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ReportagemO café multipremiado que vem da Amazônia
Alternativa para espécie arábica, que sofre com as mudanças climáticas, o robusta amazônico vem sendo mais valorizado e consumido
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O café multipremiado que vem da Amazônia
Alternativa para espécie arábica, que sofre com as mudanças climáticas, o robusta amazônico vem sendo mais valorizado e consumido
Quando a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) propôs a Valdir Aruá, 49, iniciar em 2018 um projeto experimental, o produtor indígena já cultivava café da variedade robusta havia 14 anos ao lado da família em Rio Branco, terra indígena do estado de Rondônia. E a proposta da instituição era simples: transformar a pequena área de cultivo familiar numa produção focada em cafés especiais.
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A julgar pelo segundo lugar que o café Aruá conquistou ainda no mesmo ano no Concafé, o Concurso de Qualidade e Sustentabilidade do Café de Rondônia, o projeto foi um sucesso. “Desde lá, a gente começou a apostar nesse projeto, investir, seguir todos os passos e logo no primeiro ano já teve um resultado grande”, conta Tawã Aruá, 25, filho de Valdir, que hoje tem sua própria lavoura cafeeira, mas ainda contribui com o empreendimento da família.
Os resultados que os produtores indígenas de café da região alcançaram chamou a atenção de uma das maiores empresas do Brasil no setor. O impacto foi tanto que, em torno da novidade, a mineira 3 Corações criou o Projeto Tribos, que comercializa em microlotes pelo Brasil o café produzido por mais de 130 famílias do estado, retornando 100% do lucro aos produtores.
Em 2022, foi a vez do café Aruá ficar com o primeiro lugar na premiação promovida pelo próprio projeto. “Para a gente, que não tem uma estrutura tão moderna assim, é gratificante. A gente trabalha com o que tem e tenta fazer o melhor”, afirma Tawã. Segundo o jovem agricultor, um dos grandes diferenciais do café que a família produz é o plantio sem químicos e agrotóxicos.
Os robustas amazônicos trazem uma personalidade sensorial de aromas e sabores bem específicos da Amazônia
O protagonismo que produtores indígenas vêm ganhando na produção cafeeira em Rondônia é um dos muitos capítulos que têm catapultado nos últimos anos o café do tipo robusta amazônico ao topo do interesse de especialistas e de aficionados por cafeína. E não só por características como o aroma e sabor dos grãos produzidos no estado, elogiados e premiados Brasil afora, mas também porque pertencem a uma espécie que, ao longo da história ,sempre foi considerada inferior.
Basta fazer o teste. Vá até a cozinha e verifique o pacote de seu café preferido de tipo especial. A chance é enorme de a embalagem ostentar os dizeres “100% arábica”. “Por muitos anos, a gente achou que só o café 100% arábica tinha qualidade”, explica a barista e especialista em cafés Maíra Teixeira. “Antigamente, só se falava em usar robusta ou conilon, variedades da espécie canéfora, dentro da indústria farmacêutica e para fazer blends de cafés mais baratos ou solúveis, com menor complexidade sensorial.”
Como a especialista deixa claro, fazer uma comparação direta entre as variedades de café é tarefa complexa. Mas dá para dizer que o arábica, com o qual a maioria das pessoas está acostumada, possui sabor suave e adocicado, com acidez leve e notas aromáticas que remetem ao chocolate, caramelo e frutas de um espectro mais doce. Já no robusta da região amazônica, a acidez aumenta, com aroma e sabor intensos e amadeirados, que, segundo Teixeira, lembram uma bebida alcoólica a exemplo do uísque. E um detalhe importante: os produtos dessa variedade trazem quase o dobro de cafeína em sua composição.
Até pela visão negativa que se tinha dos canéforas, os cafés robusta e conilon não eram trabalhados com o mesmo refinamento na colheita e pós-produção que os arábica recebiam — realidade que vem mudando com o boom inicial da produção em Rondônia e a revalorização do cultivo de conilon centrado no Espírito Santo.
“Os robustas amazônicos trazem uma personalidade sensorial de aromas e sabores bem específicos da Amazônia, uma característica muito brasileira. Apesar de o arábica ser predominante, o robusta é um café muito nosso. Ele está tendo um crescimento por conta disso, o mundo está conhecendo a complexidade dessa variedade”, declara a barista.
