Ivan Jablonka fala sobre as diferentes formas de ser homem — Gama Revista
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Conversas

Ivan Jablonka: ‘Temos uma oportunidade histórica de refundar o masculino’

Historiador e sociólogo francês que acaba de lançar ‘Homens Justos — Do patriarcado às novas masculinidades’ no Brasil fala a Gama sobre como as diferentes formas de ser homem podem curar o masculino de seu complexo de superioridade

Amauri Arrais 21 de Novembro de 2021

Ivan Jablonka: ‘Temos uma oportunidade histórica de refundar o masculino’

Amauri Arrais 21 de Novembro de 2021
Mariana Simonetti

Historiador e sociólogo francês que acaba de lançar ‘Homens Justos — Do patriarcado às novas masculinidades’ no Brasil fala a Gama sobre como as diferentes formas de ser homem podem curar o masculino de seu complexo de superioridade

O modelo de masculinidade que conhecemos está caduco. Ele é “esmagador para as mulheres, mas também tem um custo alto para os homens”, que se acomodaram a esse funcionamento patriarcal da sociedade. Tiraram proveito dele. A constatação está na introdução de “Homens Justos — Do patriarcado às novas masculinidades” (Todavia, 2021), misto de ensaio sociológico e manifesto político escrito pelo historiador e sociólogo francês Ivan Jablonka.

Homem branco, heterossexual e pai de três meninas, ele diz que muito cedo se sentiu incomodado por essa virilidade compulsória que privilegiava a força, a brutalidade e a arrogância entre os garotos. Na adolescência, chegou a sofrer insultos homofóbicos, para mais tarde descobrir que existem muitas maneiras de ser um homem.

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“É justamente porque minha identidade social e sexual está bem estabelecida — homem branco, heterossexual, professor universitário — que me parece útil desconstruí-la. Meu objeto de reflexão é esse poder masculino, historicamente construído, sociologicamente complexo e politicamente problemático”, afirma.

Para criticar seus pares, o escritor se aprofundou nas origens dessa dominação. Em “Laëtitia — Ou o Fim dos Homens” (Bertrand, 2017), já investigava as raízes de uma masculinidade patológica a partir do assassinato e esquartejamento de uma adolescente de 18 anos ocorrido em 2011 na França. A eclosão de movimentos como o #MeToo em 2017 e todos os seus desdobramentos liberaram a voz das mulheres, mas ainda não quebraram o silêncio dos homens. Jablonka, no entanto, é otimista.

“Graças aos debates de hoje, temos uma oportunidade histórica a aproveitar: a de refundar o masculino”, garante.

 Foto Helene Pambrun/Paris Match via Getty Images

A educação, ele diz, desempenha um papel decisivo. Assim como os pais, fornecendo modelos que evitem criar filhos como “reizinhos opressores” e filhas como “pequenas coisas frágeis”. Mas o trabalho também pressupõe um exame de consciência, em que todos os homens precisam se interrogar sobre a masculinidade no geral e a sua em particular: existem situações em que tiro proveito de minha condição de homem, mesmo sem querer, mesmo sem saber?

“As novas masculinidades podem curar o masculino de seu complexo de superioridade”, acredita o sociólogo, que propõe, como a próxima utopia, transformar o masculino para que se torne compatível com a justiça de gênero. Jablonka, para quem o feminismo é uma escolha política, explica na conversa com Gama como essa deve ser uma tarefa de homens e mulheres, diz quais são os custos sociais do patriarcado e os ganhos sociais, afetivos e familiares da busca pela igualdadade.

Justiça de gênero diz respeito à nossa moral pessoal, mas também a políticas públicas e formas de educação

  • G |Você já disse em entrevistas que, quando criança, gostava de coisas de meninas e que foi alvo de ataques homofóbicos na adolescência, apesar de se achar bastante heterossexual. Foi essa experiência que o fez despertar para outras formas possíveis de ser um homem?

    Ivan Jablonka |

    Eu jogava futebol apaixonadamente quando criança, mas me sentia completamente afastado daqueles camaradas “viris” que privilegiavam a força, a brutalidade, a arrogância. Isso não me impediu, mais tarde, de ter noites de futebol e cerveja com os amigos. A partir da adolescência, tive uma queda por atividades “femininas”: leitura, poesia, confidências, declarações de amor, etc. Existem mil maneiras de ser um menino, depois um homem. Se tiver que escolher, prefiro ser um homem ambíguo, fluido em sua identidade, em vez de um “macho”. Mas, se eu me pergunto sobre meu gênero, como o menino que eu fui e o homem que sou, sei perfeitamente quem sou. É justamente porque minha identidade social e sexual está bem estabelecida – homem branco, heterossexual, professor universitário – que me parece útil desconstruí-la. Meu objeto de reflexão aqui é esse poder masculino, historicamente construído, sociologicamente complexo e politicamente problemático.

