Relacionamento abusivo na família, entre amigos e amores — Gama Revista
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Relações

Relacionamento abusivo na família, entre amigos e amores

Não é só dentro de um casamento ou parceria amorosa que o abuso pode estar presente. Saiba identificar

Manuela Stelzer 05 de Fevereiro de 2023

Relacionamento abusivo na família, entre amigos e amores

Manuela Stelzer 05 de Fevereiro de 2023
Domínio público

Não é só dentro de um casamento ou parceria amorosa que o abuso pode estar presente. Saiba identificar

Acredite ou não, “Estou feliz que minha mãe morreu” (Versos Editora, 2022) é o título de um livro de memórias. Escrito pela atriz americana Jennette McCurdy, conhecida pela participação no seriado de sucesso da Nickelodeon iCarly, o livro resgata todos os absurdos que viveu na relação com a mãe – entre eles, ser obrigada a se pesar cinco vezes por dia e a compartilhar o conteúdo de seus emails e diários, e mesmo ser banhada pela mãe até os 16 anos. Muitos distúrbios alimentares, vícios e relacionamentos tóxicos depois, além de sentimentos de ansiedade, vergonha e autoaversão causados na filha, a mãe de McCurdy morreu. Só depois disso, e com ajuda de muita terapia, claro, ela descobriu suas verdadeiras vontades (e passou a lavar o cabelo sozinha).

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Pode parecer extremo, mas o livro não tem nada de extraordinário, já que relacionamentos abusivos podem acontecer entre quaisquer pessoas e seus diferentes graus de familiaridade. Nas últimas semanas, o debate sobre relações amorosas abusivas ficou bastante evidente nas redes por conta do casal Bruna Griphao e Gabriel Fop, no BBB23. Diferentes atitudes do ex-BBB, eliminado na última edição do paredão, soaram um alerta do público e renderam até uma chamada de atenção do apresentador Tadeu Schimdt.

Mas a verdade é que amigos, colegas de trabalho, irmãos e mesmo pais e filhos também podem cultivar uma relação tóxica. A definição independe da natureza da conexão: “Toda e qualquer relação com algum nível de desigualdade, seja de poder, de respeito, de reciprocidade ou abertura comunicacional pode ser abusiva”, explica a mestra em psicologia clínica Luisa Maciel.

Qualquer relação com algum nível de desigualdade pode ser abusiva

A psicóloga e presidente do Nesme (Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares), Solange Emílio, complementa: “Uma relação onde existe uma codependência, que impede a pessoa de tomar decisões autônomas e seguir seu desenvolvimento – pode ser entendido como um relacionamento abusivo”. Um filho que por pressão da mãe deixa de subir ao altar, como aconteceu com um participante do programa Casamento às Cegas Brasil, poderia se encaixar na categoria (depois de uma boa análise e triagem, claro).

O número de semelhanças entre um tipo e outro é grande, mas há particularidades quando falamos de relacionamentos não amorosos. E conseguir identificá-los, uma tarefa que já é bastante complexa, pode ficar ainda mais difícil quando se trata de algum familiar, um amigo do peito ou um chefe. Especialistas destrincham características, consequências e maneiras de reconhecer essas relações abusivas.

Críticas mascaradas

Só digo isso porque me importo com você” ou “estou fazendo isso porque quero seu bem” são frases típicas, salvo exceções, de pessoas que camuflam uma crítica que pode não ter sido requisitada, por exemplo. “A crítica muito raramente tem um caráter positivo. Ela normalmente diminui autoestima, traz maior insegurança e causa até afastamento”, afirma Maciel. “Pressupõe que a pessoa tenha que modificar alguma atitude com base naquilo que eu, que fiz a crítica acredito que seja correto, e não necessariamente com base em algo que a pessoa me pediu ajuda, que estamos construindo juntos.”

