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Conversas‘Antes, o fã refletia o posicionamento político do ídolo, hoje ele exige’
Professor, pesquisador e fã apaixonado por Star Wars e Doctor Who, Luís Mauro Sá Martino fala sobre cultura de fãs, posicionamento político dos nossos ídolos, pertencimento e identidade
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‘Antes, o fã refletia o posicionamento político do ídolo, hoje ele exige’
Professor, pesquisador e fã apaixonado por Star Wars e Doctor Who, Luís Mauro Sá Martino fala sobre cultura de fãs, posicionamento político dos nossos ídolos, pertencimento e identidade
Quando foi anunciado que o diretor de cinema Zack Snyder se afastaria da direção de “Liga da Justiça” (2017) por problemas pessoais, uma parcela significativa dos fãs da mais poderosa equipe de super heróis chiou. O filme foi finalizado por outro diretor, Joss Whedon, mas não foi bem recepcionado pelo público e pela crítica. Para muitos fãs, o tom do filme original foi modificado, o que explicaria a qualidade ruim da obra. Nos meses que se seguiram, uma campanha ganhou força nas redes exigindo o lançamento da versão idealizada por Snyder. #ReleaseTheSnyderCut foi apoiada pelo elenco do filme, que conta com estrelas como Gal Gadot, Ben Affleck e Jason Momoa, e incentivada pelo próprio diretor. Após anos de insistência, os fãs finalmente conseguiram o que queriam – a Warner anunciou que lançaria a versão de Snyder em sua nova plataforma de streaming.
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Esse é só um dos diversos exemplos do poder que os fãs detêm sobre a indústria do entretenimento. A força, no entanto, não é nova. Em 1893, o escritor britânico Arthur Conan Doyle matou seu principal personagem, Sherlock Holmes, por não aguentar mais escrever sobre o brilhante detetive. Em “O Problema Final”, Holmes e seu arquirrival James Moriarty se enfrentam uma última vez e acabam encontrando a morte após caírem nas Cataratas de Reichenbach.
O que o autor não esperava era que os fãs do detetive não só não aceitassem a morte do personagem, como exigissem que Conan Doyle voltasse a escrever as aventuras de Holmes. Durante oito anos, o escritor manteve-se afastado do investigador, enquanto recebia diversas cartas que exigiam seu retorno. Após pressão dos fãs, e um lucrativo contrato, Conan Doyle cedeu e ressuscitou Sherlock Holmes.
Luís Mauro Sá Martino mostra boneco em miniatura do Darth Vader e um copo do Yoda, ambos personagens de Star Wars.
“O público, quando quer, vai usar o que tiver em mãos para pressionar a indústria”, afirma Luís Mauro Sá Martino. Ele é jornalista, professor universitário, pesquisador que estuda a cultura dos fãs e autor de títulos como “Comunicação e Identidade: quem você pensa que é?”(Paulus, 2010). Na faculdade Cásper Líbero, leciona o curso “Mídia e Sociedade”, no qual dedica um conjunto de aulas ao estudo da cultura pop, que transita por temas como fãs, reality shows e celebridades.
Se em uma sala de um professor esperamos encontrar livros acadêmicos, o escritório de Martino é decorado também por outros objetos – um boneco do Darth Vader, um copo do Yoda, uma miniatura do décimo doutor de Doctor Who e uma pequena Tardis. “O fã é aquela pessoa que se engaja, que vai atrás, que reveste a vida daquilo que ele gosta”, admite o professor. “Ele se identifica e cria laços, tanto com a mídia como com outros fãs.”
Mestre e doutor em ciências sociais pela PUC-SP, o professor entende que seres humanos têm uma necessidade de acolhimento. E se você é muito fã de algo, certamente vai encontrar uma turma para chamar de sua. “Um fã nunca existe sozinho, ele está sempre em grupo. Ele faz o que for necessário para participar daquilo que gosta”, diz Martinho
Martino continua a mostrar seus itens, desta vez um boneco em miniatura do décimo doutor, da trama Doctor Who.
Além do poder dos fãs quando estão em grupo, o que é chamado de “fandon”, e do senso de identidade e pertencimento que essa cultura pode oferecer para as pessoas, Luís Mauro Sá Martino conversa com a Gama sobre as mudanças trazidas pelas redes sociais, as novas exigências e o peso do posicionamento político dos ídolos.
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G |Antes éramos fãs de artistas, jogadores estrelados, franquias de cinema ou personagens da literatura. Hoje somos fãs de pessoas que seguimos nas redes. O que mudou na relação do fã e do ídolo com a chegada da internet?
