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ConversasJ.J. Bola: 'Vivemos num mundo onde a violência entre os homens é mais comum do que o afeto'
Escritor britânico nascido no Congo, autor de ‘Seja Homem’ fala sobre as pressões que moldam desde cedo a masculinidade e as possibilidades de transformação
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J.J. Bola: ‘Vivemos num mundo onde a violência entre os homens é mais comum do que o afeto’
Escritor britânico nascido no Congo, autor de ‘Seja Homem’ fala sobre as pressões que moldam desde cedo a masculinidade e as possibilidades de transformação
Numa tarde de sábado, o então adolescente J.J. Bola passeava pelas ruas do bairro londrino de Tottenham High Road ao lado de seus “tios” — como costumava chamar os membros adultos da comunidade congolesa onde cresceu. Alto e com porte atlético, a aparência de Bola inspirava um certo respeito entre os garotos da sua idade. No entanto, enquanto caminhava em direção à casa de um dos “tios” — onde almoçaria um banquete tradicional da culinária do Congo, sua terra natal — algumas práticas comuns em sua comunidade começaram a incomodá-lo: em particular, as vestes coloridas e espalhafatosas de seus companheiros e o fato de andar de mãos dadas com um deles.
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“Isso é perfeitamente normal na cultura congolesa e na cultura africana francófona”, diz na introdução de seu livro, “Seja Homem: a masculinidade desmascarada” (Dublinense, 2020), onde narra essa lembrança. “É uma maneira dos homens se unirem e demonstrarem afinidade, assim como carinho um pelo outro.” Mas não foi dessa forma que um dos jovens moradores de seu conjunto habitacional enxergou a situação. “‘Tá de mão dada, é isso?’, ele disse, e a turma de apoio primeiro riu baixinho, para depois explodir em gargalhadas. Ainda lembro da dor, da pontada no meu coração”, Bola conta na obra.
Esse é apenas um dos muitos exemplos das visões estereotipadas sobre o que significa ser homem na nossa sociedade que o autor traz no livro — e de como essas pressões acabam exercendo impactos significativos nos próprios homens e em todos ao seu redor. “Essas regras que atingem os homens desde a infância acabam sempre se manifestando na forma de vergonha. É uma tática poderosa usada para silenciar muita gente”, conta em entrevista a Gama. “É uma estratégia para garantir que as pessoas se adaptem e mantenham certos ideais que nos possibilitam pertencer à sociedade. A história que eu conto no início de ‘Seja Homem’ reflete isso.”
Nascido no Congo e radicado em Londres, o escritor evoca no livro, além das próprias memórias, tradições sociais, culturais e estudos da área para apontar como a ideia atual de masculinidade mantém os privilégios masculinos e afeta a sociedade. Com prefácio de Emicida, a obra propõe maneiras de descontruir a noção que temos do “homem de verdade” para forjar uma nova masculinidade menos nociva, sugerindo métodos e ferramentas concretos para essa transformação.
Criado no limiar entre as culturas congolesa e britânica, Bola conheceu desde cedo dois tipos de masculinidade, a um mesmo tempo semelhantes e diversas. “Na cultura congolesa, é normal e até um símbolo de masculinidade se apresentar de forma muito colorida na aparência e maneira de se vestir. É o oposto da cultura britânica, em que isso é visto como um hábito feminino”, conta. Essas diferenças estiveram entre os fatores que levaram o escritor a compreender que não existe uma ideia universal do que é masculino. “Significa que é possível incentivar uma versão mais idealizada e positiva da masculinidade.”
Num bate-papo com Gama, Bola, também autor do romance “O Involuntário Ato de Respirar” (Dublinense, 2022), comenta a proliferação de grupos que atacam mulheres nas redes sociais, a participação masculina na luta feminista e diz se é possível a homens com histórico de violência de gênero transformar seus hábitos.
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G |Falamos muito sobre as mudanças na masculinidade, especialmente na relação com as mulheres. Mas estamos realmente vendo alterações significativas no que significa ser homem, ou é um processo que ainda está engatinhando?
JJ Bola |As mudanças continuam sendo graduais e geracionais, como sempre foram. Algumas coisas estão avançando numa direção positiva e outras nem tanto. Uma das mudanças significativas que vivenciamos é que os jovens, os adolescentes, estudantes etc. estão muito mais versados e têm um conhecimento bem maior do que no passado sobre questões relacionadas à masculinidade, patriarcado e igualdade de gênero. Sim, entre eles, muito ainda são suscetíveis às influências negativas e infelizmente tendemos a nos focar nessas histórias. Porém, há muitas outras, pelo menos em mesmo número, sobre mudanças positivas ocorrendo no mundo inteiro dentro desses movimentos. Deveríamos começar a falar sobre elas muito mais do que temos feito.
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G |Quando você fala em influências negativas, se refere a movimentos conservadores que se enxergam como uma resistência a essas mudanças? De onde eles surgem?
