Manuela Xavier: ‘Amor não constrange, não controla, não humilha e não machuca’ — Gama Revista
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Manuela Xavier: ‘Amor não constrange, não controla, não humilha e não machuca’

Psicanalista, doutora em psicologia clínica e criadora de conteúdo sobre relacionamentos abusivos, ela fala sobre dar visibilidade às violências psicológicas e ajudar mulheres a conseguirem sair dessas relações

Manuela Stelzer 05 de Fevereiro de 2023

Manuela Xavier: ‘Amor não constrange, não controla, não humilha e não machuca’

Manuela Stelzer 05 de Fevereiro de 2023

Psicanalista, doutora em psicologia clínica e criadora de conteúdo sobre relacionamentos abusivos, ela fala sobre dar visibilidade às violências psicológicas e ajudar mulheres a conseguirem sair dessas relações

Manuela Xavier é psicanalista, feminista, doutora em psicologia clínica e o que podemos definir como uma mulher empoderada. E mesmo assim, ela já esteve em um relacionamento abusivo. Se tem uma tecla que ela insiste em bater é que não há um perfil para a mulher violentada: pode ser a recatada e do lar, a expansiva e comunicativa, a CEO de multinacional ou a que se diz liberta e desprendida das amarras sociais. Relacionamentos abusivos não são óbvios – tanto que ela escreveu o livro “De olhos abertos: uma história não contada sobre relacionamento abusivo” (BestSeller, 2022) na tentativa de conscientizar mulheres sobre manipulações e armações camufladas.

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Seja qual for o conjunto de características, todas são potenciais vítimas da lógica de dominação que impera nas relações amorosas. “Quando a gente começa a ver diferentes mulheres falando sobre abusos que viveram, percebemos que isso pode acontecer com qualquer uma de nós”, afirma Xavier. Para ela, que coleciona títulos acadêmicos e detém boa quantidade de informação, o conhecimento evita que mulheres entrem em relacionamentos não saudáveis – mas não as tira de lá.

Para isso, é preciso muita rede de apoio, claro, mas também uma expansão do debate que vemos hoje. “A violência física é o último ato de uma escala de violências. O homem que vemos nas manchetes, que esfaqueia a companheira, antes vasculhou o celular dela, reclamou do comprimento da saia.” De acordo com a psicanalista, o machismo se atualiza – se hoje é proibido bater, gritar, xingar, ele busca outras maneiras de operar a tal lógica da dominação. “É um sistema que estrutura a sociedade e nossa subjetividade, e a tendência é que ele sempre vença.”

Amor não tem nada a ver com disputa ou poder, e para que as mulheres percebam isso e possam decidir sair de relacionamentos abusivos, Manuela Xavier acredita que é preciso expandir o debate. Por esse motivo, como ela diz a Gama, foi às redes advogar pelo que acredita, compartilhar sua história e conscientizar os mais de 400 mil seguidores que reúne hoje no Instagram. Ela lembra que é preciso atentar-se às violências psicológicas e jamais, em hipótese alguma, sair do lado de uma mulher em uma relação tóxica. “Como amiga, é difícil engolir o cara abusivo, mas ou você engole esse cara, ou sua amiga vai ser engolida por ele”, diz ela na entrevista que você lê a seguir.

Que as mulheres sejam muitas coisas, porque isso também nos salva de relações abusivas

  • G |Qual a definição de relacionamento abusivo entre casais?

    Manuela Xavier |

    A definição de relacionamento abusivo só é possível quando redefinimos o que é amor. Porque confundimos amor e violência. O que pauta uma relação? Existem muitos motivos para estar numa relação, mas em geral, as pessoas que vivem num relacionamento abusivo, dizem que estão ali por amor. “Ele tem ciúme e me xinga porque me ama, e tem medo de me perder”, “ele me controla porque me ama, isso é cuidado”. Temos que redefinir o conceito de amor, entendendo que ele não constrange, não controla, não limita, não humilha e não machuca – é o principal ponto pra entender o que é abusivo e o que não é. Assim a gente sai da violência visível e dos hematomas. A violência física é o último ato de uma escala de violências. Se você perde sua identidade, já é abusivo. Por exemplo, eu sou alegre – isso é minha identidade, isso me compõe. Numa relação abusiva, começo a pensar: na verdade, sou chata, escandalosa. O outro muda minha percepção sobre mim, e começo a performar de outra maneira. Antes chegava no lugar cumprimentando todo mundo e feliz. Agora, chega pedindo desculpa por falar alto, por falar besteira. Na relação precisamos ser fiéis a nós mesmos.

