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ConversasErika Lust: 'O olhar feminino desafia a pornografia'
Maior nome do pornô feminista, diretora sueca diz que pornografia feita com valores feministas mostra uma representação autêntica da sexualidade humana e lança programa de educação sexual para crianças e adolescentes
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Erika Lust: ‘O olhar feminino desafia a pornografia’
Maior nome do pornô feminista, diretora sueca diz que pornografia feita com valores feministas mostra uma representação autêntica da sexualidade humana e lança programa de educação sexual para crianças e adolescentes
De regata e calcinha de algodão, mulher beija homem, de cueca boxer, na cama. A atividade entre os dois esquenta, mas ela interrompe a ação e diz: “Só transei com um cara na minha faculdade, mas nunca gozei”. “Vamos resolver esse problema então”, ele responde e toma para si a missão de um orgasmo inaugural. O que se vê dali em diante é a dedicação do personagem para atingir a meta, mas com movimentos muito mais próximos à vida real do que os de um filme pornográfico, gênero ao qual “The Intern, A Summer of Lust” (“A Estagiária, Um verão de luxúria”, em tradução livre, 2019) pertence.
Quem o dirigiu foi a sueca Erika Lust. Se é possível dizer que o sexo está mudando, ela é a embaixadora dessa mudança dentro do pornô. Nascida em 1977 como Erika Hallqvist, estudou ciência políticas e estudos de gênero na Universidade de Lund, onde se deparou com o ensaio “Hard Core: Power, Pleasure and the Frenzy of the Visible” (Hard Core: Poder, Prazer e o Frenesi do Visível), de Linda Williams, que a fez olhar para a pornografia como um suporte para o discurso de gênero e da sexualidade. A primeira vez que viu um filme pornográfico, no início da adolescência, havia ficado encucada, as mulheres eram tratadas como coisas e tudo parecia antinatural, impessoal. Por que as pessoas queriam ver aquilo, afinal?
Hirsute_XConfessions / The Intern_Lust Cinema Michelle Gutierrez Fernandez/ Adriana Eskenazi
Anos depois, em um curso de cinema em Barcelona, onde vive hoje, foi designada a fazer um filme de curta-metragem e não teve dúvidas: seria um pornô, mas diferente daquele primeiro que assistiu e de todos os outros: teria a perspectiva feminina. “The Good Girl” (A boa garota) foi produzido em 2004, recebeu prêmios, e marca uma carreira prolífera de um dos nomes mais relevantes do hoje chamado pornô feminista. Neste gênero, a mulher deixa de ser objeto para ser protagonista, à frente e atrás das câmeras. “O valor central do meu trabalho é promover a igualdade de gênero por meio da representação explícita do sexo”, diz a Gama.
Os filmes de Erika Lust têm enredo, todos os tipos de corpos, algo que é bem distinto do que costuma acontecer na indústria pornográfica, e diferentes etnias também. Mas mais que uma produtora de filmes, Lust tem hoje um grupo de cinema, que conta com uma plataforma de streaming de filmes eróticos artísticos, a Else Cinema, que “foca nas sensações e não em closes ginecológicos”; outra para produzir filmes de forma colaborativa com pessoas comuns que contam suas fantasias, a XConfessions; uma sala de exibição em Barcelona, a Lust Cinema; e uma revista “sem censura”, a Lust Zine.
Mas é com seu lançamento mais recente, um programa educativo para crianças e adolescentes chamado The Porn Conversation, criado em parceria com uma sexóloga e uma educadora sexual, que fica claro o caráter missionário de Lust (vale assistir a este Ted Talk também). Com ele, ela pretende “alfabetizar” esses jovens da melhor maneira para terem vidas sexuais saudáveis e consumirem pornografia, discutindo temas como aceitação do corpo, gênero, racismo, objetificação da mulher e sexualização de crianças e adolescentes. “A pornografia pode confundir os adolescentes sobre como o sexo se conecta com a sensualidade e os relacionamentos, uma vez que aparece separado das emoções. Não ensina as mulheres como comunicar suas necessidades e desejos, nem os homens a pedir consentimento”, afirma na entrevista que você lê abaixo.
Three_Lust Cinema/The Intern_Lust Cinema Sabela Eiriz/Adriana Eskenazi
Quero que o olhar feminino e queer seja a norma, e não mais uma exceção
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G | Você diz que a pornografia é política. Qual foi a forma que encontrou para deixar os filmes mais feministas, mais afirmativos de quem são as mulheres e do lugar que devem ocupar a sociedade?