  • G |No seu livro “Homens Justos: do Patriarcado às Novas Masculinidades”, você diz que esses homens justos devem ser “igualitários, hostis ao patriarcado e que valorizem o respeito mais que o poder”. O quão distantes estamos desse perfil? Estamos avançando?

    IJ |

    Meu objetivo é envolver os homens a olhar para trás e questionar a cultura da qual eles são o produto. O movimento #MeToo liberou a voz das mulheres, mas o silêncio dos homens ainda não foi quebrado. Para não se perguntar sobre sua jornada de gênero, na sua infância, tanto nas suas prerrogativas como nas suas faltas, tudo isto faz parte precisamente da cultura masculina dominante: um homem “real” não duvida de si mesmo ou de seu poder. Para ele, isso é óbvio. No entanto, esse questionamento atravessa muito mais homens do que podemos imaginar. Me parece que cada vez mais eles se sentem limitados nesses modelos normativos de sucesso profissional e de afirmação que a sociedade lhes propõe. Eu assisto especialmente nas gerações mais jovens, para quem essas reflexões se tornaram mais óbvias. Quando eu era criança, na década de 1980, as palavras “gênero” e “masculinidade” não existiam. Em vez de “homossexual”, “lésbica” ou “queer”, usávamos xingamentos. É difícil pensar sobre isso e sobre si mesmo quando você não tem nem as palavras. As ciências sociais e literatura também são usadas para isso.

  • G |É possível ensinar meninos, desde pequenos, com base nessa ideia de homens mais justos? Você vê uma diferença significativa nas novas gerações de garotos?

    IJ |

    A educação desempenha um papel fundamental em todas as fases da vida. Eu proponho três masculinidades adequadas para reconciliar homens com justiça de gênero: a masculinidade de não dominação, a de respeito e a de igualdade. Justiça de gênero diz respeito à nossa moral pessoal, mas também a políticas públicas e formas de educação. Os pais desempenham um papel decisivo, por meio do modelo que oferecem aos filhos. Como evitar criar nossos filhos como reizinhos mandões e opressores e nossas filhas como pequenas coisas frágeis? Como tornar nossos meninos homens justos e nossas meninas mulheres livres? Graças aos debates de hoje, temos uma oportunidade histórica a aproveitar: a de refundar o masculino.

Como tornar nossos meninos homens justos e nossas meninas mulheres livres? Graças aos debates de hoje, temos uma oportunidade histórica: a de refundar o masculino

  • G |O movimento #MeToo, a partir de 2017, foi de fato um divisor de águas para esse debate? Quais são os legados para além de fazer os homens se questionarem sobre abuso de poder e violência sexual?

    IJ |

    O movimento #MeToo faz parte de um conjunto de mobilizações coletivas, junto com o Ni Una Menos e também o Las Tesis, que têm uma importância histórica. Eles mostram a necessidade de uma reflexão conjunta sobre o masculino. Inventar novos modelos masculinos é uma das maiores utopias deste século. Meu livro pretende sacudir os homens. Eu gostaria que fosse usado para iniciar um debate para que nos perguntemos, individual e coletivamente: que masculinidades nós queremos? Que homens queremos ser? Eu escrevi este livro pensando sobre o meu próprio caminho, o de um menino em uma família globalmente tradicional, mas também o de um pai de três filhas.

  • G |Você afirma que o feminismo é uma escolha política e que todos estão habilitados a combater a dominação masculina, embora muitas feministas rejeitem o papel dos seus “opressores” no movimento. Como é possível ser um homem feminista?

    IJ |

    A questão, para os homens, não é ser “doce” ou “gentil”, mesmo que essas qualidades sejam importantes. A verdadeira questão, para mim, é ser justo. Um homem justo é sensível às relações de poder e à partilha de responsabilidades. Um homem justo se esforça para experimentar a igualdade dentro de seu casamento, na família, no trabalho, no espaço público, na política. Um homem justo respeita a liberdade de outro como um valor absoluto, especialmente em questões sexuais. Um homem justo recusa situações de conivência masculina quando envolvem violência, misoginia ou homofobia. Indiretamente, tudo isso define um feminismo masculino. A justiça de gênero visa redistribuir poderes e responsabilidades entre homens e mulheres, assim como a justiça social pressupõe a redistribuição da riqueza. Em outras palavras, a justiça de gênero caracteriza uma sociedade onde o sexo não está relacionado com nenhuma desigualdade social. Estamos longe disso hoje!

  • G |Você também diz que não cabe mais às mulheres se questionarem e justificarem suas escolhas de vida o tempo todo, mas os homens é que devem “recuperar o atraso na marcha do mundo”. Por onde devemos começar?

