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DepoimentoParabéns pela coragem que não sei se tenho
‘De todos os impactos que o estupro provocou em minha vida, o pior de todos foi a subtração de uma coragem que eu tinha em excesso — e da qual me orgulhava muito’, escreve Adriana Negreiros, autora de ‘A Vida Nunca Mais Será a Mesma’
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Parabéns pela coragem que não sei se tenho
‘De todos os impactos que o estupro provocou em minha vida, o pior de todos foi a subtração de uma coragem que eu tinha em excesso — e da qual me orgulhava muito’, escreve Adriana Negreiros, autora de ‘A Vida Nunca Mais Será a Mesma’
Depois que lancei o livro “A Vida Nunca Mais Será a Mesma”, no qual conto que fui estuprada durante um sequestro relâmpago em São Paulo, alguns leitores e amigos escreveram-me a frase “parabéns pela coragem”. Não há uma única vez em que eu leia essas palavras sem sentir um certo estranhamento. Talvez muitos dos que me disseram isso ficassem frustrados ao saber o que fiz dias atrás: recusei um convite para passear pela trilha do parque do Cocó, em Fortaleza, porque a simples ideia de adentrar em uma mata — por mais bucólica e cheia de passarinhos que ela seja — atemoriza-me a ponto de me provocar ânsias de vômito.
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Possivelmente ficariam surpresos também ao observar como me comporto no trânsito, quando paro em um semáforo: o olhar alternado entre os retrovisores, o câmbio engatado na primeira marcha, a embreagem enterrada sob o pé esquerdo, o direito pronto a acelerar ao primeiro sinal de perigo. Ou em situações que geram receio em qualquer mulher, mas no caso de uma vítima de violência sexual são tão sufocantes que chegam a se tornar vertiginosas: estar sozinha em um vagão de metrô e um homem qualquer entrar numa estação; andar por uma rua escura; frequentar um banheiro público isolado — os de alguns museus, vários lances de escada abaixo do piso principal, deixam-me tão assustada que fico mentalmente confusa, meio embotada das ideias, como se estivesse bêbada ou com déficit de sono.
Mas o fato é que, embora não me sinta merecedora do adjetivo “corajosa”, gosto de ouvi-lo. De todos os impactos que o estupro provocou em minha vida, o pior de todos foi a subtração de uma coragem que, até aquele 24 de maio de 2003, eu tinha em excesso — e da qual me orgulhava muito. Considerava-me cheia de valentia, um atributo que estruturava a minha personalidade e do qual eu era capaz de fazer, inclusive, uma espécie de genealogia — minha bravura me ligava a minhas avós sertanejas, mulheres que se gabavam de “não levar desaforo para casa”, capazes de enfrentar um inimigo no braço, se preciso fosse, porque, assim como eu, elas também eram forçudas.
Robusta e corajosa, sentia que ninguém era poderoso o bastante para deter-me, até que numa noite fria de outono um tipo de aparência frágil, com uma arma na mão, achou por bem estuprar-me num matagal escuro e sequestrar não apenas o meu corpo até então forte, mas acima de tudo a minha alma, a minha essência, o que me definia como gente. E escrevo isso com um novo medo que passou a me acompanhar depois do estupro, o de ser piegas, dramática e exagerada, de dar a uma violência sexual importância maior do que, talvez, ela devesse ter.
Corajosa eu seria se vivesse em casa com um estuprador, como acontece com muitas meninas e mulheres Brasil afora
É por isso que gosto quando me dizem que fui corajosa ao escrever, com tantos detalhes, sobre o estupro que sofri. Alguma valentia ainda mora em mim, eu penso por alguns instantes. Mas é um pensamento que logo se esvai, porque não estou convencida disso.
O homem que me atacou foi preso e condenado a 12 anos de prisão. O shopping onde fui sequestrada indenizou-me, por determinação da justiça, por danos morais e materiais decorrentes do crime. Vivo em Portugal, a um oceano de distância de onde a tragédia ocorreu, e falar e escrever sobre o estupro não me coloca em situação de risco. Para mim, no meu espaço de privilégio, quebrar o silêncio é tarefa relativamente simples. Não vou morrer por causa disso, nem colocar em perigo as pessoas que amo.
Corajosa eu seria se vivesse em casa com um estuprador, como acontece com muitas meninas e mulheres Brasil afora, constantemente submetidas a violências sexuais por parte de maridos, pais, tios e irmãos; mulheres e meninas que dependem financeiramente de seus algozes e sabem que, se denunciá-los, têm fortes chances de serem tomadas por grandes mentirosas — e forçadas a retornar para casa e encontrar um agressor ainda mais enfurecido por ter sido denunciado. Mães que precisam segurar o grito de dor durante um estupro para não acordar as crianças que dormem no quarto ao lado, como uma das personagens do meu livro.
Essas, sim, são corajosas. Eu, escrevendo sobre sequestro relâmpago no meu iMac enquanto minhas filhas veem uma série esparramadas no sofá, não faço mais do que minha obrigação.
Suponho que me julguem corajosa, também, por expor o que imaginam ser a minha privacidade. De fato, há uma dimensão íntima em um crime de estupro, mas muito menor do que sua grandeza pública e coletiva. O feminismo ajudou-me a entender que a violência da qual fui vítima não é pessoal, mas política — vivemos em um país que naturaliza, banaliza e autoriza o estupro na música, na televisão e, o que é mais triste, nos altos escalões em Brasília. Acreditar que a violência sexual diz respeito à intimidade da mulher acaba por sustentar e reforçar um senso comum de que se trata de um problema só dela.
Estou certa de que estupros devem ser tratados como uma questão pública, não privada
Estou certa de que estupros devem ser tratados como uma questão pública, não privada. Ao escrever sobre como fui revirada, penetrada e invadida por um bandido em uma mata na Região Metropolitana de São Paulo, não estou tratando da minha intimidade.
Intimidade é o que como no café da manhã. Se durmo de camisola ou de pijama de bolinhas. De qual dos meus animais domésticos gosto mais (tenho um preferido). Os inúmeros apelidos que invento para minhas filhas e como corto as unhas dos pés. Isso, sim, não interessa a ninguém.
Mas a praga da violência deve interessar a todo mundo. Pelo menos, aos que conseguem examinar o assunto sem medo, sem desculpas como “a vida já é tão dura, para que ainda vamos ler sobre estupro?”.
Aos leitores que me agraciam com o adjetivo “corajosa”, devolvo a congratulação. Corajosos são vocês, que não desviam o olhar diante de uma tragédia. Parabéns pela coragem.
ADRIANA NEGREIROS é escritora e jornalista com passagem pelas revistas Veja, Playboy e Claudia. Graduou-se em filosofia pela Universidade de São Paulo e é doutoranda em estudos feministas pela Universidade de Coimbra. É autora de “Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço” (2018) e “A Vida Nunca Mais Será a Mesma: Cultura da violência e estupro no Brasil (2021)”, ambos publicados pela editora Objetiva
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