Karina Oliani: Karina Oliani: 'Coragem tem a ver com paixão' — Gama Revista
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Karina Oliani: 'Coragem tem a ver com paixão'

Quando não está escalando os picos mais altos do mundo ou nadando com tubarões, a médica paulistana lidera expedições médicas em regiões remotas

Betina Neves 14 de Novembro de 2021

Karina Oliani: ‘Coragem tem a ver com paixão’

Betina Neves 14 de Novembro de 2021
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Quando não está escalando os picos mais altos do mundo ou nadando com tubarões, a médica paulistana lidera expedições médicas em regiões remotas

Aos sete anos, a paulistana Karina Oliani, hoje com 39, já brincava de subir no telhado da casinha de bonecas. Aos 12, quis um salto de paraquedas de aniversário (os pais relutaram, mas atenderam ao pedido). Com a mesma idade, fez o primeiro curso de mergulho, modalidade na qual se profissionalizou posteriormente. Aos 16, foi campeã feminina de wakeboard no Brasil. Aos 21, enquanto cursava a faculdade de medicina, já praticava também escalada, esqui, snowboard, caiaque e kitesurfe.

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Uma vez médica, Karina procurou uma especialização que contemplasse seu apetite pela vida ao ar livre – e pela adrenalina. Descobriu a “wilderness medicine”, ou “medicina de regiões selvagens”, cunhada nos anos 1980 na Califórnia, e ficou três anos nos EUA cursando a especialização.

Na volta, criou a Associação Brasileira de Medicina de Áreas Remotas e Esportes de Aventura (ABMAR), que se propõe a promover a saúde tanto em competições esportivas quanto em situações de catástrofes naturais ou para populações que habitam regiões isoladas. Em 2015, fundou o Instituto Dharma, de caráter humanitário, que realiza expedições médicas voluntárias em áreas que vão do interior do Piauí aos confins do Nepal.

Coragem não é ausência de medo, é a capacidade conseguir fazer alguma coisa apesar do medo

Na TV, Karina tem suas aventuras registradas há mais de uma década, antes mesmo de se tornar a mais jovem brasileira a alcançar os 8 mil metros de altitude do Everest (feito que, aliás, ela já conquistou duas vezes, pelos dois “lados” escaláveis da montanha). Além de apresentar quadros no “Fantástico” e no “Esporte Espetacular”, da TV Globo, e séries no Discovery Channel, ela aparece com frequência no Canal OFF, onde já fez tirolesa no maior lago de lava do mundo, que fica na Etiópia, mergulhou com tubarões-brancos sem gaiola no México e chegou no topo da maior cachoeira do Brasil.

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Em 2020, atuou na linha de frente do Covid-19 no hospital de campanha do Anhembi, em São Paulo, enquanto ainda se recuperava de um acidente no qual fraturou a perna em dez partes. Pouco mais de um ano depois, já estava na Suíça explorando o Glaciar de Aletsch, o maior do Alpes. Neste momento, se prepara para dar uma aula em um congresso voltado à medicina de aventura na Escócia – logo ela, que diz ter medo de falar em público.

Para Karina, que hoje reveza o tempo entre a medicina, as expedições e a casa em Ilhabela (SP), coragem é viver com “coração”: “Se desafiar em coisas pelas quais você é apaixonada ajuda a superar os medos”. A Gama, ela fala mais sobre esse valor em sua trajetória cheia de situações extremas.

  • G |Você se acha corajosa?

    Karina Oliani |

    Eu sempre tive esse traço muito forte na minha personalidade. Desde criança me punham nesse lugar: “Ah, a Karina é corajosa.” E eu fui colocando isso na cabeça e descobrindo o que significava para mim. Eu vejo que as pessoas têm habilidades diferentes, chamados diferentes, missões diferentes. Eu sou corajosa para o que que eu gosto, para o que eu sou apaixonada. Querer superar os medos está relacionado à paixão. E coragem não é ausência de medo, muito pelo contrário, é a capacidade conseguir fazer alguma coisa apesar do medo. Ausência de medo é alienação ou ignorância: você não sabe os riscos que aquilo tem, então não tem medo. Coragem significa estar ciente dos riscos e mesmo assim estar disposto a encarar o desafio.

  • G |O que te vem na cabeça antes de começar uma escalada arriscada ou mergulhar em um mar cheio de tubarões?

    KO |

    Quando eu chego nesse ponto eu já pesquisei muito, já me planejei muito. Nesse sentido, a coragem também é um ato estratégico. As pessoas acham que os “aventureiros” só se jogam. Ao contrário: a maioria é extremante “nerd” como eu, adora estudar, fazer checklists, planilhas de treinamento de anos. Então essas aventuras são extremamente planejadas; se algo der errado tem até o plano “d” na manga. Por isso eu saio viva. Mesmo assim, é óbvio que nunca tem como saber exatamente o que está por vir. Então, eu estou sempre pronta para ser surpreendida, de maneira positiva ou negativa, e acho que é esse o espírito da aventura.

  • G |Você sente que coragem é como um músculo que a gente vai exercitando?

