Como manter os alunos longe dos celulares?
Na volta às aulas, a falta de infraestrutura e de regras oficiais são desafios para que professores e gestores consigam restringir o celular nas escolas
Ao longo da última década, o professor do ensino público Janaíno Atahide, 42, vem observando uma queda no aprendizado de seus alunos. Em grande parte, ele acredita, devido ao uso contínuo de celulares em sala de aula. “Eu trabalho em matemática, então dá para imaginar como que é o caos. Até o ano passado, tem atrapalhado muito o desenvolvimento deles”, conta o docente, que dá aula na Escola Estadual Prefeito Artur Ramos, no município de Jaciara, no Mato Grosso.
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A ressalva do professor, restringindo o problema até o ano passado, tem a ver com a nova legislação nacional que entra em vigor agora no início de 2025 e proíbe o uso de celulares em sala de aula nas instituições públicas de educação básica. A única ocasião em que os aparelhos serão permitidos, diz a lei, é para o uso pedagógico.
Apesar de ser uma demanda de muitos professores e especialistas em educação, Atahide confessa que se sente um tanto pessimista nesse primeiro momento. “Já foi criada uma lei no estado proibindo o uso. A gente tentou fazer uma conscientização e não deu certo”, conta o docente.
A legislação diz que, “com o objetivo de salvaguardar a saúde mental, física e psíquica das crianças e adolescentes”, “fica proibido o uso, por estudantes, de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais durante a aula, o recreio ou intervalos entre as aulas”. No entanto, há exceções: além do uso estritamente pedagógico, os aparelhos também podem ser utilizados em situações de perigo e emergência ou para garantir a acessibilidade, inclusão e atender condições de saúde dos estudantes.
Entre as principais questões relacionadas à nova lei, resta uma série de dúvidas sobre como as restrições devem ser aplicadas nas escolas. Além de não definir a forma como a proibição deve ser aplicada, a nova regra também deixa a cargo das escolas e redes de ensino a forma mais adequada para tratar do sofrimento psíquico e da saúde mental dos alunos em relação ao uso excessivo de telas.
Na instituição onde Atahide leciona, por exemplo, a diretoria e os docentes não se sentem confortáveis para recolher celulares de alunos e armazená-los até o fim do período letivo. “Ninguém vai revistar a bolsa”, afirma o professor. “A gente vai informar que é proibido, orientar, e aí, se usar, vai para a coordenação. Então vamos esperar a regulamentação para ver o que fazer, até porque é complicado a gente mexer…”
O docente acredita que, com os alunos mais novos, principalmente do ensino fundamental, essa conversa deve ser mais tranquila. A preocupação maior é com estudantes do ensino médio. “Vamos encaminhar para a coordenação para chamar o pai ou responsável, que vai fazer essa conscientização. Os pais têm muito mais autoridade sobre eles para controlar o uso desse celular”, explica.
O diretor da instituição, João Paulo de Oliveira, enxerga com bons olhos a restrição, mas também considera que tudo depende de como sua aplicação vai ser regulamentada. “O Mato Grosso já tinha uma legislação própria, só que, ao surpreender o estudante com o celular, a gente chamava a família e fazia registro de indisciplina no Conselho Tutelar. Mas isso de fato não resolve nada”, avalia o gestor. “O problema é exatamente esse, as famílias e os Conselhos Tutelares não engajam no processo. Então o problema continuaria o mesmo.”
Em alguns lugares, como São Paulo, essas regras já foram definidas — no caso, com direcionamentos bem mais restritivos do que a legislação nacional. Na rede pública do estado, os celulares deverão ser recolhidos e armazenados pela instituição. Caso o estudante seja flagrado usando o aparelho escondido, os pais e — se o comportamento se repetir — também o Conselho Tutelar devem ser acionados.
No aguardo dessa regulamentação pelo estado, a escola do Mato Grosso ainda não tem uma orientação oficial de como agir e deve focar esforços, num primeiro momento, em campanhas educacionais sobre as novas restrições entre os estudantes, pais e responsáveis, afirma Oliveira. A esperança, ele diz, é que o processo no caso dos celulares seja semelhante ao de um aparelho como o cigarro eletrônico, em que a escola retém o item e há até mesmo registro de boletim de ocorrência.