  • G |Você relata em algumas entrevistas que levou um tempo para se dar conta de que tinha vivido um relacionamento abusivo. Esse sentimento é comum? Por que muitas vezes precisamos de um tempo para nos darmos conta do abuso que sofremos?

    MX |

    Porque não é óbvio. Eu, por exemplo: já era psicanalista, doutora em psicologia, feminista, produzia conteúdo na internet sobre masculinidade e violência, mas não consegui entender que aquilo era abuso. Não conseguimos ver com clareza que estamos vivendo uma relação abusiva, justamente porque não damos nomes às coisas. Trabalhamos na esfera particular, que é imputar o comportamento ao cara ou a nós mesmas. Do tipo: ah, ele é assim porque é leonino, ou porque hoje ele não estava num bom dia, ou porque ele tem um problema familiar, ou porque eu sou muito chata. Vamos justificando como se fossem pontuais. Quando conseguimos trazer essas violências para uma dimensão estrutural, entendendo que isso é manipulação, chantagem, violência psicológica, e que não tem a ver com cara, que não importa se ele é leonino ou capricorniano, não importa se veio de uma família estruturada ou não, que é uma violência – é isso que salva. Conhecimento salva porque começamos a aprender os nomes. De início não identificamos porque batemos muito na tecla da violência física. Se ele não me bate, como é que eu vou reclamar? Fazer esse exercício de nomeação e coletivização, ou seja, que isso não é o jeitinho dele, é na verdade algo estrutural, de uma violência contra as mulheres, aí conseguimos nortear. Acho que falta esse debate. A gente já sabe que não pode bater nem matar a mulher, mas existem outras formas de matar as mulheres. Quantas não estão mortas por dentro, adoecidas numa relação abusiva?

  • G |Sabemos que mulheres são mais vítimas de violência e abuso, tanto que você escolheu usar esse enfoque no seu livro. Mas e o contrário, acontece? De que maneira?

    MX |

    Quem inventou a violência foi a masculinidade, mas o relacionamento abusivo não é exclusivo de uma relação entre homem e mulher. Uma relação entre duas pessoas implica em uma lógica de poder, a gente aprendeu a se relacionar dessa forma. Existem relações abusivas entre duas mulheres, dois homens, enfim. O que gosto de esclarecer é que há duas justificativas pro comportamento de mulheres abusivas. A primeira, a reação, o trauma. Em certas situações, não existem mulheres abusivas, existem mulheres traumatizadas. Ou seja, uma mulher que viveu uma relação em que era sistematicamente traída, em que a autoestima dela ia no chão, em que o cara desqualificava ela em tudo. Aí ela sai dessa dinâmica e começa a se relacionar com um homem bacana. E logo de cara começa a controlá-lo, limitar de sair com os amigos, invadir o celular dele. O comportamento é abusivo, mas ele vem em decorrência do trauma. Que é diferente dos homens, que fazem isso por dominação, por capricho. A segunda justificativa é a lógica das relações. Precisamos desfazer a ideia de que relação é um espaço de poder. Amor não é disputa. Mas num geral, a regra é que homem tem comportamentos abusivos, é uma construção da masculinidade, e não um caso isolado. E os homens também sofrem com isso, também adoecem com esse sistema.

Quantas não estão mortas por dentro, adoecidas numa relação abusiva?

  • G |Você diz em seu livro que sair de uma relação abusiva não é possível sem uma rede de apoio e sem informação. Como abordar ou ajudar alguém próximo que vive uma relação desse tipo e parece não perceber ou prefere negar?