JJ |Para falar a verdade, esses movimentos sempre existiram. A internet e as mídias sociais só deixaram expostas o que costumavam ser ideias à margem, posicionando-as no centro dessas discussões. Além disso, você vai descobrir que, durante períodos de insegurança, pessoas em posições privilegiadas vão continuar condenando ao ostracismo grupos marginalizados, numa tentativa de manter suas posições de privilégio e permanecer no controle.
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G |Mas como explicar o surgimento de grupos, inclusive aqui no Brasil, que se unem com o propósito de diminuir e atacar mulheres? As redes sociais também motivaram o crescimento desse tipo de violência?
JJ |As redes sociais adicionam uma camada de anonimato da qual talvez seja difícil escapar nos dias de hoje. Então você vê esse garotos ou homens atacando mulheres online, trollando e usando os discursos mais desprezíveis como forma de perpetuar a misoginia. Mas não acho que seja nada diferente do comportamento misógino que já vemos na sociedade; é o tipo de representação à qual somos expostos e que introduzimos a uma geração de crianças através de filmes, programas de TV, músicas, normas e valores transmitidos por meio de nossas escolas e religiões. Aí a gente se surpreende ao ver que essas crianças cresceram para se tornar adultos que perpetuam a misoginia. Para que tudo o mais possa mudar, o que precisamos é desmantelar esses sistemas hierárquicos que permitem que homens oprimam e dominem as mulheres, entre outros gêneros marginalizados, usando a violência.
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G |Na sua visão, os homens devem ter uma participação importante na luta feminista?
JJ |A participação dos homens na luta feminista é incrivelmente importante. Acredito que também seja nossa responsabilidade falar e educar outros homens sobre quais comportamentos são prejudiciais. Precisamos nos educar a respeito do que é o privilégio masculino e ensinar a outros homens que o feminismo não atua contra eles. Na verdade, trata-se de criar igualdade e equidade, ajudar a libertar mulheres e os próprios homens das expectativas violentas e perigosas depositadas sobre todos nós por esse sistema patriarcal sob o qual vivemos.
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G |Você começa o livro “Seja Homem” contando uma passagem da sua adolescência, em que sentiu vergonha quando seus colegas te viram de mãos dadas com um membro da sua comunidade. Por que os homens sofrem desde cedo tantas pressões sobre esse tipo de demonstração de afeto?
JJ |Essas regras que atingem os homens desde a infância acabam sempre se manifestando na forma de vergonha. É uma tática poderosa usada para silenciar muita gente, numa conformidade que mantém o status quo. A vergonha é uma estratégia para garantir que as pessoas se adaptem e mantenham certos ideais que nos possibilitam pertencer à sociedade. A história que eu conto no início de “Seja Homem”, sobre a vergonha que senti, reflete isso. Foi a descoberta de que eu seria julgado por ser diferente, por me mostrar alguém diverso do que se esperava que eu fosse. Muitos homens passam por experiências como essa. E alguns mantêm uma falsa bravata, um certo chauvinismo misógino, porque entendem de forma implícita que, se não agirem dessa forma, serão relegados ao ostracismo e banidos. Ou seja, não vão mais pertencer a uma masculinidade patriarcal se não apresentarem certos tipos de comportamentos, geralmente misóginos. Só quando passarmos a rejeitar esses hábitos, esse sentimento de vergonha, e adotarmos nossas representações autênticas da masculinidade, é que finalmente seremos livres.
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G |Na sua escrita, você se refere com frequência a essa posição central que ocupa entre a origem congolesa e a criação britânica. Como essas duas culturas e formas de vivenciar a masculinidade te influenciaram?
JJ |Em relação à masculinidade, as duas culturas têm similaridades, mas também são diferentes. O Congo é uma sociedade hierárquica patriarcal da mesma forma que a Inglaterra, em que os homens costumam ocupar posições de poder, particularmente quando falamos de riquezas e status social. Mas foi nas diferenças culturais que essas duas coisas colidiram dentro de mim. Na cultura congolesa, é normal e até um símbolo de masculinidade se apresentar de forma muito colorida na aparência e maneira de se vestir. É o oposto da cultura britânica, em que isso na verdade é visto como um hábito feminino. No Congo, também é bastante comum que os homens dancem, com movimentos de quadril particularmente sensuais, o que não acontece na Inglaterra. Tudo isso me permitiu compreender que a masculinidade é fluida e não existe uma ideia universal do que é ou não masculino. O que é considerado masculino em um lugar pode não ser em outros. Significa que é possível incentivar uma versão mais idealizada e positiva da masculinidade, que seja restaurativa e útil para todos.
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G |É importante desmascarar primeiro como a masculinidade funciona hoje para só depois visualizar novas formas de ser homem?