Realidades distintas
Até pouco tempo atrás, a proibição de celulares nas escolas não chegava a estar no radar das principais autoridades sobre o tema, esclarece o pesquisador de políticas educacionais da FGV, João Marcelo Borges. Uma das principais inspirações para a aprovação da lei foi a experiência da cidade do Rio de Janeiro, que, por meio de um decreto, vem restringindo desde 2024 a presença dos aparelhos em aula, aponta o especialista. Além disso, também teriam pesado nessa conta evidências internacionais sobre os efeitos prejudiciais desse uso para a educação.
“A regulação do uso excessivo é uma boa medida, vai no sentido do que as evidências mostram”, avalia Borges, que é gerente de pesquisa e inovação no Instituto Unibanco. No entanto, ele considera que proibir o que quer que seja na educação não é motivo para se comemorar.
Apesar de apresentar indícios de estar sendo bem-sucedida na realidade do Rio, se refletindo principalmente em uma melhora do convívio entre os estudantes, o pesquisador alerta que a tarefa é muito mais complexa quando passa a englobar estudantes do ensino médio — na capital carioca, as restrições tinham sido aplicadas apenas no infantil e fundamental.
Borges considera acertada a aprovação de uma lei curta, que deixa para as escolas e redes de ensino as decisões sobre como melhor aplicá-la. “Uma medida dessas certamente vai requerer diferentes tipos de mecanismos. Uma escola de tempo integral talvez tenha armários para os estudantes, mas em uma que não tenha nem um espaço para a diretoria, imaginar que os celulares vão ficar armazenados numa sala é impossível”, afirma. Portanto, é preciso avaliar de acordo com realidades bastante distintas.
Quem paga a conta?
O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo, considera, porém, que as diferentes interpretações sobre a aplicação da lei também podem gerar atritos. “Descobri ontem que, em Pernambuco, muitas escolas estão proibindo alunos de levarem o celular. Só que a lei diz que ele pode ser utilizado em medidas pedagógicas, de acordo com a orientação do professor”, conta Araújo. “Isso já cria uma confusão muito grande.”
Ele aguarda resoluções do Poder Executivo, do Conselho Nacional de Educação e dos estados e municípios para que haja mais clareza sobre os caminhos a seguir. “A maioria das escolas públicas não tem estrutura para que o celular do aluno seja recolhido e guardado”, exemplifica o presidente da CNTE. “Aí guarda na sala da diretoria, sem equipamento, sem segurança. Se um aparelho desaparece, quem vai ficar responsável por devolver?” No caso de São Paulo, os próprios alunos que optarem por levar o aparelho vão se responsabilizar por quaisquer danos ou extravios — mas não se sabe se outros estados vão seguir o exemplo.
Para impedir que o peso dessas ações recaia sobre os ombros muitas vezes já sobrecarregados dos professores, é crucial que o projeto pedagógico das escolas seja debatido de forma cooperativa, envolvendo trabalhadores da educação, estudantes e famílias — o que, no entanto raramente acontece —, diz Araújo. “O ambiente escolar hoje não está dado ao diálogo, porque o tempo de discussão está sendo consumido por uma pressão muito grande por avaliações externas”, afirma.
Caso não haja uma discussão mais aprofundada, o representante da CNTE aponta que, em escolas onde faltam equipamentos e tecnologias essenciais, simplesmente retirar o celular pode até prejudicar o ensino. Além disso, destaca a falta de psicólogos e assistentes sociais em grande parte do ensino público brasileiro. E os professores hoje, ele diz, não têm condições de pegar para si a tarefa de identificar e cuidar de alunos que enfrentem problemas mais intensos com o uso de celulares. “Então a lei foi sancionada sem dar condições adequadas para que seja executada.”
Para Borges, é imprescindível que haja um período de adaptação, quase um “desmame” do uso dos aparelhos entre os alunos, já que, para algum deles, essa utilização pode configurar algo próximo de um vício. “Você precisa convencer a equipe escolar, os estudantes e os pais de que isso é uma boa medida”, defende o pesquisador. “Eu interpreto talvez o primeiro semestre inteiro como um processo de adaptação.”
