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SemanaO boom dos testes de ancestralidade
Além de sanar curiosidades individuais, os populares exames de DNA podem ajudar a resgatar origens familiares. A precisão das análises e a política de dados das empresas, no entanto, são questionadas por especialistas
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SemanaO boom dos testes de ancestralidade
Além de sanar curiosidades individuais, os populares exames de DNA podem ajudar a resgatar origens familiares. A precisão das análises e a política de dados das empresas, no entanto, são questionadas por especialistas
Os anúncios são ora comoventes, ora pitorescos: pessoas emocionadas ao descobrirem ancestrais e até primos próximos em países que consideravam “inimigos”; revelações surpreendentes para norte-americanos conservadores e nacionalistas; uma viagem de autodescoberta pelas regiões do mundo contidas nos genes. E toda essa imensidão oceânica a apenas algumas gotas de saliva de distância. A receita é simples e o apelo é grande — em troca de uma pequena amostra de material genético, o mapa de toda a sua árvore genealógica. Afinal, quem não gostaria de voltar alguns séculos nos álbuns de família para saber mais sobre a própria história e se reconectar com parentes perdidos?
Bastante inacessível até poucos anos atrás, a ideia de matar essa curiosidade tem ganhado cada vez mais adeptos: de acordo com a MIT Technology Review, mais de 26 milhões de pessoas ao redor do globo já fizeram os famigerados testes de ancestralidade. Para promover a febre, as empresas do ramo encontraram nas estratégias de marketing e na popularização da tecnologia necessária para as análises belos aliados. No Brasil, por exemplo, a pioneira Genera oferece o exame nesses moldes desde 2014, mas foi com a nacionalização das operações (e a consequente redução de custos do produto) em 2019 que a mania caiu no gosto dos brasileiros.
Mais de 26 milhões de pessoas ao redor do globo já fizeram os famigerados testes de ancestralidade
“Sem dúvida, o principal ponto de inflexão para as pessoas começarem a procurar mais foi o preço”, avalia o médico Ricardo di Lazzaro, fundador da Genera. Se no começo da década era preciso desembolsar alguns milhares para importar a brincadeira, hoje um teste que mapeia a ancestralidade global, aquele que mostra as porcentagens de cada parte do mundo que nossos genes carregam, sai por R$ 200, cerca de um quarto do valor cobrado quando a empresa mandava o material para laboratórios no exterior. Com isso somado ao respaldo científico que, claro, faz parte da propaganda, o pacote se tornou uma pequena tentação para quem quer comprovar de onde veio.
É o caso do ilustrador e facilitador gráfico João Ricardo Lagazzi Rodrigues, 30. “Sempre tive uma questão de busca de identidade e pertencimento e fiquei bem interessado na perspectiva de saber cientificamente minhas origens”, diz. Desconfiado das histórias que a família contava, ele foi surpreendido pelos resultados, mais ou menos condizentes com o que já tinha ouvido em casa: além da maioria italiana que o sobrenome denuncia, os 23% de genes da Europa Ocidental confirmaram a existência de antepassados alemães pelo lado materno.
Reconstrução de uma história apagada
Assim como Rodrigues, muitas pessoas podem vislumbrar no mapeamento da herança genética uma forma de construção de identidade. “É possível que a gente comece a ver um interesse por uma identificação a partir da ancestralidade que não se discutia anos atrás. Talvez estejamos entrando em uma nova fase de pensar a identidade étnica e racial a partir desse viés”, observa Verlan Gaspar Neto, antropólogo da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) que desenvolveu uma pesquisa sobre os testes genéticos e a questão do pertencimento étnico-racial em 2011, época em que os exames ainda não eram tão populares por aqui, mas já ganhavam relevância sobretudo nos EUA.
É nesse sentido debatido por Gaspar Neto que os testes de ancestralidade têm despontado no Brasil como uma alternativa de reconstrução da origem familiar para pessoas negras. Já existem estudos que cruzam as informações genéticas de descendentes de escravizados com documentos históricos, trazendo nova luz sobre narrativas frequentemente invisibilizadas. “Com esses projetos, vamos conseguir entender mais a história, já que no final da escravidão houve um processo ativo de apagamento de registros”, afirma Michel Naslavsky, professor do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP e membro do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano da universidade.
Talvez estejamos entrando em uma nova fase de pensar a identidade étnica e racial a partir da ancestralidade
No ano passado, o jornal Intercept convidou a estudante Franciele Nascimento, 21 — que sabia muito pouco sobre a vida das gerações para além de seus avós —, para fazer um exame de ancestralidade, revelando sua ascendência no povo Mende, hoje habitante de Serra Leoa. “É curioso, mas quando eu estudava sobre escravidão na escola, tudo me parecia muito distante. Eu mal conseguia perceber que fazia parte daquilo. Eu já tinha pensado sobre os meus antepassados, mas sabia muito pouco sobre o passado da minha família e aceitava não saber sobre nossa história. Era assim e pronto. Eu não me questionava sobre isso. Nem meus pais”, escreveu ela na ocasião.
