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Reportagem

Por que as empresas devem doar

Essenciais no combate à pandemia, contribuições privadas constituem parte importante dos recursos do terceiro setor, mas ainda tropeçam em legislação insuficiente e problemas de comunicação

Leonardo Neiva 16 de Outubro de 2022

Por que as empresas devem doar

Leonardo Neiva 16 de Outubro de 2022

Essenciais no combate à pandemia, contribuições privadas constituem parte importante dos recursos do terceiro setor, mas ainda tropeçam em legislação insuficiente e problemas de comunicação

Você pode até saber tudo sobre os novos lançamentos da sua marca de roupas preferida, mas faz ideia de quanto ela tem investido em causas sociais? Ou o que seu banco tem feito pelo desenvolvimento da educação no país? Com a pandemia e a onda de solidariedade que se seguiu, o setor privado entrou nos holofotes, anunciando contribuições milionárias e investimentos consideráveis em áreas como saúde e assistência social. Mas não é de hoje que os olhos de boa parte das empresas estão voltados para a filantropia.

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Na realidade brasileira, o apoio de empresas e instituições privadas vem se mostrando importante para as OSCs (Organizações da Sociedade Civil), as tradicionais ONGs (Organizações Não Governamentais), que compõem o terceiro setor. Em 2020, quando o setor lidava com os impactos iniciais da pandemia, o volume de investimentos privados nas organizações chegou a R$ 5,3 bilhões, um salto em relação aos R$ 3,25 bilhões de 2018. E essa mobilização de recursos privados para fins públicos, que geralmente acontece de forma organizada, planejada e sustentável, é conhecida também por uma sigla: o ISP (Investimento Social Privado).

“O ISP é uma fonte de renda extremamente relevante para o terceiro setor”, aponta o diretor de operações e relações institucionais da organização Movimento Bem Maior, Richard Sippli. Para além das fontes já citadas, ele lembra dos convênios públicos e do direcionamentos de recursos de incentivo como fontes relevantes de recursos para o terceiro setor — que, no entanto, também chegam em volume muito menor dentro do território brasileiro.

O desafio é que a solidariedade não venha só em momentos de emergência, mas se transforme em uma cultura. Doar faz bem

Lá nos primórdios da pandemia, depois de uma paralisia inicial, as contribuições feitas por empresas privadas tiveram um considerável boom, acompanhando os esforços coletivos para combater os impactos da covid-19 tanto na saúde quanto em questões sociais, devido à crise financeira. No total, até 2021, o volume de doações teve uma movimentação recorde para uma situação emergencial, ultrapassando R$ 7 bilhões, segundo o Monitor das Doações da ABCR (Associação Brasileira de Captadores de Recursos). Desses recursos, o setor financeiro foi responsável pela maior fatia, contribuindo com 26% do total.

“O setor privado conseguiu com agilidade soluções super relevantes no combate à pandemia, algo que a gente nunca tinha visto”, lembra Thiago Alvim, diretor-executivo do Prosas, plataforma que une empresas e organizações sociais. Mas a urgência também gerou mudanças na estratégia de investimento desses recursos. Se antes boa parte das empresas doava por meio de editais e iniciativas continuadas, na pandemia reinaram o improviso e ações coletivas, diz o executivo. Uma rapidez que, segundo ele, foi extremamente positiva e adequada para o momento que vivíamos.

Porém, ao que tudo indica, esse ritmo não se manteve nem parece ter gerado um impacto duradouro dentro da cultura de doações no Brasil até o momento. Embora ainda não haja dados — o próximo censo GIFE deve acontecer apenas em 2023 –, o secretário-geral da instituição, Cássio França, relata escutar com frequência das organizações que as doações caíram consideravelmente desde então. No caso, tanto de pessoas físicas quanto do setor privado.

“Na época da pandemia, o ato de doar entrou na agenda de muitas instituições”, afirma França. “Mas é algo que precisa acontecer constantemente. Nosso desafio é que a solidariedade não venha só em momentos de emergência, mas se transforme em uma cultura. Doar faz bem.”

