Erika Lust fala sobre pornô feminista e a mudança do sexo na pornografia — Gama Revista
E aí, o sexo mudou?
Icone para abrir
Monica Figueras

1

Conversas

Erika Lust: 'O olhar feminino desafia a pornografia'

Maior nome do pornô feminista, diretora sueca diz que pornografia feita com valores feministas mostra uma representação autêntica da sexualidade humana e lança programa de educação sexual para crianças e adolescentes

Isabelle Moreira Lima 17 de Abril de 2022

Erika Lust: ‘O olhar feminino desafia a pornografia’

Isabelle Moreira Lima 17 de Abril de 2022
Monica Figueras

Maior nome do pornô feminista, diretora sueca diz que pornografia feita com valores feministas mostra uma representação autêntica da sexualidade humana e lança programa de educação sexual para crianças e adolescentes

De regata e calcinha de algodão, mulher beija homem, de cueca boxer, na cama. A atividade entre os dois esquenta, mas ela interrompe a ação e diz: “Só transei com um cara na minha faculdade, mas nunca gozei”. “Vamos resolver esse problema então”, ele responde e toma para si a missão de um orgasmo inaugural. O que se vê dali em diante é a dedicação do personagem para atingir a meta, mas com movimentos muito mais próximos à vida real do que os de um filme pornográfico, gênero ao qual “The Intern, A Summer of Lust” (“A Estagiária, Um verão de luxúria”, em tradução livre, 2019) pertence.

Quem o dirigiu foi a sueca Erika Lust. Se é possível dizer que o sexo está mudando, ela é a embaixadora dessa mudança dentro do pornô. Nascida em 1977 como Erika Hallqvist, estudou ciência políticas e estudos de gênero na Universidade de Lund, onde se deparou com o ensaio “Hard Core: Power, Pleasure and the Frenzy of the Visible” (Hard Core: Poder, Prazer e o Frenesi do Visível), de Linda Williams, que a fez olhar para a pornografia como um suporte para o discurso de gênero e da sexualidade. A primeira vez que viu um filme pornográfico, no início da adolescência, havia ficado encucada, as mulheres eram tratadas como coisas e tudo parecia antinatural, impessoal. Por que as pessoas queriam ver aquilo, afinal?

Hirsute_XConfessions / The Intern_Lust Cinema  Michelle Gutierrez Fernandez/ Adriana Eskenazi

Anos depois, em um curso de cinema em Barcelona, onde vive hoje, foi designada a fazer um filme de curta-metragem e não teve dúvidas: seria um pornô, mas diferente daquele primeiro que assistiu e de todos os outros: teria a perspectiva feminina. “The Good Girl” (A boa garota) foi produzido em 2004, recebeu prêmios, e marca uma carreira prolífera de um dos nomes mais relevantes do hoje chamado pornô feminista. Neste gênero, a mulher deixa de ser objeto para ser protagonista, à frente e atrás das câmeras. “O valor central do meu trabalho é promover a igualdade de gênero por meio da representação explícita do sexo”, diz a Gama.

Os filmes de Erika Lust têm enredo, todos os tipos de corpos, algo que é bem distinto do que costuma acontecer na indústria pornográfica, e diferentes etnias também. Mas mais que uma produtora de filmes, Lust tem hoje um grupo de cinema, que conta com uma plataforma de streaming de filmes eróticos artísticos, a Else Cinema, que “foca nas sensações e não em closes ginecológicos”; outra para produzir filmes de forma colaborativa com pessoas comuns que contam suas fantasias, a XConfessions; uma sala de exibição em Barcelona, a Lust Cinema; e uma revista “sem censura”, a Lust Zine.

Mas é com seu lançamento mais recente, um programa educativo para crianças e adolescentes chamado The Porn Conversation, criado em parceria com uma sexóloga e uma educadora sexual, que fica claro o caráter missionário de Lust (vale assistir a este Ted Talk também). Com ele, ela pretende “alfabetizar” esses jovens da melhor maneira para terem vidas sexuais saudáveis e consumirem pornografia, discutindo temas como aceitação do corpo, gênero, racismo, objetificação da mulher e sexualização de crianças e adolescentes. “A pornografia pode confundir os adolescentes sobre como o sexo se conecta com a sensualidade e os relacionamentos, uma vez que aparece separado das emoções. Não ensina as mulheres como comunicar suas necessidades e desejos, nem os homens a pedir consentimento”, afirma na entrevista que você lê abaixo.