Luís Mauro Sá Martino |Mudou o ídolo, mas o comportamento do fã permanece o mesmo. A cultura do fã tem novos modos de se expressar na internet, mas a relação com o ídolo ainda é muito parecida. A conexão do influencer com o seu público é similar com a conexão do astro de cinema em 1922 com o público dele. O YouTuber, muitas vezes, é tão inatingível quanto o ídolo de cinema. Você tem que ir em um evento para conhecê-lo, tem que participar de um meet and greet e ele não necessariamente vai te responder. São milhares de comentários em um post, mas se ele der uma curtida no seu comentário, como quando o ator de cinema acena para alguém na multidão, o coração do fã se aquece. Esse aspecto da devoção do fã não mudou, no entanto, outros pontos mudaram. Você não é mais ídolo, necessariamente, de alguém que foi produzido pela indústria cultural. Hoje, há uma personalização do ato do fã. Você pode ser fã de uma pessoa simplesmente pelo fato de que ela existe – é a lógica do influenciador digital. Existem influenciadores que mostram a própria vida, eles não são cantores, atores, não têm outras características para mostrar. Nós, enquanto fãs, temos uma relação com a vida da pessoa. Mesmo quando você é fã de um ídolo famoso, uma das características do fã é também se preocupar com a vida dessa pessoa. Se você é um fã da Lana Del Rey, você quer saber como ela está, quais são as posições políticas dela, se ela está namorando, se ela é amiga da Taylor Swift e assim por diante. A gente também quer saber da vida pessoal dos ídolos. Em muitos aspectos, a vida pessoal se tornou o grande chamariz da cultura dos fãs.
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G |Hoje em dia, não basta mais ser fã do trabalho de alguém, as opiniões políticas e a postura de um ídolo também são muito importantes para os fãs. Como você vê esse novo paradigma?
LM |O entretenimento sempre foi político. Nós, da academia, é que demoramos para perceber isso. O fã sempre esperou do seu ídolo posicionamentos políticos e sociais, ele se identifica com esses posicionamentos, mas também pode se decepcionar. Ser fã é um ato político porque mexe com a identidade de alguém, é um processo de identificação. O entretenimento não é só um lugar de manifestação política, é uma maneira também de fazer política. Você não é só fã da música de um artista, mas também das posições que essa pessoa tem sobre a vida, do jeito que ela se expressa e do modo de ser. Por isso casos como o da J.K. Rowling são muito complicados, é muito difícil separar a vida real da obra. A relação que o fã tem com uma obra também é uma relação com a própria vida, ele tem a camiseta, a caneca, uma tatuagem, talvez até tenha começado a namorar com alguém porque a outra pessoa gostava do mesmo assunto. Quando o artista fala ou faz algo terrível, é difícil separar, mas cada vez mais o fã vai se posicionar. Assim como o consumidor, eles estão ficando mais exigentes. Antigamente, o fã refletia o posicionamento político de um artista, hoje ele exige. Ele demanda saber onde o seu ídolo está dentro do compasso político.
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G |Para muita gente, ser fã de algo faz parte da própria identidade. Você acredita que as redes sociais intensificaram essa relação?
Luís Mauro Sá Martino |A natureza dos vínculos humanos é sobretudo emocional, e está muito ligada a dois grandes pontos, que já foram identificados pela psicanálise há muito tempo: identificação e projeção. Aquilo que sou e me identifico, e aquilo que quero ser e que projeto. Esses mecanismos são muito sutis, mas eles existem em qualquer relação humana, seja essa relação com uma pessoa real, de carne e osso, CPF e boletos no fim do mês, quanto uma personagem imaginária. Eu também me identifico com personagens, então também me projeto neles. Então, tenho uma relação pessoal com os meus heróis, e com os meus vilões também – é que pega mal que você dizer que se identifica com o Darth Vader. Mas todos nós, em nossas luzes e sombras, também gostamos do vilão. Se não gostássemos, não assistiríamos ao filme. Não queremos um filme sem o Locke, porque se o Thor acabar com ele, que graça tem? Precisamos da sombra opositora do herói. Assim como dentro de nós temos nossas sombras opositoras e fazemos escolhas. Quando alguém perde uma nota de 50 reais no ônibus, eu quero ser o Vingador que pega a nota e devolve para aquela pessoa. A maioria desses processos não é necessariamente consciente, estou trazendo uma objetivação de uma situação. Nos identificamos, muitas vezes, sem nem saber o motivo, mas nem precisamos saber, porque é uma identificação de natureza tão íntima, tão emocional, que a gente só gosta.