Reprodução/Embrapa
A jornada do robusta
Apesar de muita gente hoje se assustar quando se fala em plantar café na Amazônia, segundo o agrônomo e pesquisador da Embrapa Enrique Alves, a cafeicultura na região vem de séculos atrás. “Ela começou por lá em 1727, no Pará, com plantações de arábica. Há relatos de que, no Forte Príncipe da Beira [fortificação portuguesa do século 18 em Rondônia], já se produzia café arábica, que era trocado por prata na Bolívia”, conta o pesquisador.
Também é fácil entender o motivo para o projeto não ter fincado raízes na região. “Obviamente, aqui não é o lugar mais propício para cultivar café arábica”, complementa Alves. A temperatura ideal para produzir arábicas da melhor qualidade fica entre os 18º e 21ºC, segundo o próprio pesquisador, enquanto a média anual em Rondônia varia de 23º a 26ºC, com máximas beirando — e, em alguns casos, batendo — os 40ºC.
A variedade canéfora só foi aportar no Brasil quase dois séculos depois, com a chegada do conilon ao Espírito Santo. Na década de 1970, seu cultivo na região tinha como principal destino a indústria de cafés solúveis. Foi nessa época, de acordo com o pesquisador, que agricultores do Sul e Sudeste começaram a migrar para a região amazônica, como resultado da política de “Integrar para Não Entregar” do governo ditatorial. A “geada negra”, que dizimou plantações de café em 1975, também contribuiu para intensificar esse movimento.
“Os mineiros, capixabas e paranaenses tinham uma relação muito forte com o café e começaram cafeiculturas”, conta Alves. “Os capixabas trouxeram as primeiras mudas de conilon, que era mais rústico, adaptado às condições locais e mais produtivo mesmo com pouca tecnologia. Aos poucos, ele foi tomando conta das antigas lavouras de arábica.”
O protagonismo que produtores indígenas vêm ganhando em Rondônia é um dos muitos capítulos que têm catapultado o café do tipo robusta amazônico
O uso do robusta só foi começar na década de 1990, quando a Embrapa trouxe sementes para serem cultivadas na região. Nas plantações, a cultura acabou se mesclando à do conilon. Segundo Alves, a seleção genética da Embrapa e a feita pelos próprios cafeicultores, “que escolhiam sempre as plantas mais vigorosas e produtivas”, foi o que deu origem aos robustas amazônicos, na verdade híbridos de conilon e robusta.
“As pessoas tendem a tratar robusta e conilon como a mesma coisa, mas eles têm algumas características muito diversas. O conilon tem maior tolerância à seca, e o robusta se desenvolve melhor em locais com alta precipitação, como a Amazônia. Todo o ambiente era muito favorável aos robustas”, aponta o especialista.
Os quase 30 anos de produção e seleção que definiram os robustas amazônicos geraram plantações muito diferentes das de conilon do Espírito Santo, diz Alves. Além de serem plantas maiores e mais produtivas, os cafés da região costumam ter menos cafeína que os conilons tradicionais e são mais resistentes a doenças como ferrugem e a ação dos nematoides — vermes que atacam as raízes dos cafeeiros.
Questão de clima
Além do impacto da novidade, há uma razão prática para que a espécie canéfora ganhe destaque mundo afora. As mudanças climáticas que têm elevado as temperaturas globais — para especialistas, 2023 deve se tornar o ano mais quente da história — e fenômenos como o La Niña e El Niño, que influenciam o clima em vários países, têm causado sofrimento às plantações de arábica e reduzido a oferta da variedade no mercado de café.
É o que aponta o consultor em gestão sensorial de bebidas e alimentos Ensei Neto. “A América Latina vem passando por uma crise que está derrubando a produção de café. Essa incerteza fez com que as indústrias começassem a alterar seus blends para ter um pouco mais de canéfora, pelo medo de não haver arábica suficiente para compor o produto.”
O especialista, criador do blog The Coffee Traveler, lembra que, apesar da popularidade recente do robusta amazônico, o grosso da produção nacional de canéforas ainda vem dos conilons cultivados no norte do Espírito Santo. A espécie também já ganha espaço no sul da Bahia e norte de Minas Gerais, além de estar sendo incentivada em Alta Paulista, região que abraça municípios de São Paulo como Marília, Dracena e Adamantina.
Uma boa notícia para os fanáticos pela bebida é que a suposta inferioridade de aroma e sabor dos canéforas hoje está sendo revista e decorre principalmente da falta de conhecimento, considera Neto. “O arábica vem sendo plantado e pesquisado há quase 300 anos no Brasil, desde 1700. Já os canéforas têm um histórico de menos de 50. Tanto que, no momento em que os produtores começaram a ter um domínio técnico maior, a qualidade subiu exponencialmente.”