Three_Lust Cinema/The Intern_Lust Cinema  Sabela Eiriz/Adriana Eskenazi

Quero que o olhar feminino e queer seja a norma, e não mais uma exceção

  • G | Você diz que a pornografia é política. Qual foi a forma que encontrou para deixar os filmes mais feministas, mais afirmativos de quem são as mulheres e do lugar que devem ocupar a sociedade?

    Erika Lust |

    A pornografia feita com valores feministas mostra uma representação autêntica da sexualidade humana. Estamos acostumados a uma pornografia online gratuita cheia de códigos repetitivos, muita genitália feminina e outras partes de seus corpos, mas nada sobre o prazer das mulheres. Como feminista, quero igualdade de gênero. Isso significa igualdade de direitos e oportunidades no local de trabalho, em casa e, mais importante, no quarto. O movimento chamado “pornô feminista” começou originalmente como uma forma de recuperar um gênero que tradicionalmente era visto exclusivamente ao alcance de homens brancos cisgêneros, e para trazer uma perspectiva diferente sobre a forma como representamos o sexo. Ele quer mostrar adultos sendo honestos e respeitosos uns com os outros e os desejos em um relacionamento sexual igualitário. O consentimento mútuo e afirmativo é claramente mostrado como uma prioridade em vez de simulações normalizadas de coerção ou abuso.

  • G |Quais são os elementos indispensáveis a um pornô feminista?

    EL |

    Certifico-me de que as mulheres – sejam elas cis, trans ou não binárias – estejam atrás das câmeras e tomando decisões ativas sobre como o filme é produzido e apresentado. O olhar feminino é muito importante para desafiar o status quo da pornografia. Ter mulheres, pessoas racializadas e pessoas queer por trás das câmeras permite que reescrevam o roteiro não apenas sobre sexo, mas também sobre a vida pública, para contar suas próprias histórias e fazer algo realmente diferente do estereótipo. Tanto meus sets quanto meus escritórios são compostos por 80% de mulheres e de pessoas LGBTQ+ porque quero que o olhar feminino e queer seja a norma, e não mais uma exceção.

  • G |Quem mais vê seus filmes? Homens ou mulheres? De que regiões do mundo e faixa etária?

    EL |

    Meu público é composto por aproximadamente 60% de homens e 40% de mulheres, principalmente dos Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha. A maior faixa etária entre nossos assinantes é de 25 a 34 anos.

  • G |Você já declarou que “há uma grande revolução sexual feminina em curso”. Pode falar um pouco dessa ideia?

    EL |

    Desde a sua criação, os filmes pornográficos atenderam ao olhar masculino hétero. O primeiro filme adulto já feito, “Le Coucher de la Mariée”, de 1896, apresenta um strip-tease de uma mulher no banheiro. Depois vieram os filmes mudos e sexualmente explícitos, que eram feitos por homens, para atrair homens, e exibidos para públicos exclusivamente masculinos em fraternidades ou bordéis europeus. Se avançarmos para hoje, a maior parte da pornografia online gratuita ainda é assim, atende à sexualidade do homem hétero. O corpo feminino é subjugado ao desejo e prazer sexual masculino, não importa a história ou o contexto. Não há preliminares, nem carícias, mas o foco está na anatomia, genitália e partes do corpo batendo umas contra as outras.

    Mas se a pornografia tem espaço para muitas perspectivas, por que não atende também ao desejo feminino? Agora, estamos finalmente mostrando mulheres se divertindo enquanto recebem e dão prazer; se apropriando de sua sexualidade e de seus corpos, com seus próprios impulsos e desejos, e não como objetos passivos exclusivamente focados em dar prazer aos homens. Não importa se o filme é bizarro, romântico ou qualquer outra coisa – estamos capacitando as mulheres no sexo, dando-lhes uma voz relevante na história.

  • G |Acha que essa revolução vai tornar as mulheres mais fãs de pornografia?

    EL |

    É um preconceito dizer que as mulheres não se excitam olhando uma cena de sexo. O problema é que tivemos que assistir pelo olhar masculino por muito tempo. Por muitos anos nos disseram que a pornografia é degradante e que não seríamos, ou não deveríamos ficar excitadas por ela. Mas as mulheres são seres sexuais e estão mais confiantes sobre sua sexualidade À medida que se sentem mais confiantes e livres, estão mais abertas à ideia de se divertir assistindo pornografia.

