Como exercer um outro tipo de paternidade
Para especialistas, pais e mães, a paternagem ativa e afetuosa é herdeira dos feminismos e mantê-la em pauta na sociedade é obrigação dos homens
As mães solo no país somam, de acordo com o IBGE, 11,6 milhões de mulheres e, conforme dados apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça, 5,5 milhões de crianças brasileiras não têm o nome paterno na certidão de nascimento. Com base nesses números, vem o questionamento: como é possível realmente transformar, entre aqueles que ficam ao lado das parceiras, o estereótipo do pai sisudo, autoritário, distante e frio em um novo modelo de paternidade, com homens mais presentes, participativos e afetuosos na criação dos filhos?
Ainda que o verbo ajudar (no caso, a companheira, nas tarefas relacionadas às crias) possa, em algumas realidades, ser substituído pela palavra dividir, o caminho para uma divisão totalmente igualitária entre paternar e maternar segue árduo na maioria das famílias do Brasil.
Diante dessa realidade, Gama ouviu especialistas para traçar os principais pontos que precisam ser revistos para entrarmos em um processo de mudança de comportamento.
Os direitos das mulheres e os deveres dos pais
A arquiteta, urbanista, escritora e feminista Joice Berth acha que o grande avanço em relação à paternidade ativa, por enquanto, é o maior espaço que as mulheres têm tido para expor questões sobre o tema.
“A gente tem uma abertura na mídia que vai, aos poucos, alterando aquilo que já está consolidado no senso comum da sociedade. Não tem como fazer mudanças do tipo da noite para o dia. Então, cabe a nós, mulheres, falar, principalmente às mulheres que vivem na condição de sobrecarga com filho pequeno, com a casa toda para cuidar e que, infelizmente, não contam com o semancol do parceiro e de outras instituições, como a escola, que sempre a aciona ao invés de contatar o companheiro, por exemplo”, discorre ela.
Psicólogo, escritor e apresentador do podcast Cartas de um Terapeuta, Alexandre Coimbra Amaral lembra que a reação à ascensão feminista e, consequentemente, aos novos exemplos de paternagem, se deve, sobretudo, à “expansão dos ganhos de direitos”. “No fundo, a discussão é toda sobre poder. Porque, para que uma nova paternidade aconteça, primeiro esse homem precisa entender que o lugar de poder que ele ocupa não é merecido, é estrutural, já que ele retira outros lugares de poder, e, ainda, existe uma perda da vida dele ao ocupar sozinho esse lugar de poder. Ele perde um pedaço da vida. E essa consciência tem construído essa nova paternidade”, conta.
Joice fala que enquanto as transformações grandiosas não acontecem, cabe à mulher, “lamentavelmente, o papel questionador de mostrar que o mundo mudou”. “Às vezes, precisamos bancar a chata e explicar que o pai pode ser acionado da mesma forma que a mãe; temos que ir impondo essas responsabilidades para que a coisa chegue no equilíbrio.”
O importante, segundo Joice, é iniciar o debate. “Quando abrimos a discussão, encontramos esses gatos pingados desses pais que já têm uma outra mentalidade. Assim como o meu falecido marido tinha, alguns outros homens espalhados por aí também já têm uma outra consciência e aí eles mesmos vão pautando para um outro homem um novo olhar sobre a paternidade, sobre as relações familiares e tudo mais”, desenvolve a escritora.
“Às vezes, precisamos bancar a chata e explicar que o pai pode ser acionado da mesma forma que a mãe
Mãe de quatro filhos já adultos, ela conta que quando o primogênito nasceu, em 1996, ela tinha 20 anos e, apesar de jovem, tinha consciência de várias coisas, mas foi a sogra que a fez enxergar que os deveres de pai e mãe deveriam ser iguais. “Eu me deparei com uma sogra que não sabia da existência da palavra feminismo, mas tinha uma postura de ensinar os filhos a terem um outro tipo de comportamento, um outro olhar para a realidade. Ela trabalhava fora e organizou a vida familiar dentro dessa lógica. Não interessava se era homem, mulher, todos da família precisavam contribuir para que a casa ficasse organizada, limpa, cada um tinha a sua função.”
A nova paternidade é herdeira dos feminismos
Nesse sentido, o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral diz que as movimentações para o novo paternar não começaram com o desejo do pai. “Esse movimento foi iniciado a partir da reivindicação da mulher. A nova paternidade é herdeira dos feminismos. Então, uma vez que a gente ganha consciência de que as mulheres abriram esse caminho, nós, como homens, temos a obrigação de dar sustentação a essa nova cultura. Chega de dar trabalho para as mulheres.”
Atenção às ideias patriarcais e às pautas reacionárias
Coimbra ressalta que, da mesma forma que esse novo pai está nascendo, há o crescimento de uma contraofensiva a essa figura, com o recrudescimento das pautas reacionárias. “A identidade conservadora se baseia na adoção, sem nenhum reparo, da masculinidade patriarcal. Então, ao mesmo tempo em que a bolha [da nova paternidade] cresce, existe uma resposta do patriarcado, que diz: ‘Não é assim que deve ser’. É aí que entram todos esses movimentos masculinistas. Não é por acaso que eles estão aparecendo.”