Uma corrida com obstáculos

Para além da questão cultural e do hábito do brasileiro de dar apoio a quem necessita, na opinião de França há outra barreira para esse tipo de ação: a falta de incentivos do governo e a tributação que ainda recai sobre doações por aqui. Também não ajuda o fato de que as OSCs e o mercado financeiro falam línguas bastante diferentes, o que dificulta a comunicação, na visão de Sippli, do Movimento Bem Maior. “Os dois lados aplicam olhares diferentes para as mesmas coisas. O terceiro setor tem uma visão muito mais humana, enquanto o empresarial tende a ser mais quantitativo e técnico.”

Muitas vezes, essa falta de compreensão entre as partes pode fazer com que uma empresa prefira resolver tudo em casa, abrindo seu próprio instituto filantrópico, iniciativa que Sippli considera válida desde que haja uma abertura para colaborar com o todo. “O risco de abrir institutos é você se isolar e ficar pensando que vai salvar o país sozinho.”

Outro impasse é a tradicional desconfiança que se tem do terceiro setor no Brasil, pontilhada pela impressão geralmente equivocada de não saber onde vão parar os recursos ou o medo de uma determinada organização não ser “séria”. “Tudo que a gente não conhece, desconfia. Com a OSC, é a mesma coisa. Mas as associações emitem relatórios e fazem prestação de contas. Tem que ter o mínimo de interesse para se aproximar e superar essa barreira inicial”, diz Sippli.

O ISP no Brasil fica muito aquém quando comparado a um caso como o dos Estados Unidos, onde os investimentos em causas sociais triplicaram na última década. Embora o volume desses recursos seja incomparável — se aqui falamos em bilhões de reais, lá são trilhões de dólares –, a fatia do bolo também é significativamente maior. Em 2018, representou um quarto de todos os investimentos privados feitos no país.

Deu match?

Foi com o objetivo de facilitar esse contato entre instituições privadas e organizações do terceiro setor no processo do investimento social que nasceu a plataforma Prosas. Na prática, ela organiza o fluxo de ofertas e demandas, permitindo um diálogo mais estruturado entre as duas partes. A tecnologia avalia de forma automatizada pedidos de doação de acordo com anúncios de empresas — geralmente editais — , selecionando os projetos que melhor se enquadram em cada proposta de investimento. E, a cada novo edital publicado, a informação vai para toda a rede de organizações, que é bastante extensa. Hoje são mais de 160 mil instituições cadastradas em todo o Brasil.

Se, por um lado, a plataforma ajuda a dar visibilidade para várias demandas do terceiro setor, principalmente de organizações menores, ela também é uma mão na roda para o setor de ISP das empresas, diz o sócio-fundador Thiago Alvim. Isso porque essa área costuma ter recursos escassos na maioria dos empreendimentos, já que está longe de ser o principal foco dos negócios. “Trazemos tecnologia para facilitar o processo de seleção nessas equipes geralmente bem enxutas, que muito dificilmente vão desenvolver uma solução própria para isso”, declara.

Além disso, Alvim aponta que a plataforma ajuda a combater um problema crônico dentro do investimento social no Brasil: a concentração de recursos nos grandes centros urbanos de São Paulo e Rio de Janeiro. “No ambiente online, uma organização do Acre está à mesma distância de um edital que aquelas bem mais próximas dos grandes centros de poder do Brasil.”

Para atrair/fazer investimentos

O maior desafio para que uma Organização da Sociedade Civil (OSC) consiga atrair investimento privado é alinhar os interesses das duas instituições, segundo o superintendente da Fundação FEAC, de Campinas (SP), Jair Resende. Atualmente, a instituição que apoia ações de educação e assistência social ocupa o quinto lugar entre as OSCs que mais doam no Brasil, segundo o Monitor de Doações da ABCR. “A organização precisa conhecer bem a instituição que está investindo, e essa busca nem sempre é muito fácil”, ressalta Resende.