Erika Lust |A pornografia feita com valores feministas mostra uma representação autêntica da sexualidade humana. Estamos acostumados a uma pornografia online gratuita cheia de códigos repetitivos, muita genitália feminina e outras partes de seus corpos, mas nada sobre o prazer das mulheres. Como feminista, quero igualdade de gênero. Isso significa igualdade de direitos e oportunidades no local de trabalho, em casa e, mais importante, no quarto. O movimento chamado “pornô feminista” começou originalmente como uma forma de recuperar um gênero que tradicionalmente era visto exclusivamente ao alcance de homens brancos cisgêneros, e para trazer uma perspectiva diferente sobre a forma como representamos o sexo. Ele quer mostrar adultos sendo honestos e respeitosos uns com os outros e os desejos em um relacionamento sexual igualitário. O consentimento mútuo e afirmativo é claramente mostrado como uma prioridade em vez de simulações normalizadas de coerção ou abuso.
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G |Quais são os elementos indispensáveis a um pornô feminista?
EL |Certifico-me de que as mulheres – sejam elas cis, trans ou não binárias – estejam atrás das câmeras e tomando decisões ativas sobre como o filme é produzido e apresentado. O olhar feminino é muito importante para desafiar o status quo da pornografia. Ter mulheres, pessoas racializadas e pessoas queer por trás das câmeras permite que reescrevam o roteiro não apenas sobre sexo, mas também sobre a vida pública, para contar suas próprias histórias e fazer algo realmente diferente do estereótipo. Tanto meus sets quanto meus escritórios são compostos por 80% de mulheres e de pessoas LGBTQ+ porque quero que o olhar feminino e queer seja a norma, e não mais uma exceção.
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G |Quem mais vê seus filmes? Homens ou mulheres? De que regiões do mundo e faixa etária?
EL |Meu público é composto por aproximadamente 60% de homens e 40% de mulheres, principalmente dos Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha. A maior faixa etária entre nossos assinantes é de 25 a 34 anos.
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G |Você já declarou que “há uma grande revolução sexual feminina em curso”. Pode falar um pouco dessa ideia?
EL |Desde a sua criação, os filmes pornográficos atenderam ao olhar masculino hétero. O primeiro filme adulto já feito, “Le Coucher de la Mariée”, de 1896, apresenta um strip-tease de uma mulher no banheiro. Depois vieram os filmes mudos e sexualmente explícitos, que eram feitos por homens, para atrair homens, e exibidos para públicos exclusivamente masculinos em fraternidades ou bordéis europeus. Se avançarmos para hoje, a maior parte da pornografia online gratuita ainda é assim, atende à sexualidade do homem hétero. O corpo feminino é subjugado ao desejo e prazer sexual masculino, não importa a história ou o contexto. Não há preliminares, nem carícias, mas o foco está na anatomia, genitália e partes do corpo batendo umas contra as outras.
Mas se a pornografia tem espaço para muitas perspectivas, por que não atende também ao desejo feminino? Agora, estamos finalmente mostrando mulheres se divertindo enquanto recebem e dão prazer; se apropriando de sua sexualidade e de seus corpos, com seus próprios impulsos e desejos, e não como objetos passivos exclusivamente focados em dar prazer aos homens. Não importa se o filme é bizarro, romântico ou qualquer outra coisa – estamos capacitando as mulheres no sexo, dando-lhes uma voz relevante na história.
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G |Acha que essa revolução vai tornar as mulheres mais fãs de pornografia?
EL |É um preconceito dizer que as mulheres não se excitam olhando uma cena de sexo. O problema é que tivemos que assistir pelo olhar masculino por muito tempo. Por muitos anos nos disseram que a pornografia é degradante e que não seríamos, ou não deveríamos ficar excitadas por ela. Mas as mulheres são seres sexuais e estão mais confiantes sobre sua sexualidade À medida que se sentem mais confiantes e livres, estão mais abertas à ideia de se divertir assistindo pornografia.
Vejo a necessidade de uma alfabetização pornográfica. É urgente que os adultos assumam a liderança da conversa sobre sexo com os jovens
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G |Seus filmes trazem muito enredo em relação a outros filmes adultos. Que efeito isso tem no público? Acha que isso pode afastá-lo de alguma maneira?