Vejo a necessidade de uma alfabetização pornográfica. É urgente que os adultos assumam a liderança da conversa sobre sexo com os jovens

  • G |Seus filmes trazem muito enredo em relação a outros filmes adultos. Que efeito isso tem no público? Acha que isso pode afastá-lo de alguma maneira?

    EL |

    Um filme adulto, cinematográfico, dirigido e com enredo pode ser muito mais sexy e excitante do que a maioria dos vídeos pornográficos gratuitos que você pode encontrar nos sites. Quando estou trabalhando em uma história, sempre me pergunto: o que despertou o desejo entre essas pessoas e por quê? Como eles seduzem um ao outro, e como eles acumulam excitação juntos? Isso faz com que seja mais fácil se relacionar com a história e o filme fica mais inspirador para o público.

  • G |Você fez ciência política e estudos de gênero. Como diretora de filmes adultos, se vê como uma missionária pela igualdade de gênero?

    EL |

    As posições mais altas de poder da indústria pornográfica ainda são predominantemente dominadas por homens cisgêneros brancos. Quem dirige e controla a câmera muda a forma como a história é contada. Com meu trabalho e os fantásticos diretores que colaboram comigo, quero preencher uma lacuna em uma indústria que historicamente era dirigida por homens e para homens.

    Quando eu estava estudando Ciência Política e Estudos de Gênero na Universidade de Lund, na Suécia, me deparei com o livro de Linda Williams “Hard Core: Power, Pleasure, and ‘The Frenzy of the Visible’”, no qual ela argumenta que a pornografia é uma forma de comunicar ideias específicas sobre gênero e sexo, embora não reflita nenhuma verdade sobre sexo.

    Após meus estudos, mudei-me para Barcelona em 2000 e, enquanto trabalhava em uma bem sucedida empresa de publicidade, comecei a fazer aulas de cinema. Tive que criar um curta-metragem e percebi que o que eu queria fazer era filmar um filme explícito. Queria criar algo diferente dentro desse universo: um filme pornô com enredo em que poderia desconstruir o preconceito de gênero e mostrar a importância do prazer igual. Desde então, o valor central do meu trabalho é promover a igualdade de gênero por meio da representação explícita do sexo.

  • G |Como vê a campanha que diz que a pornografia é um gênero machista e que molda de forma errada a identidade sexual de jovens?

    EL |

    Não concordo que a pornografia seja um gênero sexista. Como qualquer outra indústria, a do sexo é muito mais variada internamente do que a maioria da mídia convencional gosta de retratar. Quando se trata da influência da pornografia online gratuita na percepção e expectativas dos jovens sobre sexo e relacionamentos, vejo a necessidade de uma alfabetização pornográfica. É urgente que os adultos assumam a liderança de suas conversas sobre sexo com os jovens e forneçam a eles as ferramentas para serem críticos e conscientes do que estão fazendo.

    A pornografia pode confundir os adolescentes sobre como o sexo se conecta com a sensualidade e os relacionamentos, uma vez que aparece separado das emoções. A pornografia gratuita não ensina as mulheres como comunicar suas necessidades e desejos, nem os homens a pedir consentimento. As meninas podem aprender a depender dos homens para seu prazer, ou priorizar o prazer de um parceiro sobre o dela. Além disso, muitas vezes dá aos adolescentes expectativas completamente irreais sobre como agir. Aparências externas parecem importantes e todo mundo tende a se parecer muito – mulheres magras com seios grandes e homens musculosos com pênis grandes. Não importa a idade, precisamos equipá-los com as ferramentas necessárias para pensar criticamente sobre isso.

  • G |Foi por isso que criou o Porn Conversation?

    EL |

    Isso, a ideia desse projeto sem fins lucrativos é ajudar famílias e educadores a conduzir conversas e currículos abrangentes sobre educação sexual. É importante mostrar aos nossos filhos como diferenciar os tipos de pornografia online e também entender o que é sexo respeitoso, igual e consentido entre dois adultos. Precisamos intervir na situação atual para permitir que os jovens desenvolvam atitudes mais saudáveis em relação ao sexo e aos relacionamentos, com conversas abertas e positivas com elas, em vez de envergonhar, espionar ou ignorar a pornografia.