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G |Em 2020, fãs de K-pop foram responsáveis por atrapalhar um comício do ex-presidente Trump. Pensando nisso, qual é o poder de um grupo de fãs?
LM |Começaria com um disclaimer: o fã tem limites. Uma coisa importantíssima é lembrarmos que a pessoa é fã, mas ela também trabalha, estuda, namora, tem vida social. Ela não é só fã. Aliás, a palavra fã não é uma palavra elogiosa, vem do inglês “fanatic”, e o fanatismo era uma doença, considerada uma patologia. Um cara fanático por uma estrela de cinema até hoje recai nesse esteriótipo. Uma autora que eu gosto muito, Lisa Lewis, uma das grandes estudiosas de fã, faz uma comparação que acho sensacional: o cara que gasta 500 mil dólares para comprar um vinho Chateau de 1960 é um apreciador. Agora, o infeliz que gasta cem reais num funko do Darth Vader ou do baby Yoda – esse é doido, tem problema [risos]. É muito mais uma questão de convenção social. Estou dizendo isso porque os grupos de fãs se caracterizam por algumas coisas, e vão além: eles cobram, se politizam. No caso do K-pop, eles vão esperar dos seus idols, seus objetos de admiração, algum tipo de posicionamento, mas eles também serão absolutamente ativos de cobrar esses posicionamentos, e de reagir a posicionamentos contrários. O fã é muito ativo. Quando falamos de fã, falamos de cultura participativa, de uma audiência produtiva. Um exemplo: o fã é uma criatura que quando gosta das personagens mas não gosta do final do filme, reescreve e faz uma fanfic, isto é, uma ficção escrita por fãs. Essa fanfic vai ser lida e debatida por outros fãs. Se não curti que o One Direction se separou, aí faço uma fanfic na qual a banda não se separa. Na fanfic, o fã é dono do produto. É essa criatura produtiva, que sabe muito bem do que está falando, e que vai passar essa sua produção para uma comunidade de fãs, o fandom. O fandom, só para lembrar, vem do inglês “fan kingdom”, reino dos fãs.
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G |Qual o limite entre um fã clube muito apaixonado e um culto? Quando se torna um fanatismo perigoso?
LM |Eu não sei se conseguimos traçar uma linha demarcatória, porque aí é muito pessoal, tem a ver com a época da nossa vida, das nossas demandas, do que precisamos interiormente para nos sentirmos bem. Muitos anos atrás ouvi alguém falar isso, não vou lembrar quem, mas a ideia não é minha: o limite de uma atividade é quando te impede de realizar outras. Isso é muito relativo. Porque se pegarmos o exemplo da Lisa Lewis, o padrão de gasto. Quanto é muito? Se a reclamação é que o fã gasta muito tempo preocupado com o ídolo. Quanto é muito tempo? Mas a hora que começa a me atrapalhar, que vai saindo da sequência principal, aí se torna problemático. Fazendo uma comparação: esqueci de levar meu filho na escola porque no mesmo horário ia ter uma live do meu cantor favorito. Isso é complicado? É. Mas uma provocação: esqueci de levar meu filho na escola porque fiquei muito envolvido com o meu time de futebol. Também seria problemático? Também. Esqueci de levar meu filho na escola porque fiquei muito envolvido com o meu trabalho – isso também é problemático. Não colocaria o fã como o único grupo. Diria que é perigoso toda vez que exageramos numa atividade a ponto de comprometer outras. Não colocaria o fã como essa pessoa que exagera, aí diria que é uma questão de natureza mais social do que propriamente só do fã.
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G |Um fã de futebol, por exemplo, pode amar um time que sempre é derrotado. Ainda assim, ele continua a acompanhar a equipe de forma fiel. Como você enxerga esse efeito? E qual você acredita que seja o motivo das pessoas continuarem a amar algo que pode decepcioná-las?