Pode ser que a crítica tenha pouco a ver com a pessoa criticada, e sim com a que fez o julgamento. “Tudo aquilo que não conseguimos organizar muito bem dentro da gente em termos de desejos e frustrações, e que vejo o outro conseguindo realizar, posso seguir dois caminhos”, diz a psicóloga. “Posso me sentir uma porcaria vendo o sucesso do outro e querer melhorar meu comportamento, ou posso simplesmente criticá-lo e dizer que é exagerado, workaholic, idiota, enfim.” Segundo ela, somos programados para fugir da crítica, da sensação de vergonha, de retaliação e rejeição. “Quando vemos alguém conquistando algo que gostaríamos, é simplesmente uma estratégia adaptativa: entre me criticar ou criticar o outro, escolho o outro.”

A crítica muito raramente tem um caráter positivo. Ela diminui autoestima, traz maior insegurança e causa até afastamento

Tudo isso facilita que a pessoa envolvida num relacionamento abusivo, seja ele de qualquer natureza, de certa forma aceite os comportamentos tóxicos. “Isso não significa que ela seja responsável pelo abuso que sofre, e sim que está enganchada na relação”, afirma Solange Emílio. “Às vezes por estar numa situação de muita vulnerabilidade, por depender financeiramente, por não ter outra alternativa a não ser aceitar.”

E para que a situação não fique insustentável, ainda mais se a relação tóxica acontece entre familiares, quem sofre encontra justificativas para qualquer crítica. “Se a mãe xinga, o filho pensa ‘mas é porque sou preguiçoso’. Quem está fora percebe a reação exagerada, mas a pessoa não consegue sair e fica presa naquele ciclo.”

Do outro lado, é importante dizer, a pessoa abusiva pode acreditar piamente que está cuidando do outro com essas atitudes. Ainda no exemplo de relação entre mãe e filho, “salvo raras exceções, a figura materna quer o bem do filho, mas cada uma teve suas próprias histórias, e repetem ali o que elas mesmas viveram”, aponta Solange Emílio. “Elas acreditam que estão fazendo o melhor para o filho.”

Revitimização e ciclo de abusos

Uma das grandes consequências do relacionamento abusivo (além de traumas psicológicos e até sintomas físicos) é a repetição da sua lógica, como explica a psicóloga Luisa Maciel. Segundo ela, ao analisar o passado de homens e mulheres que são vítimas de abuso em suas relações, em geral encontramos um histórico de relações tóxicas. “Normalmente é uma pessoa que está sendo revitimizada. É como um grau de familiaridade e até mesmo de naturalidade a uma situação abusiva, o que faz com que a gente não consiga perceber certos sinais.”

Em suas palavras, é como se a corda da tolerância fosse esticada – passa-se a tolerar mais atitudes tóxicas, abrindo portas para relações não saudáveis. “Ficamos mais suscetíveis. Os desfechos e as consequências são muitos, mas fato é que eles perduram. Só entrar em grupos de apoio e ver pessoas depois de ano sonhando com isso, não conseguindo se relacionar de novo”, afirma Maciel.

Uma das grandes consequências do relacionamento abusivo é a repetição da sua lógica

Claro que não é tão preto no branco – se viveu um relacionamento abusivo, vai viver outra vez. “A pessoa precisa ter vivido algumas coisas, que se juntam ao temperamento e personalidade, que a tornam mais suscetível à revitimização.” Ela afirma que quem não tem um histórico pode até entrar numa relação tóxica, mas vai detectar mais rapidamente se há algo de errado. “O alerta vai soar mais rápido no caso de pessoas que tiveram sua autonomia desde sempre respeitada.”

O importante, de acordo com a psicóloga Solange Emílio, é diversificar as conexões. “Diferentes referências de relação ajudam a perceber que um abuso não é normal, e que você não precisa passar por isso.” Principalmente na infância e na adolescência, esse variado é essencial: “Assim, a criança vai a escola e verbaliza que tem algo errado em casa para os professores. Ou um jovem vai na casa de um amigo e percebe que sofre um abuso em outros relacionamentos”.