Quando a masculinidade se desmonta — Gama Revista
© Reprodução/ piratasdegenero

Quando a masculinidade se desmonta

As oficinas e as ações virtuais do coletivo Piratas de Gênero, do Rio de Janeiro, mostram que o homem está nos olhos de quem o vê

Laura Capelhuchnik 11 de Agosto de 2020

“A masculinidade é um delírio. Você coloca fios de macarrão na cara e…todo mundo existe em algum delírio sobre gênero. Eu gosto de mostrar o que isso é”, conta Prili, artista, comentando uma foto em que emula costeletas, um arrumado bigode e uma monocelha usando pedaços de macarrão parafuso e cola de cílios. A imagem está na conta de Instagram do Piratas de Gênero, coletivo que organiza desde 2018.

O grupo ministra oficinas drag king +, um processo de experimentação em que os participantes exploram suas ideias sobre a masculinidade em frente a um espelho, com bonés e trejeitos, barbas e bigodes, pêlos no peito construídos com mechas dos próprios cabelos. A experiência é feita para pulverizar noções do que seja homem ou mulher e investigar o quanto dessas características supostamente inatas são fruto de mera encenação, que podem ser aprendidas e replicadas.

Os arquétipos de gênero agora têm sido desmontados no ambiente virtual, já que a quarentena impossibilita a agenda de oficinas. Em julho, o perfil do coletivo no Instagram lançou a série “Piratas por DM”, em que os seguidores são convidados a colaborar enviando fotos. Alguns participantes cortam suas madeixas para dar à luz sua ideia de masculinidade em barbas fartas, outros preferem recorrer a objetos, como pregadores de varal, plantas ou alimentos. Prili também trabalha para inaugurar um grupo de estudos sobre linguagem e políticas públicas a partir da experiência com o Piratas e ampliar as discussões da oficina.

“A gente tenta ajudar o mínimo possível. Fica de assistência para a pessoa fazer a própria transformação. Leva espelho, cola de cílios, alguém que saiba cortar cabelo e um fotógrafo para fazer retratos das personas que aparecem”, conta Prili.

Não é uma regra neste tipo de prática passear pelos estereótipos num estilo surrealista ou hiperbólico. Mas foi por meio do humor que Prili começou a se interessar pelo universo king — sua primeira persona veio numa festa de carnaval, e era fruto da imagem mais básica e primitiva do que é ser másculo: um rugidor homem das cavernas de tanga de oncinha acompanhado de um galho de árvore.

“Depois disso, a cada vez que fazia king via várias camadas de masculinidade se dissolvendo de alguma forma dentro de mim, e consegui trabalhar isso com o corpo”, explica. Depois veio o Pablo, um “esquerdomacho”, que fazia suas aparições em vernissages e que ensinou a Prili como é mais fácil ser sociável e engajar em conversas munido de lábia, andar confiante e bigode. E assim vieram outros kings tomando seus espaços cotidianos e, com eles, as oficinas. “Comecei os encontros porque vi o quão importante era entender esse teatro de masculinidade do cotidiano. Uma vez que você faz a performance, fica muito mais fácil de reparar quando outra pessoa está fazendo esse teatro e quebrá-lo”, conta.

“Muita gente dá o nome do pai, do irmão, usa trejeitos de um ex-namorado. Tem umas masculinidades entranhadas na gente que saem de um jeito que não sairiam se você não exercitasse. A oficina é um mecanismo imediato para isso”, diz Prili

O nome do coletivo e a inspiração da oficina vêm da obra do escritor espanhol Paul Preciado. No livro “Testo Junkie” (n-1 edições, 2019), o autor narra suas experiências com a testosterona e fala sobre o lugar que o corpo, o sexo e a sexualidade ocupam na sociedade contemporânea. Um dos subcapítulos é dedicado ao “dispositivo drag king”, em que Preciado rememora a emergência das oficinas em Nova York e em São Francisco, nos anos 1980, e os primeiros encontros de que participou, já no final da década de 1990, até ele mesmo promover um. “Não é somente se vestir de homem, coisa que as pessoas podem fazer sozinhas, na privacidade do espaço doméstico, mas viver a experiência coletiva da dimensão construída e arbitrária do nosso gênero”, escreve.

Eleanor Antin, “Men from the King of Solana Beach”, 1974. O trabalho da artista americana é uma das inspirações do coletivo Piratas de Gênero

As intervenções são pontuais, mas a ideia é que a oficina gere uma espécie de memória de corpo que ajude a construir uma nova postura cotidiana. “O king no palco é muito legal, mas também tem o exercicio de você andar na rua como um homem, repensar sua percepção desse lugar a partir da experiência”, diz Prili. “É um jeito de desconstruir a masculinidade que é regente no espaço público.”

E por que mesmo com a maior popularização da cultura drag queen temos demorado tanto para abraçar a presença dos kings? “Porque desconstruir a masculinidade desestabiliza a hierarquia de poder”, diz Prili. “Se a gente descobre artifícios que são somente teatrais, ferrou.”

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