Personalidades como Emicida, Djamila Ribeiro e Monique Evelle também já compartilharam suas experiências com os testes. Muito antes de eles se tornarem mais acessíveis, em 2007, a BBC Brasil reuniu nove celebridades negras do país para fazer seus mapeamentos genéticos — um projeto em parceria com o Laboratório Gene, do médico mineiro Sérgio Pena, batizado de Raízes Afro-brasileiras. Os resultados indicaram, por exemplo, que Seu Jorge tem 13% de genes europeus, que o DNA de Milton Nascimento é 99,3% africano e que a ginasta Daiane dos Santos tem “uma composição equilibrada” entre genes europeus, africanos e indígenas. Na época, a cantora Sandra de Sá falou sobre a importância de rastrear suas origens: “Tudo o que estou fazendo na minha vida é em relação à África, inclusive na música”.
Mas os testes realmente funcionam?
Embora algumas centenas de milhares de letrinhas do nosso código genético possam ajudar a reescrever histórias familiares esquecidas ou sistematicamente apagadas, a ciência ainda não tem todas as respostas sobre de onde viemos. No caso específico dos testes de ancestralidade, a precisão das análises depende da robustez de um banco de dados, coisa que varia de empresa para empresa. Isso porque o exame funciona comparando um material genético a milhares de outros, coletados em diferentes populações pelo mundo para estudos científicos desde o início dos anos 1990 — como no Projeto de Diversidade do Genoma Humano — e, mais recentemente, pelos próprios laboratórios que oferecem o serviço ao público. Assim, é identificada a provável composição ancestral do DNA de cada indivíduo.
“Essa é a grande diferença de fazer com a empresa A ou B: se você faz com uma que tem um banco maior e mais diverso, você tem muito mais precisão no seu resultado”, diz Naslavsky. O problema, segundo ele, é que muitas populações que deram origem aos brasileiros, como povos africanos e indígenas, estão pouco contempladas nos bancos de dados internacionais usados pelos laboratórios. “A gente ainda não tem a capacidade de fazer a diferenciação entre um grupo indígena e outro, por exemplo. Do ponto de vista da miscigenação, ainda sofremos isso: o quanto conseguimos garantir que as populações amostradas representam o que eram 500 anos atrás, 800 anos atrás? É muito difícil.”
Muitas populações que deram origem aos brasileiros estão pouco contempladas nos bancos de dados internacionais usados pelos laboratórios
O geneticista explica que é pouco provável acertar o local exato de onde partiram nossos ancestrais. A nível continental, o resultado é “perfeito”, mas chegar a uma conclusão super precisa sobre as regiões específicas depende de fatores como a diversidade das amostras utilizadas na comparação e as condições históricas e sociopolíticas. É preciso, ainda, ficar atento às porcentagens muito baixas apontadas no mapa de ascendência. “Dificilmente podemos bater o martelo para tudo que for abaixo de 5%, mas se for 15, 20, 25%, provavelmente é mais fidedigno”, diz o cientista. “Infelizmente, ainda que existissem bancos de dados perfeitos de cada lugar, é preciso lembrar que são séculos de distância. Você não vai conseguir precisar de onde a pessoa veio, a não ser que se tenha muita estabilidade geopolítica, coisa que a África e o Brasil historicamente não têm.”
Ricardo di Lazzaro também ressalta que há populações geneticamente semelhantes, o que pode causar confusão. “É o caso de Itália e Península Ibérica: é comum que uma parte do que é considerado ibérico vá para a Itália ou o contrário. Além disso, as populações humanas vêm se misturando há milênios: todo ibérico, por exemplo, tem uma porcentagem do norte da África. Na parte subcontinental algumas populações podem se misturar”, explica ele, afirmando que em 98% das pessoas pelo menos a ancestralidade principal é determinada com segurança.
Para melhorar os resultados no Brasil, diferenciar troncos etnolinguísticos de populações africanas e indígenas já seria um bom começo. Di Lazzaro comenta que a Genera construiu um banco a partir de dados públicos, retirados de artigos científicos, com quase 10 mil indivíduos, tentando focar nas populações que fariam mais sentido para o Brasil. Ainda assim, o médico e sua equipe enfrentaram dificuldades. “A gente não conseguiu separar por etnia indígena, porque não temos esses dados”, reconhece. No mapa da empresa, a classificação da ancestralidade de nativos americanos é dividida em regiões mais gerais: América do Norte, América Central, América Andina, Patagônia e Amazônia. Com exceção da floresta, todo o resto do Brasil é identificado como Tupi.