    IJ |

    Não podemos nascer homens, viver e morrer como homens sem questionar uma única vez a questão da masculinidade. Você tem que começar percebendo que o masculino não é uma norma universal, mas uma categoria, um ponto de vista. Todo mundo conhece o retrato do chamado “homem de verdade”: seguros, cultura de risco, álcool, velocidade, excesso de investimento no trabalho, incapacidade de verbalizar emoções ou consultar um terapeuta. Eles são, na realidade, alienações. Buscar a igualdade não é um sacrifício, mas uma forma de enriquecer a própria existência com a ajuda de muitos ganhos sociais, afetivos e familiares.

Buscar a igualdade não é um sacrifício, mas uma forma de enriquecer a própria existência com a ajuda de muitos ganhos sociais, afetivos e familiares

  • G |Você cita algumas raras exceções de homens que lutaram por mais igualdade de direitos para as mulheres, como Condorcet na França ou John Stuart Mill na Inglaterra. Consegue citar algum homem governante ou teórico atual que tenha contribuído de forma significativa para a igualdade de gênero?

    IJ |

    Justin Trudeau, primeiro-ministro canadense, é o único estadista a se declarar publicamente feminista. Mas ele também é um “filho de”, que encarna uma espécie de virilidade triunfante [o atual primeiro-ministro canadense é filho de Pierre Trudeau (1919-2000), que ocupou o mesmo cargo entre 1980 e 1984]. O fato de que os homens, especialmente os homens de poder, estão tão pouco interessados na justiça de gênero é um problema em si. Diante dessas questões, há entre muitos homens um constrangimento, combinado com uma espécie de incapacidade intelectual e emocional para abordar o assunto. Eles não têm palavras nem conceitos para responder aos desafios levantados pelo feminismo. O risco é de se tornar um desses pequenos tiranos inseguros, mas também de acabar desconectado dos avanços do mundo, da maneira que as mulheres vivem hoje. Como um político pode estar em acordo com os ideais de uma sociedade democrática se ele não estiver interessado na igualdade de gênero?

  • G |No caso da desigualdade nos postos de trabalho, muito já se provou dos benefícios de ter mais diversidade (de gênero, raça etc) nas empresas. Essa resistência que ainda vemos é uma luta por manutenção de privilégios?

    IJ |

    Acho que sim. Os negócios são um mundo projetado por e para os homens. Mas o as coisas estão mudando. Por exemplo, grandes grupos estão se abrindo para mulheres em certos níveis de gestão e cargos de direção. Pode-se dizer que, em geral, as mulheres são mais adequadas para a economia do conhecimento do que os homens. Isso se deve à sua educação de gênero: capacidade de comunicação e empatia, melhor capacidade de colaboração etc. Tantas qualidades hoje valorizadas no mercado de trabalho, principalmente nos cargos mais altos. Feita esta observação, convém lembrar que, nas universidades, nas empresas, na mídia, instituições, governos, ainda são os homens que dominam. Embora possa se imaginar como igualitária, nossa sociedade continua a valorizar o masculino.

  • G |Muitas das obras que questionam o patriarcado são escritas por mulheres e para mulheres. Seus livros têm um público masculino? Como chegar aos homens?

    IJ |

    Meu livro foi escrito por um homem, sobre homens, para homens. O problema é que os homens lêem pouco e, acima de tudo, não se interessam pela masculinidade ou na igualdade homem-mulher. Nas apresentações do meu livro, o público é 90% composto por mulheres. Então, elas oferecem meu livro para seus parentes, um pai, um irmão, um cônjuge, um filho. De forma mais ampla, é importante lembrar o custo social do patriarcado. Ele é esmagador para as mulheres, mas também tem um custo alto para os homens. O patriarcado é uma instituição sólida porque ele oferece um acordo para os seres humanos: as mulheres “do lado de dentro”, com o serviço doméstico e os filhos e homens “do lado de fora”, com todas as responsabilidades políticas, econômicas e militares. As mulheres são as primeiras vítimas desta ordem mundial. Mas milhões de homens também sofreram com isso ao longo da história. O exemplo mais óbvio é a guerra, esse massacre dentro do masculino. O custo da masculinidade é um encolhimento emocional e intelectual, o empobrecimento da vida cotidiana e uma mortalidade mais violenta e mais precoce. As mobilizações feministas e a evolução da legislação são decisivas. Para tornar os homens cientes dessas questões, talvez devêssemos começar de uma maneira pragmática: você quer que as mulheres em sua vida, sua mãe, sua irmã, sua esposa, sua filha, vivam em um mundo como o nosso?

Produto

  • Homens Justos: Do patriarcado até as novas masculinidades
  • Ivan Jablonka
  • Todavia
  • 432 páginas

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