EL |Um filme adulto, cinematográfico, dirigido e com enredo pode ser muito mais sexy e excitante do que a maioria dos vídeos pornográficos gratuitos que você pode encontrar nos sites. Quando estou trabalhando em uma história, sempre me pergunto: o que despertou o desejo entre essas pessoas e por quê? Como eles seduzem um ao outro, e como eles acumulam excitação juntos? Isso faz com que seja mais fácil se relacionar com a história e o filme fica mais inspirador para o público.
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G |Você fez ciência política e estudos de gênero. Como diretora de filmes adultos, se vê como uma missionária pela igualdade de gênero?
EL |As posições mais altas de poder da indústria pornográfica ainda são predominantemente dominadas por homens cisgêneros brancos. Quem dirige e controla a câmera muda a forma como a história é contada. Com meu trabalho e os fantásticos diretores que colaboram comigo, quero preencher uma lacuna em uma indústria que historicamente era dirigida por homens e para homens.
Quando eu estava estudando Ciência Política e Estudos de Gênero na Universidade de Lund, na Suécia, me deparei com o livro de Linda Williams “Hard Core: Power, Pleasure, and ‘The Frenzy of the Visible’”, no qual ela argumenta que a pornografia é uma forma de comunicar ideias específicas sobre gênero e sexo, embora não reflita nenhuma verdade sobre sexo.
Após meus estudos, mudei-me para Barcelona em 2000 e, enquanto trabalhava em uma bem sucedida empresa de publicidade, comecei a fazer aulas de cinema. Tive que criar um curta-metragem e percebi que o que eu queria fazer era filmar um filme explícito. Queria criar algo diferente dentro desse universo: um filme pornô com enredo em que poderia desconstruir o preconceito de gênero e mostrar a importância do prazer igual. Desde então, o valor central do meu trabalho é promover a igualdade de gênero por meio da representação explícita do sexo.
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G |Como vê a campanha que diz que a pornografia é um gênero machista e que molda de forma errada a identidade sexual de jovens?
EL |Não concordo que a pornografia seja um gênero sexista. Como qualquer outra indústria, a do sexo é muito mais variada internamente do que a maioria da mídia convencional gosta de retratar. Quando se trata da influência da pornografia online gratuita na percepção e expectativas dos jovens sobre sexo e relacionamentos, vejo a necessidade de uma alfabetização pornográfica. É urgente que os adultos assumam a liderança de suas conversas sobre sexo com os jovens e forneçam a eles as ferramentas para serem críticos e conscientes do que estão fazendo.
A pornografia pode confundir os adolescentes sobre como o sexo se conecta com a sensualidade e os relacionamentos, uma vez que aparece separado das emoções. A pornografia gratuita não ensina as mulheres como comunicar suas necessidades e desejos, nem os homens a pedir consentimento. As meninas podem aprender a depender dos homens para seu prazer, ou priorizar o prazer de um parceiro sobre o dela. Além disso, muitas vezes dá aos adolescentes expectativas completamente irreais sobre como agir. Aparências externas parecem importantes e todo mundo tende a se parecer muito – mulheres magras com seios grandes e homens musculosos com pênis grandes. Não importa a idade, precisamos equipá-los com as ferramentas necessárias para pensar criticamente sobre isso.
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G |Foi por isso que criou o Porn Conversation?
EL |Isso, a ideia desse projeto sem fins lucrativos é ajudar famílias e educadores a conduzir conversas e currículos abrangentes sobre educação sexual. É importante mostrar aos nossos filhos como diferenciar os tipos de pornografia online e também entender o que é sexo respeitoso, igual e consentido entre dois adultos. Precisamos intervir na situação atual para permitir que os jovens desenvolvam atitudes mais saudáveis em relação ao sexo e aos relacionamentos, com conversas abertas e positivas com elas, em vez de envergonhar, espionar ou ignorar a pornografia.
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G |Mas as campanhas antipornografia te atingem?
EL |É como qualquer produto que uma empresa lança, alguns adoram e outros não. Sempre haverá pessoas que dizem que feminismo e pornografia não podem se unir, enquanto recebemos ótimos comentários de feministas que apoiam nossa visão alternativa da pornografia e há algumas que são absolutamente contra todo trabalho sexual. Você não pode agradar a todos.