  • G |Mas as campanhas antipornografia te atingem?

    EL |

    É como qualquer produto que uma empresa lança, alguns adoram e outros não. Sempre haverá pessoas que dizem que feminismo e pornografia não podem se unir, enquanto recebemos ótimos comentários de feministas que apoiam nossa visão alternativa da pornografia e há algumas que são absolutamente contra todo trabalho sexual. Você não pode agradar a todos.

Gender Bender_XConfessions/Female Pleasure Circle_XConfessions  Adriana Eskenazi/Monica Figueras

Quero dar espaço a diversos desejos, gêneros, etnias, habilidades, idades e formas de fazer sexo sem fetichizá-los

  • G |Quando entendeu que seria importante também mostrar corpos e etnias diferentes?

    EL |

    Comecei meu negócio há 20 anos porque queria fazer minha parte para mudar as regras da pornografia de dentro para fora. Eu queria provar que podemos representar o sexo no qual todos são tratados como colaboradores sexuais iguais, com histórias críveis e personagens que não seguem estereótipos cansados. Faço um esforço consciente para garantir que meus filmes sejam interseccionais e diversos. Estou ciente da minha posição como mulher branca e heterossexual, mas estou sempre aprendendo, crescendo, errando e trabalhando para entender a interseccionalidade e o feminismo de uma forma mais inclusiva, compreensiva e empática. Quero dar espaço a diversos desejos, gêneros, etnias, habilidades, idades e formas de fazer sexo sem fetichizá-los. Isso permite que o público se torne receptivo à enorme gama de diferentes sexualidades que existem por aí e precisam ser vistas. Quero que meus espectadores possam se ver em meus filmes em todos os diferentes tipos de corpo, gêneros, raças e orientações. Ao mesmo tempo, nunca definirei os artistas por sua raça ou características primárias, o que é algo frequentemente feito no pornô mainstream.

  • G |A pandemia foi um bom momento de negócios para a indústria do pornô e mudou o sexo nos momentos de alto isolamento, com um crescimento do sexo solitário. Acha que ela vai mudar para sempre o sexo de alguma forma?

    EL |

    A pandemia empurrou a desestigmatização do autoprazer e do amor próprio, com muitas pessoas no mundo sentindo o desejo de abrir espaço para si mesmas enquanto estavam confinadas. Governos, unidades de saúde pública e outras organizações tiveram que divulgar orientações sobre comportamento sexual, o que criou uma narrativa surpreendentemente positiva em muitos países: as diretrizes frequentemente destacavam a masturbação como uma atividade segura e prazerosa com baixo risco de covid-19. Por outro lado, também potencializou a comunicação entre os parceiros, o que aumenta o prazer compartilhado. E com isso, muitas pessoas ficaram mais experimentais, especialmente nas coisas mais excêntricas.

    Quanto ao futuro, veremos um aumento de empresas de sextech, produtos focados no prazer feminino e inovações para melhorar a saúde sexual das mulheres nos próximos anos. Os investidores começaram a perceber que o bem-estar sexual é um mercado que só cresce, o que pode ser visto na indústria de tecnologia sexual, que é composta por brinquedos sexuais, aplicativos e serviços e movimenta US$ 30 bilhões na Europa.

  • G |Existe uma forma saudável de assistir à pornografia? Uma frequência ideal?

    EL |

    A maneira mais saudável é escolher pornografia que se alinhe aos seus valores e que retrate histórias críveis que possam inspirá-lo como espectador, em vez de desencadear uma experiência sexual mecânica. A pornografia pode ser uma ferramenta realmente poderosa para ajudar as pessoas a explorar mais seus desejos. A pornografia pode abrir sua mente sobre sexualidade e ajudá-lo a descobrir novas fantasias. Para muitos espectadores, o cinema adulto alternativo os ajuda a celebrar sua sexualidade e os encoraja a serem empoderados pelo sexo de várias maneiras; pode ajudá-lo a descobrir seu corpo, aprender a dar prazer a si mesmo e aos outros.

    Quanto à frequência, esta é uma questão muito pessoal. Enquanto os movimentos anti-pornografia gostam de falar dos perigos de ver pornografia “demais”, não há comprovação científica. O chamado “vício em pornografia” pode ser considerado um sintoma de problemas psiquiátricos mais profundos ou conflitos relacionais que a pessoa tem com os outros do que com o consumo de pornografia em si.