cozinha brasileira e a regional também tinham valor gastronômico. Você podia sair para comer uma massa, mas também para comer um baião-de-dois. Até então a gente não tinha parâmetros ou referências, quando começamos não diziam coisas bonitas, era uma comida “feia”, “pesada”. O Mocotó conseguiu uma linguagem que passou a ser entendida pelo Brasil e pelo mundo. Me enche de orgulho quando vejo uma família cearense, paraibana, pernambucana no restaurante. É o maior troféu possível, sinal de que fazemos algo legítimo.

Como é possível dizer que o Eleven Madison Park é melhor que o Maní?

  • G |E o que você espera para o Mocotó nos 50 anos da casa?

    RO |

    O tema da celebração não são esses 50 anos que passaram. O que está em jogo são os próximos 50. Não se trata de ser o melhor do mundo, mas o melhor para o mundo: como a gente pode contribuir e impactar positivamente nessa cadeia super-ramificada? O restaurante se relaciona com produtores, que vai de frigoríficos multinacionais até oficinas de costura do bairro, que fazem os nossos uniformes, e pequenos produtores de queijo. Como ter um restaurante que pode “restaurar” essa essa cadeia, o alimento, as pessoas e, em última instância, a sua comunidade e uma sociedade?

  • G |No ano passado você estreou na TV como participante de reality, no “Iron Chef”. Agora você é jurado de outro, o “Masterchef”. Por que resolveu investir na TV? O que acha que essa experiência pode trazer para você?

    RO |

    Foi muito mais intuição do que estratégia. No caso do “Iron Chef”, eu não queria nem conversar, mas fui convencido. E realmente toda a dinâmica era muito diferente, eram chefs superprofissionais, outro nível de cozinha, cozinheiros consagrados de várias partes do mundo. Fizemos uma reunião e achei o projeto lindo, incrível, respeitoso com os ingredientes da cozinha brasileira. Mesmo assim, eu estava certo de dizer não, até que uma pessoa da produção fala “Olha, eu sei que para vocês pode não fazer muita diferença, talvez não seja um grande ganho, mas isso pode ser realmente decisivo para esses jovens supertalentosos e que ainda não conseguiram espaço”. E é verdade porque tive a chance de contar a minha história no Comida di Buteco 2004, que foi decisivo. No final, foi uma experiência maravilhosa, tanto de cozinha quanto de TV, o programa ficou muito bonito, muito elogioso à cozinha brasileira. E o “Masterchef”, eu sempre me senti bem acolhido ali em participações rápidas, e o formato se mantém atual, relevante, é uma referência. Sem falar no grupo, não pode ter time melhor, são universos tão diferentes, é muito rico.

  • G |A Paola Carosella já falou que usou o reconhecimento no programa para falar das coisas que considera importantes, temas mais políticos. Acha que pode ir pelo mesmo caminho?

    RO |

    O programa é mais um amplificador das coisas que a gente faz. Não é um novo canal porque você tem um roteiro. Mas o programa tem uma mensagem. Inclusive, outro dia, teve uma baita repercussão: tem uma pessoa no grupo que se reconhece como não binária e a Ana Paula Padrão falou bem-vindes. Isso gerou uma avalanche de ódio, de comentários. Foi inacreditável que a ofensa seja à língua portuguesa. Mas as reclamações são feitas em um português deplorável. Tem uma falsa moralidade terrível.

  • G |Durante a pandemia, você se dedicou muito ao projeto Quebrada Alimentada. Como é que ficou depois que os restaurantes voltaram a encher os salões?

    RO |

    A responsável pelo projeto sempre foi a Dri [a historiadora Adriana Salay, casada com Oliveira], a articuladora que amarrou essas muitas pontas. O programa continua até hoje, agora formalizado. Servimos diariamente cerca de 80 refeições e atendemos mais de 200 famílias com cestas básicas e cestas de orgânicos de agricultura familiar.

  • G |Você é filho de migrante nordestino que saiu do sertão e teve que fazer a vida a duras penas em SP. É casado com uma historiadora cuja área de pesquisa é justamente a fome. Tem o projeto social, viu os números da fome subirem no país nos últimos anos. Pensando em tudo isso, como vê a alta gastronomia? Ela ainda te interessa? Como ela pode fazer sentido num país como o Brasil?