O superintendente também destaca a importância da organização e estruturação internas para receber e destinar esses recursos de forma a gerar o maior impacto, além de avaliar dados e evidências concretos e estabelecer parcerias estratégicas para gerar transformação social. “Quando você pensa de forma estruturada e em grupo, tem mais capacidade para investir numa resolução.”

Toda empresa precisa buscar uma filantropia que seja estratégica e sustentável

Na visão da diretora de responsabilidade social do BTG Pactual, Martha Leonardis, as duas pontas da equação — tanto a OSC quanto a empresa privada — precisam manter um diálogo mais próximo para alcançar o máximo de eficiência. “Não tem como eu aqui na Faria Lima [avenida empresarial de São Paulo] saber o que a pessoa da comunidade quer. Colaboração é a palavra-chave.” A executiva exemplifica com uma ocasião em que a empresa tentou doar cestas básicas para famílias da periferia. O problema é que boa parte delas estava sem energia e, portanto, sem condições de cozinhar. “Primeiro eles precisavam da conta de luz paga.”

Toda empresa precisa buscar uma filantropia que seja estratégica e sustentável, afirma a representante do BTG. Além de ter doado R$ 50 milhões para o combate à covid-19, desde o início da pandemia a instituição também vem apoiando OSCs via leis de incentivo e realiza programas como o Soma, que capacita líderes de organizações de médio porte a captar recursos para áreas como educação e meio ambiente.

Leonardis considera que há sim incentivos suficientes para que empresas doem no Brasil. O problema, segundo ela, é que a legislação limita o uso desse dinheiro a um projeto específico, e não à causa como um todo, o que acaba deixando as instituições de mãos atadas. A executiva compara o caso brasileiro ao dos EUA, onde há mais incentivos também para que pessoas físicas façam doações.

Mudou mas nem tanto

Em relação ao Investimento Social Privado no Brasil, Alvim ressalta que os números costumam acompanhar os altos e baixo do PIB. O ano de 2020, portanto, teve um crescimento fora da curva considerando a forte crise financeira, porque a emergência sanitária se sobrepôs à economia, diz. Já os investimentos em 2021, de acordo com ele, parecem estar num patamar mais próximo do de 2019. “Subimos cinco degraus e depois voltamos cinco, com correção da inflação. Estamos mais seguindo a economia do que tendo alguma mudança considerável de padrão”, afirma. Mas considera: “Também estamos vendo sim mais empresas refletindo sobre seu papel dentro do social.”

Temos organizações com condição de pensar a construção de um país menos desigual, menos racista e mais democrático

Para a representante do BTG, um dos grandes legados das ações sociais na pandemia foi a criação de uma corrente de apoio para incentivar as doações, rompendo a tradicional timidez dos brasileiros em falar de sua atuação social. “Todo mundo fazia e falava que fazia, o que gerou uma onda muito maior”, relembra. “Não é postar nas redes que você doou uma cesta básica, mas dividir com amigos e criar um movimento.”

Ainda no contexto da pandemia e da crise financeira pela qual passamos, o Brasil apresentou uma evolução significativa. Pelo menos é o que diz o ranking global de generosidade World Giving Index. Em comparação com a última pesquisa, o país saltou da 54ª para 18ª posição em 2021. “A pandemia trouxe um choque de realidade que permitiu entender que ninguém está isolado”, declara Sippli, do Movimento Bem Maior. “É a ideia de que uma corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco.”

Um dos grandes desafios que o setor precisa enfrentar hoje, para Cássio França, do GIFE, é pensar no investimento social para além das áreas tradicionais, buscando lidar também questões mais profundas da sociedade brasileira. “Temos organizações com toda a condição de pensar a construção de um país menos desigual, menos racista e mais democrático. Algumas já estão começando a trabalhar esses temas.”

Este conteúdo foi produzido com o apoio de Confluentes, Gife e Movimento Bem Maior.