É preciso se abrir para um outro tipo de paternidade
“É uma entrega a uma experiência incerta, difícil de ser aprendida pela masculinidade mais tradicional, pois a nova paternidade não está alicerçada em autoritarismo, pelo contrário, ela quer fugir da hierarquização autoritária. Portanto, quando essa nova masculinidade precisa se aproximar afetivamente dos filhos, a via de aproximação é a horizontalidade: eu só me aproximo do outro de forma horizontal se, primeiramente, eu abrir mão da verticalização do poder”, explica o psicólogo.
O homem que deseja construir uma paternidade não violenta, conforme elucida Coimbra, precisa passar por um processo de rompimento com essa identidade. ”O afeto recebido dos filhos quando quebramos a hierarquia autoritária é importante e restaurador para a alma masculina. Os homens estão descobrindo isso. O autoritarismo é como um muro que impede o carinho, o amor. E, na hora que esse escudo é quebrado, o homem ganha um afeto que o redesenha.”
Para Coimbra, o grupo que segue essa nova forma de paternagem está desconstruindo algumas pautas identitárias. Ele salienta, ainda, que é preciso colocar na discussão a interseccionalidade de raça e classe porque há um sem-número de homens que não têm a oportunidade de mergulhar nessa desconstrução. São os “pais pretos e periféricos”.
Eles ficam de fora da mudança “porque precisam trabalhar muito para garantir a sobrevivência básica da família”. “Existe uma dor desses pais, que sentem por não terem energia e disponibilidade afetiva para realizar essa desconstrução. Por isso, acho que nós, privilegiados, temos a responsabilidade de construir um mundo que não fale só de paternidade, mas que foque em direitos. Porque se os direitos forem assegurados a esse homem, ele ganhará mais espaço e tempo cronológico na vida para poder viver essas experiências com os filhos, e isso melhora a vida de toda a sociedade”, pontua Coimbra.
Em abril de 2022, no programa “Roda Viva”, da TV Cultura, Lázaro Ramos falou sobre o pai e contou como algumas desconstruções na relação entre eles, dois homens de diferentes gerações, o ajudaram a se abrir para um relacionamento mais afetuoso e próximo com os filhos, João e Maria.
“Primeiro, eu tive um entendimento sobre a maneira com que meu pai demonstrava afeto. Ele não foi um homem de muitos abraços porque também não recebeu muitos abraços. A maneira dele demonstrar afeto era se mostrar um cara responsável, ter permanecido em casa, o que é muito valioso num país onde muitos pais não registram os filhos e não ficam em casa. No dia em que a gente se deu um abraço, assim, de carinho, a gente chorou muito e eu entendi que também queria aquele abraço, e agora a gente se abraça muito”, iniciou o ator, escritor e diretor.
Ramos continuou dizendo que o gesto causou uma transformação importante, antes mesmo que ele se tornasse pai. “Aquilo me libertou para eu exercitar um outro modelo de paternidade. Porque o modelo que eu recebia, às vezes, era o da rigidez, o da correção. E eu quis ser diferente. Primeiro, foi uma produção racional, não foi natural, foi uma produção racional: ‘Eu tenho que ser um pai do meu tempo, tenho que falar eu te amo, tenho que carregar, tenho que conversar’. Fico desesperado de ficar muito tempo fora de casa porque sinto falta do contato com os meus filhos, de conversar com eles, que são pessoas incríveis de se estar perto. Hoje em dia, faz muita falta e virou um processo natural, mas começou por aqui [ele aponta para a cabeça]”.
O caminho começa pela aproximação emocional
Um processo bastante parecido ocorreu com Fabiano Passos, fundador da Estopim Records, selo musical e audiovisual, co-organizador do livro “Paternagem Punk” (Estopim, Revelia Livros e Analógica Edições, 2022) e pai do Fábio, 7. A obra reúne diversos ensaios de pais, seguidores do movimento punk, com textos em que refletem sobre como encaram a paternidade.
Ele relembra da infância e conta que o seu genitor sempre esteve presente, mas “era aquele modelo de pai provedor e um pouco distante emocionalmente”. “Cada filho encara isso de uma maneira, e eu sempre fui sensível nesse ponto. Não posso reclamar do meu pai, que me apoiou em muitas coisas, e seria até injusto comparar a minha realidade com a de inúmeras pessoas que não tiveram ou não têm contato com a figura paterna, no entanto, não nego que sentia essa falta. Ao mesmo tempo, sei que ele passou para mim o que o pai dele passou para ele”, diz.
Assim, desde que pensou em se tornar pai, a primeira resolução de Passos foi a de ser presente afetivamente na vida do filho. E, até aqui, tem conseguido. Por trabalhar em horários flexíveis, é ele quem passa a maior parte do dia com Fábio, cuidando das necessidades do garoto e quem também organiza a rotina doméstica – a companheira de Passos é médica e tem um cotidiano agitado.
Diariamente eu tento educar meu filho com a minha bagagem, a partir dos questionamentos que o punk traz
No decorrer da paternagem, Passos conta com as trocas com amigos e colegas do punk, os mesmos que participaram da coletânea, por meio de um grupo no WhatsApp, descrito como uma rede de apoio, em que compartilham dicas, pensamentos, frustrações e alegrias sobre paternidade e informações a respeito do cuidados com a casa.
“Não é fácil, mas diariamente eu tento educar meu filho com a minha bagagem, a partir dos questionamentos que o punk traz, sobre religião, gênero e alimentação, por exemplo. A grande dificuldade é educá-lo dentro do que eu acredito, vivendo em uma sociedade que acredita em outras coisas.”
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