    RO |

    Já faz algum tempo que sinto um certo desencantamento com essa alta gastronomia porque ela se mostra insustentável. São restaurantes hiper exclusivos, que limitam o acesso, cobram uma fortuna e dão prejuízo. Como é que isso pode ser sustentável? O próprio fechamento do Noma passa um sinal importante, alguma coisa está desequilibrada. Para ser o melhor do mundo você precisa ter um menu de muitos tempos, que precisa estar harmonizado com os melhores vinhos, que precisam estar nas melhores taças, a comida empratada na louça feita à mão especialmente para o restaurante. Isso é muito restritivo. E como é que você é capaz de dizer que o Eleven Madison Park é melhor que o Maní? Que o Noma é melhor que o Central? Que o Osteria Francescana é melhor que o Mirazur? Esse movimento que foi batizado de “bistronomia”, de vários chefes três estrelas que fechavam os seus restaurantes para montar lugares muito mais casuais, informais, e eficientes, mas com nível de cozinha altíssimo, faz mais sentido. Eles não têm menos valor gastronômico, assim como os restaurantes superfinos sempre vão ter espaço porque você tem situações extraordinárias que pedem isso. Só que a gente tem muito mais situações ordinárias do que extraordinárias. Caminhamos para uma cozinha com mais essência e menos acessórios — uma coisa mais responsável também. Deveríamos nos perguntar não o que fazer para ser o melhor do mundo. Mas como fazer o melhor para o mundo, senão não vai sobrar tijolo sobre tijolo onde a gente possa pendurar uma estrela.

Precisamos fazer a cozinha brasileira presente em todos os territórios

  • G |Então como é que fica seu envolvimento com essa cabeça e depois de tanto tempo nesse mundo da gastronomia? O que você ainda quer fazer?

    RO |

    Plantar, estar perto da terra, isso é que é fazer comida. Quando estamos no restaurante, nos apropriamos da comida que outros fizeram, dos que plantaram, dos que pescaram, dos artesãos que transformaram leite em queijo. Você se apropria disso pra oferecer para outras pessoas. Mas fazer comida mesmo vem de um cuidado íntimo com a natureza, o cuidado com o solo, dessa química, dessa biologia, dessa coisa cósmica que é a agricultura. Essa é uma das coisas que mais me fascina e é uma fonte de inspiração imensa, estar em contato com a terra.

  • G |Você está fazendo isso no seu sítio?

    RO |

    Todo o resíduo orgânico do restaurante é compostado, vai pro nosso sítio, alimenta os nossos canteiros, e volta como alimento. E assim vamos tentando aproximar o restaurante do campo.

  • G |Como é que você vê, então, a gastronomia brasileira hoje? Que desafios precisamos vencer e o que conquistamos?

    RO |

    A gente precisa de uma articulação maior com o poder público e com as agências que têm o poder de levar o Brasil para o mundo em um esforço de “gastrodiplomacia”. Precisamos fazer a cozinha brasileira presente em todos os territórios. Quando a gente vê essas cozinhas brilhando no mundo inteiro, do Japão, da Itália, parece que simplesmente aconteceram, né? O Peru, agora a Tailândia também. Mas não aconteceu simplesmente. Teve um esforço muito bem organizado, com muito recurso, que traz também retorno em forma de turismo, de fomento da indústria, de desenvolvimento interno, de mobilidade social. Há quem diga que os chefs não são unidos. Mas eu discordo, nossa geração tem muito mais afinidades que desavenças. Compartilhamos contatos, nos ajudamos, nos damos suporte. Mas falta articulação e organização, que são coisas diferentes. É o que nos deixa defasado em relação ao mundo, mas especialmente no movimento latino. Olha o que Peru, México e Colômbia fizeram? E a Argentina… Imagina uma cerimônia importante como o 50 Best, tá na 11ª edição e não teve um evento sediado no Brasil. Espero que isso se resolva logo. [Depois da entrevista, o Rio de Janeiro foi anunciado como a nova sede do evento.]

  • G |Mas ao mesmo tempo esse é um ranking da alta gastronomia…

    RO |

    Sim e o Mocotó esteve no ranking desde a primeira edição. É uma exceção mesmo. Os restaurantes não se parecem com ele. Todos têm uma linguagem e código parecidos, o DOM, o Central. O ranking é importante, a celebração dessa cozinha como uma cozinha . O Brasil não se sentia parte desse universo latino. O idioma é em grande parte responsável por isso, a gente olhava mais para Europa do que para a América Latina, mas quando chegamos perto vemos que temos mais em comum do que se supunha. É uma barreira importante para superarmos. Assim como fizeram políticas afirmativas para ter mais chefs mulheres, seria importante distribuir geograficamente a lista para que oferecesse um painel de diversidade.

  • G |Para terminar, conta como é que dá para fazer tudo isso o que você faz e pensar em tudo isso que você pensa com cinco filhos.

    RO |

    É no modo sobrevivência mesmo. É um sistema caótico. Mas tenho a sorte de ser casado com uma mulher extraordinária, a Adriana Salay. É uma supermãe, muito dedicada à maternidade, me ajuda com os nossos filhos e com as minhas [três] filhas do primeiro casamento com a Ligia, que também é uma grande mulher. Na parte profissional, eu tenho sorte de estar rodeado de gente também extraordinária, muito competente, muito apaixonada, que suprem minhas falhas e ausências. O Mocotó conheceu sua primeira planilha não tem nem 10 anos. Eu sou incapaz de avaliar a performance do restaurante vendo aqueles números. Mas eu sinto o restaurante: eu estou ali e consigo perceber as coisas e dialogar com todas as instâncias do restaurante.