JJ |Para mim, não é só sobre construir outras formas de ser homem. Significa nos libertar completamente das ideias rígidas e opressivas de uma masculinidade patriarcal hegemônica. Viver e existir na liberdade e fluidez de uma masculinidade completa, que não dependa de subjugar um outro gênero, mas seja satisfatória e livre. Minha visão ideal é que possamos simplesmente ser e existir, sem comparar constantemente o que é e o que não é um homem. Quero que sejamos capazes de vivenciar a completude da nossa imaginação e autenticidade, que possamos nos olhar no espelho e nos orgulhar de quem somos. Não são muitos os homens que conseguem isso. Nem muitas pessoas em geral, na verdade.
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G |Homens são os principais causadores de violência física e psicológica contra mulheres e até contra eles mesmos, pensando nas altas taxas de suicídio masculino. Essa violência está conectada à construção histórica da masculinidade?
JJ |Como homens, sofremos de uma profunda socialização da violência. Somos ensinados desde muito jovens que a violência, a raiva e a agressão são as línguas que precisamos falar para sermos ouvidos, respeitados e compreendidos. Aprendemos cedo na escola, no playground que o garoto maior e mais forte é aquele que é mais respeitado. Que o menino que consegue lutar e não dá sinais de medo é um homem de verdade. Não somos ensinados que o garoto que cuida dos outros, demonstra empatia ou é mais amoroso é um homem de verdade. Vivemos num mundo onde a violência entre os homens é mais comum do que o afeto. Achamos tão fácil assistir a homens lutando entre si que até criamos esportes e espetáculos baseados nisso, e torcemos ao mesmo tempo em que achamos profundamente desconfortável quando homens dizem “eu te amo” uns aos outros.
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G |Você publicou recentemente um livro infantil, “Fly Boy”, que ilustra a importância de discutir saúde mental com crianças. Esse debate vem avançando dentro das famílias, em especial no que se relaciona à masculinidade tóxica?
JJ |O estigma da saúde mental é algo que ainda limita os diálogos sobre o tema. Mas, de forma resumida, acredito que as coisas estejam mudando a cada nova geração. Sei que essas conversas não eram comuns na geração dos meus pais, mas são mais habituais hoje em dia e devem ser ainda mais normalizadas na próxima geração e na que virá depois dela. Sou muito otimista e acredito que as coisas estejam mudando para melhor nesse sentido.
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G |No Brasil, existe o Grupo Reflexivo para Homens, que promove encontros para educar e habilitar homens que tenham cometido violência doméstica. Na sua opinião, homens que realizaram atos de violência podem se transformar?
JJ |Projetos de reabilitação são muito importantes e necessários, mas precisam ser realizados com base em boas intenções. A transformação é possível, mas também acho que ninguém é capaz de mudar realmente sem algum tipo de justiça restaurativa ou reparação. Como isso vai acontecer depende da pessoa ou da comunidade que foi afetada. Contudo, é preciso diálogo para ajudar a reparar os danos e injustiças que aconteceram no passado e pavimentar o caminho para um futuro melhor.
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G |O campo da política segue sendo bastante desigual em termos de gênero no mundo inteiro. Mas, para gerar uma mudança real nas maneiras de governar, simplesmente colocar mais mulheres em posição de poder é suficiente?
JJ |Não acredito que aumentar o número de mulheres vai mudar as formas de governar porque elas também podem perpetuar os mesmos sistemas e comportamentos opressivos. É possível que mulheres mantenham pensamentos misóginos, assim como os homens. Da mesma forma que minorias étnicas podem ter ideais racistas que posicionam o privilégio branco no topo da hierarquia, ou que pessoas LGBTQIA+ podem ajudar a perpetuar ideais heteronormativos. É incrivelmente importante ter pessoas de diferentes origens e experiências em posições de poder — para ser honesto, precisamos desmantelar esse poder e criar uma sociedade mais equânime e equilibrada –, mas elas devem operar de forma a não sustentar os sistemas hierárquicos da supremacia branca, do patriarcado, do capitalismo ou imperialismo. Devemos usar essas origens para nos informar e educar sobre nossas experiências de vida diversificadas, ajudando a compreender melhor as batalhas de cada um para que não sejamos forçados a repetir as mesmas estruturas de opressão que se perpetuam há séculos.
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G |O capítulo de conclusão de seu livro sugere uma série de ferramentas e estratégias de transformação. Mas quem são os homens que realmente querem mudar? E como começar?
JJ |Os homens que querem mudar são aqueles que já estão se olhando no espelho e se questionando a respeito de tudo. Aqueles que enxergam que algumas coisas não fazem sentido, que podem existir outras maneiras de agir. Esses homens existem e estão por aí. Precisamos perfilá-los. Devemos focar nossos esforços nas coisas positivas que queremos ver, em vez das negativas que não queremos. Isso já começou, está acontecendo, basta abrir a janela e dar uma olhada lá fora.
- Seja Homem
- J.J. Bola
- Dublinense
- 176 páginas
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