Luís Mauro Sá Martino |A resposta é até simples: é porque me faz bem em algum nível. A palavra é gratificação. Ser fã de alguma coisa me insere num grupo, e de repente me sinto junto a pessoas que falam a mesma língua que eu. Quando você é classificado como esquisito por uns, mas encontra pessoas ‘tão esquisitas quanto você’, você deixa de ser esquisito, você é normal, legal, bacana. É muito importante falar a mesma língua. Nós, seres humanos, temos uma necessidade de acolhimento, de saber que fazemos parte, de termos um grupo de pessoas que me entende, que gosta de mim. Se disser, ‘gente, que fantástico! A Jodie está perfeita como décima terceira doutora, que pena que ela vai regenerar’. Não é todo mundo que vai entender essa frase. O fandom de Doctor Who vai entender. Alguém responde, ‘nossa, ela é maravilhosa! Tomara que a próxima doutora seja tão boa quanto’, é uma resposta que aquece o coração. Já a resposta, ‘do que você está falando? Quem é Jodie? Como assim regenerar?’, é uma resposta que deixa o coração com espinhos gelados. E o senso de comunidade acontece inclusive na derrota. Minha série está em baixa, ou minha banda favorita está em baixa, só tem quatro ouvintes no Spotify, eu e a família do meu ídolo, e mesmo assim não largamos, porque é parte da nossa identidade, parte da nossa identificação, fala com a gente. Poderia resumir dizendo: é legal e ponto. Seu objeto de admiração mexe com esse vínculo emocional, e não são fáceis de explicar. A identificação nem sempre acontece num nível consciente, às vezes está ligado a questões muito mais profundas. Há explicações no nível racional, mas certamente existem outras muito além dessa racionalidade, no nível da emoção e do próprio inconsciente.
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G |Fãs também mostraram seu poder quanto à decidir o futuro de diferentes produções. Quais as consequências dessa influência dos fãs nos filmes, séries e outros? A internet intensificou essa influência?
LM |Em 1893, Sherlock Holmes morreu lutando contra o professor Moriarty nas Cataratas de Reichenbach, na Alemanha. O detetive mais importante do mundo morreu. Isso porque o autor Arthur Conan Doyle estava cansado, não aguentava mais escrever sobre o personagem. Ele matou o Sherlock Holmes, só esqueceu de perguntar se o público ia aceitar. Daí começou a receber cartas e mais cartas de fãs frustrados. Aí você pensa: mas não tinha internet – mas já tinha público, e o público, quando quer, vai usar o que tiver em mãos para pressionar a indústria. Isso já se fazia antes da internet, agora é muito mais fácil, porque você tem um volume maior de pessoas e direcionamentos muito mais específicos. Como eu vejo isso? Acho legal que o público tenha uma participação tão direta. Inclusive existe, no universo dos fãs, a ideia do fanon, que é paralelo do canon. O canon é a história oficial, mas os fãs criam suas histórias oficiais “paralelas”, que é o fanon. Às vezes tem coisas que a própria indústria, num remake, numa continuação, ou numa segunda versão, vai procurar quais fanon ideias apareceram sobre aquela história. Diz a lenda, ninguém confirma, eu não confirmo nem nego, que a história do Darth Vader, do Anakin Skywalker, cair num vulcão, num planeta vulcânico e virar o Darth Vader, era uma história de fãs. E vários outros exemplos existem por aí. Acredito que é um canal muito legal, eu pelo menos sou muito adepto do fã service, aquilo que a indústria faz para agradar os fãs.
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G |Há uma diferença entre fãs brasileiros e de outras nacionalidades?
LM |Que eu saiba não existe nenhuma pesquisa que compare fãs de um país com outro nesse nível. Diria que os fãs são muito parecidos, e uma das coisas que os tornam parecidos é esse desejo de falar: ‘nós somos os maiores fãs’. Todo país adora quando a banda chega no palco e o vocalista grita que ‘vocês são a melhor audiência que já tivemos! Finlândia, eu te amo!’. E na noite seguinte: ‘vocês são a melhor audiência que já tivemos! Itália, eu te amo!’. E é legal! Porque naquele dia você vai dormir feliz pensando que você é a melhor audiência que a banda pode ter. Eu, por exemplo, sou muito fã de uma banda inglesa chamada Keane. No ano passado, descobri pelo Spotify que eu, eu e mais ninguém, fui responsável por 0,001% da audiência mundial da banda. Nossa, me senti o máximo! Eles vão comprar o próximo Aston Martin deles graças ao meu 0,001%. Rigorosamente isso não representa nada, mas para mim foi incrível.
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CAPA De quem você é fã?
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1Reportagem Dentro e fora das telas, os fãs são os novos vilões?
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2Podcast Maria Bopp: "As pessoas me xingam, maltratam e são cruéis na internet"
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3Conversas ‘Antes, o fã refletia o posicionamento político do ídolo, hoje ele exige’
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4Depoimento Meu ídolo influenciou minha carreira
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5Bloco de notas As dicas da redação sobre o tema da semana