Ainda que existissem bancos de dados perfeitos de cada lugar, é preciso lembrar que são séculos de distância
Uma realidade que pode causar frustrações. João Ricardo Rodrigues, por exemplo, acreditava ter alguma proporção de ancestralidade indígena brasileira, por causa dos traços físicos da família de seu pai. “Mas descobri que não. Tenho um pouco dos andinos”, conta. “O que tem acontecido no Brasil é que os genomas batem, por exemplo, 3% com nativos americanos, e 3% já está quase na faixa de erro. Qual é a chance de seu ancestral indígena ter sido andino? Muito baixa. Mas a gente ainda não tem a capacidade de fazer a diferenciação entre um grupo e outro”, avalia Naslavsky.
Outros tipos de herança
O mapa da ancestralidade é a parte que mais interessa a maioria dos que procuram pelos exames, mas é na análise das tendências de saúde que a questão da precisão dos testes fica ainda mais sensível. A maioria das empresas oferece um pacote completo, em que fatores como nutrição, sono, envelhecimento e predisposição a algumas doenças estão inclusos na avaliação do material genético. Naslavsky explica que para fazer esses cálculos é necessário um bom banco de dados, com dezenas de milhares de indivíduos e que leve em conta as características específicas das populações locais — o que não acontece por aqui.
“A maior parte das doenças, como diabetes, hipertensão, colesterol, tem uma arquitetura genética fatorial: a soma de uma combinação de mutações de efeito mais baixo determina esses riscos. Para mapear esse tipo de coisa você precisa ter 50, 100 mil pessoas nos bancos de dados. Ainda não temos isso para o Brasil e não é possível importar essas listas de outras populações”, diz o pesquisador da USP. Também especialista em bioética, ele considera questionável a comercialização desse tipo de serviço. “Quando você vende o risco para Alzheimer ou para doenças coronarianas, você está mostrando só a ponta do iceberg e aquilo não é muito informativo para a saúde. Isso não é melhor do que ler horóscopo no jornal de manhã: tem uma chance de ser verdade e uma chance de não ser.”
Se os anúncios emocionantes não deixam claras as letras miúdas, aqui vai um recado honesto que pode nos ajudar melhor a lidar com as expectativas sobre os testes de ancestralidade: “As características genéticas humanas não são deterministas. O que estamos analisando é uma parte do componente genético, mas tem muita coisa para se descobrir ainda, muita coisa que a ciência ainda não consegue dizer com precisão”, afirma Ricardo di Lazzaro. Com tudo isso em mente, cuspir em um tubinho de ensaio e desvendar por onde seus antepassados — provavelmente — andaram parece ser, no mínimo, curioso.
Tão misteriosa quanto o caminho que nossos familiares percorreram sobre a Terra centenas de anos atrás é a trajetória obscura dos nossos dados pessoais pelas nuvens das empresas. Com a problemática sobre o uso e a proteção dessas informações cada vez mais em voga, parece prudente estar atento às condições de compartilhamento de algo tão íntimo quanto nosso material genético — afinal, nada mais capaz de nos identificar por aí do que amostras de DNA.
A preocupação não é à toa. Em 2017, os dados de 92 milhões de pessoas do mundo todo, incluindo 3,3 milhões de brasileiros, foram vazados do site da companhia israelense MyHeritage, que só percebeu o roubo mais de seis meses depois. Já em 2019, a americana FamilyTreeDNA admitiu que compartilhava as informações genéticas dos usuários com o FBI para identificação de suspeitos; no mesmo ano, a 23andMe, uma das primeiras empresas do ramo, assinou um contrato milionário com uma farmacêutica para o desenvolvimento de medicamentos.
“Na porta da frente, eles vendem o teste genético; na porta de trás revendem os dados para uma indústria farmacêutica. Como garantir que as pessoas que doaram seus dados e ajudaram a gerar bilhões de dólares para uma empresa farmacêutica vão ter algum retorno?”, questiona Michel Naslavsky. “É claro que as pessoas devem participar de projetos de pesquisa para fomentar a ciência, mas é preciso ter um retorno, distribuir o bônus. Não tem problema trocar informações, mas fazer isso de forma justa.”
Além disso, há diversos sites que não realizam os testes, mas permitem que você compartilhe os resultados, oferecendo interpretações extras do seu material genético — e as políticas de dados desses lugares nem sempre são claras. No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados garante alguma segurança a mais do que em países onde essa regulamentação é mais abstrata, mas o recomendável é entender bem os termos antes de concordar. É ideal, por exemplo, que esteja claro o direito de pedir a exclusão das informações pessoais pela empresa depois da prestação do serviço.
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