Gender Bender_XConfessions/Female Pleasure Circle_XConfessions Adriana Eskenazi/Monica Figueras
Quero dar espaço a diversos desejos, gêneros, etnias, habilidades, idades e formas de fazer sexo sem fetichizá-los
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G |Quando entendeu que seria importante também mostrar corpos e etnias diferentes?
EL |Comecei meu negócio há 20 anos porque queria fazer minha parte para mudar as regras da pornografia de dentro para fora. Eu queria provar que podemos representar o sexo no qual todos são tratados como colaboradores sexuais iguais, com histórias críveis e personagens que não seguem estereótipos cansados. Faço um esforço consciente para garantir que meus filmes sejam interseccionais e diversos. Estou ciente da minha posição como mulher branca e heterossexual, mas estou sempre aprendendo, crescendo, errando e trabalhando para entender a interseccionalidade e o feminismo de uma forma mais inclusiva, compreensiva e empática. Quero dar espaço a diversos desejos, gêneros, etnias, habilidades, idades e formas de fazer sexo sem fetichizá-los. Isso permite que o público se torne receptivo à enorme gama de diferentes sexualidades que existem por aí e precisam ser vistas. Quero que meus espectadores possam se ver em meus filmes em todos os diferentes tipos de corpo, gêneros, raças e orientações. Ao mesmo tempo, nunca definirei os artistas por sua raça ou características primárias, o que é algo frequentemente feito no pornô mainstream.
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G |A pandemia foi um bom momento de negócios para a indústria do pornô e mudou o sexo nos momentos de alto isolamento, com um crescimento do sexo solitário. Acha que ela vai mudar para sempre o sexo de alguma forma?
EL |A pandemia empurrou a desestigmatização do autoprazer e do amor próprio, com muitas pessoas no mundo sentindo o desejo de abrir espaço para si mesmas enquanto estavam confinadas. Governos, unidades de saúde pública e outras organizações tiveram que divulgar orientações sobre comportamento sexual, o que criou uma narrativa surpreendentemente positiva em muitos países: as diretrizes frequentemente destacavam a masturbação como uma atividade segura e prazerosa com baixo risco de covid-19. Por outro lado, também potencializou a comunicação entre os parceiros, o que aumenta o prazer compartilhado. E com isso, muitas pessoas ficaram mais experimentais, especialmente nas coisas mais excêntricas.
Quanto ao futuro, veremos um aumento de empresas de sextech, produtos focados no prazer feminino e inovações para melhorar a saúde sexual das mulheres nos próximos anos. Os investidores começaram a perceber que o bem-estar sexual é um mercado que só cresce, o que pode ser visto na indústria de tecnologia sexual, que é composta por brinquedos sexuais, aplicativos e serviços e movimenta US$ 30 bilhões na Europa.
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G |Existe uma forma saudável de assistir à pornografia? Uma frequência ideal?
EL |A maneira mais saudável é escolher pornografia que se alinhe aos seus valores e que retrate histórias críveis que possam inspirá-lo como espectador, em vez de desencadear uma experiência sexual mecânica. A pornografia pode ser uma ferramenta realmente poderosa para ajudar as pessoas a explorar mais seus desejos. A pornografia pode abrir sua mente sobre sexualidade e ajudá-lo a descobrir novas fantasias. Para muitos espectadores, o cinema adulto alternativo os ajuda a celebrar sua sexualidade e os encoraja a serem empoderados pelo sexo de várias maneiras; pode ajudá-lo a descobrir seu corpo, aprender a dar prazer a si mesmo e aos outros.
Quanto à frequência, esta é uma questão muito pessoal. Enquanto os movimentos anti-pornografia gostam de falar dos perigos de ver pornografia “demais”, não há comprovação científica. O chamado “vício em pornografia” pode ser considerado um sintoma de problemas psiquiátricos mais profundos ou conflitos relacionais que a pessoa tem com os outros do que com o consumo de pornografia em si.
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CAPA E aí, o sexo mudou?
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1Conversas 'O olhar feminino desafia a pornografia'
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2Semana Como gozamos hoje
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35 dicas O guia do sexo para homens cisgêneros e héteros
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4Podcast "Quero expressar a sexualidade da mulher negra da forma que eu desejo"
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5Bloco de notas As dicas da redação sobre o tema da semana