    Manuela Xavier |

    O conhecimento te protege, te salva antes de entrar numa relação, mas não é o conhecimento que te tira. A mulher precisa poder sair, e poder sair tem a ver com o que vai ocupar o lugar que esse cara destruiu. Não basta dizer “sai dessa que esse cara é podre” – ela sabe, mas o cara isola essa mulher para exercer completo domínio sobre ela. O que precisamos fazer, enquanto amigos dessa mulher, é, primeiro de tudo, nunca sair do lado dela. É difícil engolir o cara como amiga, mas ou você engole esse cara, ou sua amiga vai ser engolida por ele. Não opere na denúncia, sua função é de apoio. Segundo passo: trazer informações despretensiosamente, do tipo, comentar casos públicos de relacionamento abusivo e se mostrar a favor das mulheres. Porque é muito comum que mulheres em relações abusivas não digam pra ninguém sobre o que sofrem. Ela entende que não pode se abrir, que vão julgá-la. Terceiro passo: valorize a autoestima dessa mulher. Observe como ela está. Se parou de trabalhar porque o marido mandou, por exemplo, mostre cursos e possibilidades de atividades que ela seja boa e possa se engajar. E por fim, (e veja, meu “por fim” não vai ser a denúncia) se abra na sua vulnerabilidade, conte que viveu uma experiência abusiva ou que se sentiu enfraquecida perto de um cara, e deixe que essa amiga te aconselhe. Ao te ouvir, ela vai se enxergar, e vai perceber que pode pedir ajuda. É um caminho mais gentil, ainda que trabalhoso.

  • G |No BBB, vimos o caso da Bruna Griphao e do Gabriel, em que ela até afirmou que as atitudes dele nem lhe davam tanto gatilho, se comparado a outros relacionamentos abusivos. Qual o problema dessa frase? Por que precisamos estar atentas aos detalhes?

    MX |

    O homem que vemos nas notícias, que esfaqueia a companheira no quarto, não foi dito que lá no primeiro mês de namoro ele vasculhou o celular dela, que no segundo encontro ele reclamou do comprimento da saia. No caso da Bruna e do Gabriel, quando ela diz essa frase, eu penso: enquanto continuarmos falando de violência física, vamos ver isso acontecer de novo e de novo. Enquanto reproduzirmos a ideia de que homem é tudo igual, que homem não presta, continuaremos naturalizando a lógica de “pelo menos ele não me bate”. Precisamos entender que antes da violência física, que teoricamente é incontestável, existe uma cadeia de violências. O machismo é um sistema que estrutura a sociedade e nossa subjetividade, e a tendência é que ele sempre vença. Para isso, ele se atualiza. O machismo percebe que não pode mais bater, xingar, elevar a voz. Aí vemos o Gabriel, com a voz baixa, menino fofo, você fica com pena. É uma estratégia de atualização da dominação, porque o machismo entendeu que não vai mais dominar no grito. O tapa demora pra aparecer, mas as violências psicológicas aparecem no primeiro instante. Não é a maioria que bate, mas é a maioria que exerce a lógica de dominação, que destrói a autoestima.

  • G |Agora saindo do lugar da vítima, mudando o lado: como identificar se você está tendo atitudes abusivas em seu relacionamentos?

    MX |

    Talvez ele não identifique. Porque é naturalizado. Um elemento oculto nessa pergunta é: como os homens podem estar aptos para identificar? Eles precisam entender que não vão ganhar sempre. Se está muito confortável pra eles, está desconfortável pra alguém. Um exemplo: ele gosta de rolê de rock, e ela, de pagode. Se ele está indo em todos os rolês de rock que ele quer, tem alguém que não está curtindo um pagode. Se todo domingo ele vê futebol, mas também passa paredão do Big Brother, e ele não abre mão de futebol dele – tem alguém deixando de fazer o que queria. O cara precisa aprender a perder: não vou ter domínio sobre a vida do outro, não vou estar sempre satisfeito nos meus programas. E para chegar nesse lugar, eles precisam ouvir mulheres e conversar com outros homens. Quando se reúnem, homens não falam sobre eles, sobre questões do relacionamento, discussões, frustrações, sentimentos. Os homens precisam provocar esses espaços de fala e se sentirem confortáveis para falar sobre suas vulnerabilidades. E eles precisam ouvir as mulheres, para entenderem o que eles fazem, mesmo que despretensiosamente, que impacta nelas, e ouvir genuinamente. Esse é o movimento, não é só bater uma cartilha na cabeça. É preciso acessar essa dimensão emocional.