Embutido nessa melhora, está um trabalho mais lento e cuidadoso de pós-colheita, especialmente na secagem, que era feita a temperaturas de quase 400 ºC — uma receita para o desastre, nas palavras do especialista. Embora os canéforas em geral possuam o dobro de cafeína dos arábicas, o fato de possuírem mais carboidratos equilibra a equação quando o processo da torra é bem conduzido, diz Neto.
Outra descoberta relevante e consideravelmente nova que o especialista aponta é que o teor de açúcar disponível, bem maior no arábica, acaba não impactando o café que chega à sua xícara, já que o ingrediente acaba sendo zerado durante a torra. “Ainda há essa interpretação de que o arábica é mais doce. Mas isso só acontece no grão cru, e o que interessa é depois de torrado.”
Sustentabilidade e diversidade
Hoje, cerca de 17 mil famílias cafeicultoras compõem a produção de café em Rondônia, setor onde se concentra um quinto da mão de obra da agricultura no estado, segundo a Embrapa. Um dado que, à primeira vista, pode parecer contraditório é que, embora a área cultivada tenha caído mais de quatro vezes, a produção aumentou desde o início do século.
Se 20 anos atrás, as plantações de café ultrapassavam os 300 mil hectares, hoje são menos de 70 mil cultivados, segundo o pesquisador Enrique Alves. “Só que, 20 anos atrás, a gente produzia menos de duas milhões de sacas por ano, e hoje já passamos de três”, afirma. Isso porque a produtividade média, antes inferior a dez sacas por hectare, atualmente está próxima dos 50. “A produção é sustentável tanto pela redução de área, aumento da produtividade e capacidade do solo quanto por um aspecto climático. Se você tem um terroir favorável, precisa de menos insumo para produzir.”
Além das condições climáticas favoráveis ao robusta, tecnologias foram sendo implantadas ao longo das últimas duas décadas para aprimorar a irrigação, poda, colheita e seleção de materiais genéticos. A proximidade da mata também permite a muitos agricultores plantar no sistema de agroflorestas, que combina plantas nativas com o cultivo de café. “É nítida a maior conservação das áreas de matas remanescentes no entorno de onde se produz café”, diz Alves.
Embora a maior presença de árvores permita o plantio sob a sombra em alguns casos, o pesquisador frisa que a maioria das plantações ainda acontece a pleno sol — o que tem impacto sobre o sabor e aroma do café. Segundo Ensei Neto, o cultivo à sombra pode trazer resultados sensoriais melhores, pois estressa menos as plantas. “Mas, para se tornar economicamente viável, a maioria das plantações tem que ser a pleno sol. Se for sombreada, limita demais”, complementa o especialista.
Reprodução/Instagram @edianacapich
Capich é uma das expoentes do Mulheres do Café de Rondônia, movimento que busca dar maior visibilidade às produtoras da região, muitas vezes ocultas à sombra de maridos e familiares homens. Frisando a cooperação entre as produtoras do estado, ela faz questão de citar o apoio da engenheira agrônoma Poliana Perrut, cafeicultora premiada e outra das lideranças do movimento, na transformação de sua produção.
Com apoio de técnicos do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), a agricultora Ediana Capich, 46, fez saltar sua produção de 76 para 119 sacas por hectare nos últimos seis anos. Os dois hectares que hoje ela cultiva ao lado do marido e da filha no município de Novo Horizonte do Oeste (RO) estão na família há mais de 40 anos. “Parece que está no sangue, falar de café para mim é muito forte.”
Hoje, Capich se orgulha de ter transformado o cultivo da família, considerado no passado “uma das piores cafeiculturas nacionais”, numa das mais reconhecidas do Brasil. Em 2020, sua marca, o café Lagoa da Mata, abocanhou o primeiro lugar na premiação Coffee of the Year, na categoria de fermentação induzida para canéfora. No ano seguinte, a produtora também ficou na 34ª colocação da lista de mulheres mais poderosas do agro brasileiro, elaborada pela Forbes.
Hoje, Capich segue investindo tanto na melhoria dos processos de produção quanto em aprimorar os próprios conhecimentos por meio de cursos de seleção, torra de café, e até de barista. O objetivo, segundo ela, é dominar desde o cultivo até a qualidade do produto que está colocando no mercado. “Somos só o começo desse processo de valorização do café de Rondônia. Conseguimos sobreviver no campo através do café, e é isso que queremos passar para as próximas gerações.”
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