    KO |

    Sim, eu acho que tudo é treino. Meu perfil também é muito determinado: quando eu falo que vou fazer uma coisa, eu faço até o final, não importa se é doloroso, chato, se vai dar muito trabalho. Antes me chamavam de teimosa, mas hoje me definem mais como persistente. Eu sempre insisti muito no que eu queria fazer; quanto mais difícil, mais me atraía. E comecei a gostar de ver que eu era capaz de superar os medos, não importava o tamanho deles. Era só uma questão de preparo mental e físico. E fui ficando viciada nisso. Porque a sensação da superação é muito boa.

A gente não vive sempre no cume, são altos e baixos. E isso é bonito, faz com que a gente dê valor para a caminhada

  • G |Do que você sente medo e como lida com isso?

    KO |

    Eu tinha muita vergonha de falar na frente da câmera, mas, mesmo assim, encarei participar de programas de TV. Também tenho medo de falar em público, mesmo já tendo dado mais de cem palestras. Até hoje eu sei que meu coração vai disparar, que eu vou ficar nervosa, com a boca seca. Mas eu já aprendi esses mecanismos, essas reações fisiológicas, e fui criando técnicas para racionalizar esses momentos. Então eu respiro e vou negociando comigo mesma. Ano passado eu tive que enfrentar meu maior medo, que é perder meu pai. Ele ficou internado na UTI por 30 dias, teve todas as complicações possíveis de covid-19, ficou 70 dias ao todo no hospital, me chamaram três vezes para me despedir dele. E eu tinha que estar ali forte para ele e para o resto da minha família. Mas felizmente ele está bem agora.

  • G |Vi que, quando você estava se preparando para escalar o Everest, ouviu que “era muita falta de louça pra lavar”. É corajoso se bancar nesse sentido?

    KO |

    Eu acho que é a única opção. Já tive que enfrentar diversos tipos de piadinha machistas, inclusive de marcas não me apoiando porque não acreditavam que eu seria capaz de fazer o que eu estava propondo. Tem essa coisa do preconceito. Então, a gente tem que acreditar na gente mesmo, se não, desiste. A sociedade também diz muito que a gente tem que ser uma coisa só. Eu acho que dá para achar caminhos fora do convencional, mas dá muito mais trabalho, demanda mais, tem mais riscos. Isso é uma coisa que eu aprendo muito com esses esportes, principalmente no montanhismo. A gente passa muito tempo subindo com uma mochila de 15 kg nas costas, sem oxigênio, com a cervical doendo, andando dias para ficar só 15 minutos no topo. Quinze minutos! E a vida é assim, a gente não vive sempre no cume, são altos e baixos. E isso é bonito, faz com que a gente dê valor para a caminhada.

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  • G |Como é ver mais mulheres nos esportes de aventura hoje?

    KO |

    Antes eu ligava no esporte, no surf e no skate, por exemplo, e era só homem. Quando eu tinha 20 anos e chegava para escalar, só tinha homem. Agora, depois de duas décadas, já vejo um monte de meninas novinhas fazendo essas atividades, é muito legal. Recentemente, participei do “Women Peak Challenge” na Suíça, que convidou 700 mulheres escaladoras de 20 países para escalar os picos com mais de 4 mil metros dos Alpes. É incrível poder inspirar outras mulheres nesses esportes.

A gente é um grãozinho de areia, a gente tem que saber disso, mas, mesmo assim, tem um potencial absurdo

  • G |Você fala bastante de sonho, de cada um “encontrar seu Everest”. Precisa de coragem para sonhar?

    Karina Oliani |

    O dia em que a gente parar de sonhar, talvez a gente esteja vivendo uma vida que não valha muito a pena. Tem  gente que fala que prefere não saber se tem um sonho, não pensar nisso, ir vivendo. Mas aí, quando a vida te dá um choque, as coisas mudam. Na linha de frente do covid eu vi muito isso. Pessoas que sobreviviam dizendo: “Nossa, agora eu vou atrás do que eu realmente quero”. Então isso tem a ver com entender o quanto a vida é frágil e rápida. Como eu estou sempre em muitas situações de perigo, eu tenho muito essa noção. Eu tenho que fazer valer a pena enquanto eu estou vivendo, porque não sei quando eu vou embora. E ainda tenho muitos sonhos de grandes explorações, expedições, aventuras que eu quero fazer. E também sonhos de conseguir alcançar coisas que vão mudar a vida de mais gente, poder transformar comunidades inteiras. Eu acho que a gente é um grãozinho de areia, a gente tem que saber disso, mas, mesmo assim, tem um potencial absurdo.

  • G |Como é essa ideia com as pessoas em situação de vulnerabilidade que você tem contato nos trabalhos humanitários?

    KO |

    Nesses lugares têm histórias que me inspiram profundamente, porque há pessoas que conseguem fazer coisas incríveis mesmo em situações adversas. Mas claro que são exceções, e o intuito do trabalho é criar um ambiente em que isso seja possível pra mais gente, com mais dignidade e oportunidade. Temos visto muitas coisas lindas na escola que construí junto ao meu amigo nepalês. Chegamos lá depois do terremoto de 2015 e reconstruímos a escola do vilarejo dele, que fica a dois dias de caminhada do aeroporto mais próximo – só dá para chegar andando. Na nossa escola, além de dar oportunidade para essas crianças estudarem, a gente ensina que elas podem sim sonhar, mesmo naquele contexto social. E já aconteceram coisas que, se alguém falasse há um tempo no Nepal, ninguém acreditaria, tipo uma menina que saiu de lá e virou pilota em Katmandu. Isso sim é coragem.