Protestos e petições
Na Camino School, colégio particular localizado no bairro da Barra Funda, em São Paulo, logo no início a proibição de celulares gerou protestos e até a criação de uma petição entre os alunos. Tudo isso aconteceu no retorno às aulas pós-pandemia, quando professores e gestores perceberam que os estudantes estavam mais ansiosos do que antes e buscavam manter contato com frequência com os pais por meio dos aparelhos.
“Assim que a gente decidiu, eles fizeram uma passeata pela escola. Iam toda hora na secretaria pedir para ligar para casa e fizeram uma petição, falando que eu não podia proibir eles de usarem o celular”, lembra Leticia Lyle, diretora e cofundadora da instituição. “Foi até um exercício de cidadania, a gente conversava muito com eles sobre os motivos pelos quais a gente queria que o celular não estivesse presente.”
A diretora conta que até hoje, cerca de três anos depois, toda volta das férias acaba sendo um período conturbado. “É uma semaninha difícil, em que os estudantes ficam mais ansiosos e não querem entregar o celular.” Hoje, os alunos que precisam levar seus aparelhos para a escola os depositam logo na chegada em uma caixa, que fica guardada na sala da coordenação. Eles só os recebem de volta ao final do período letivo.
No caso do colégio, a existência de uma infraestrutura tecnológica vem para facilitar a operação. Para atividades pedagógicas, por exemplo, os alunos têm acesso a notebooks, em vez de precisarem recorrer aos celulares — possibilidade ainda rara no ensino público brasileiro. A professora da instituição, Beatriz Rios, 30, também destaca a importância do envolvimento dos pais nesse processo.
Segundo ela, desde que começaram as restrições, os alunos passaram a brincar mais e apresentam relações menos violentas entre eles. “As turmas com mais acesso ao celular tinham muitos conflitos. Acho que hoje eles desenvolveram dinâmicas menos tóxicas”, afirma a professora.
Uma escola mais atrativa
Para incentivar essa socialização, principalmente nos períodos de lazer como os intervalos entre as aulas, a escola passou a oferecer opções de jogos e brincadeiras.
“A gente tem que trazer isso de volta para a rotina deles. Essa participação faz muita diferença”, diz Lyle. A diretora conta também que tem percebido entre os adolescentes mais casos de ansiedade e outros transtornos relacionados ao uso de telas. “Alguns estudantes optam por não permanecer na escola, porque é muito difícil essa tensão com [a falta d]o celular. Também tivemos alguns que decidiram não ir a viagens de formatura e acampamentos, porque não pode levar o celular.”
Nesse período de início das aulas, o gestor da escola Prefeito Artur Ramos, João Paulo de Oliveira, já se prepara para conflitos e necessidades de mediação que inevitavelmente devem surgir, algo de que os professores e toda a comunidade escolar já estão cientes. Controlar a utilização na escola e supervisionar o uso exclusivamente pedagógico dos aparelhos, mais do que uma lei, é um processo que depende de planejamento intenso, com a participação de toda a comunidade, segundo Heleno Araújo, da CNTE.
Mas o pesquisador de políticas educacionais João Marcelo Borges alerta que a responsabilidade não pode ficar inteira por conta das escolas. A educação para as telas deve acontecer inclusive dentro de casa. “Senão, torna a escola ainda mais um lugar daquilo que é chato e proibido, quando o que a gente precisa é construir uma escola interessante, acolhedora e interativa”, ele afirma.
Oliveira reforça que a instituição vem preparando aulas que engajem mais os estudantes, utilizando metodologias diferentes para reforçar o conteúdo e apresentando desde o uso de tecnologias até mudanças no próprio formato das aulas. “O estudante precisa dessa diversidade dentro do dia de aula para não ficar entediado e buscar distrações”, aponta.
Apesar de um certo pessimismo inicial, o professor Janaíno Atahide acredita que, sem os celulares, o ensino deve se tornar mais efetivo. “Vai ajudar muito na socialização e, em questão de aprendizagem, deve melhorar uns 90%, porque o foco deles vai ficar todo na aula. Não tem mais mensagem tocando o tempo todo nem vamos precisar disputar atenção com um fone de ouvido.”
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CAPA É mesmo o fim do celular nas escolas?
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