  • G |Eles, abusivos da relação, podem mudar? Até que ponto vale a pena investir em uma relação desse tipo com a esperança de que um lado aprenda?

    MX |

    Investir numa relação que já é abusiva – não. Ele não vai mudar ali, porque não tem porque mudar. O sistema beneficia eles. Por que ele mudaria, se está sempre ganhando? Se ele liga a televisão e vê que o goleiro Bruno foi contratado por um time, se vê Arthur Aguiar campeão do BBB. Existem certos comportamentos que só são extintos com coerção social, precisa ter um repúdio total. As pessoas precisam entender que não vamos aceitar isso. O homem numa relação que já é abusiva não vai mudar, porque aquela relação já se estruturou dentro de uma dinâmica abusiva. E se mudar, e os danos que ficaram para você? Porque mesmo que ele mude, existe o trauma, e a gente precisa respeitá-lo. O cara te traiu, te bateu, te violentou psicologicamente. Como é que você cuida desse trauma? Essa pergunta carrega uma outra, bem importante: por que que estamos nos esforçando tanto para salvar essa relação? Como psicanalista, acredito que as pessoas podem sim ser atravessadas por outros saberes, se encontrarem com suas dores e revisitarem e reverem comportamentos. Como Manuela Xavier, mulher, não acho. Pode até ser que mude, mas eu vou arriscar? Num mundo que é feito por homens, nós não podemos achar que nós seremos especiais para eles. Se o cara fez isso com a primeira companheira, com a segunda e com a terceira, você será a quarta.

Se o cara foi abusivo com a primeira companheira, com a segunda e com a terceira, você será a quarta

  • G |Traição é um tipo de abuso?

    Manuela Xavier |

    A traição é um efeito colateral da monogamia. Quando temos que ficar com a mesma pessoa pelo resto da vida, sendo que o nosso desejo e corpo são livres, a traição pode acontecer. A traição em si é uma irresponsabilidade, uma quebra do pacto, uma falta de cuidado com o outro. Mas não é um abuso, é pontual. Quando a falta de cuidado é sistemática, quando o cara pensa que a mulher é tão dependente dele que pode fazer o que quiser e ela não vai lhe abandonar, aí é abuso. Nem precisa trair. Acho que as mulheres estão se encorajando mais a falar, estamos virando essa borda da culpa. E se a culpa não é minha, posso falar com mais tranquilidade sobre o outro, e acho temos esse ganho.

  • G |No seu Instagram você é a psicanalista que orienta as pessoas, mas também traz seus relatos pessoais. Por que escolheu trazer essas duas frentes, combinação que em outros tempos talvez não fosse tão comum no mundo da psicanálise?

    MX |

    Ali na internet eu não sou psicanalista, não existe alguém que é o psicanalista da internet. Ali eu sou uma pessoa. A psicanálise é uma ética que me orienta, mas sempre tive muito cuidado porque, se eu influencio pessoas, elas precisam me ver como uma pessoa também, que tem suas vulnerabilidades, sagacidades, fortalezas. Entendi que era preciso que as mulheres se vissem em mim. Psicanálise é olhar os fenômenos sociais por essa perspectiva, de como isso interfere no meu inconsciente, no inconsciente das pessoas. Acho importante trazer a psicanálise para esclarecer o funcionamento social e a história pessoal para fazer com que as pessoas se identifiquem e se sintam acolhidas. Na minha clínica eu sou psicanalista, na internet eu sou Manuela Xavier. Não quero ser uma mulher reduzida ao relacionamento abusivo. Sou muitas coisas e acho que é nisso que quero incentivar as mulheres. Que elas sejam muitas coisas, porque isso também nos salva de relações abusivas.