Adriana Negreiros: ‘É uma marca que não tem como apagar’ — Gama Revista
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Divulgação/Penguin Random House

Adriana Negreiros: ‘É uma marca que não tem como apagar’

Jornalista e autora do livro ‘A Vida Nunca Mais Será a Mesma’ parte da própria experiência para investigar um cotidiano de violências sexuais sofridas por mulheres na história contemporânea brasileira

Manuela Stelzer 08 de Outubro de 2021

Entre livros facilmente devorados e títulos difíceis de engolir, “A Vida Nunca Mais Será a Mesma” faz uma confusão dentro do estômago. Em pré-venda pela editora Objetiva e com lançamento previsto para 18 de outubro, proporciona uma leitura envolvente, ao mesmo tempo que traz como temática um assunto terrível: a violência sexual em primeira pessoa. Mesmo que a vontade seja fechar os olhos e se convencer de que todo o enredo não passa de um pesadelo, é impossível desviar o olhar das páginas escritas por Adriana Negreiros.

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Para Adriana, sua coragem foi roubada pelo agressor após o estupro. O livro, no entanto, tão detalhado, é um atestado de valentia e bravura. Jornalista experiente, ela foi vítima de estupro em 2003, ao sair do Shopping Eldorado, em um bairro nobre da zona oeste de São Paulo. Durante 18 anos, o episódio foi quase um segredo: sem conseguir falar do trauma, encontrou outras formas de canalizar o sofrimento, como quando escreveu o título “Maria Bonita” (Objetiva, 2018), biografia da cangaceira nascida em 1911, permeada pela violência e o machismo. Até que, com a chegada da pandemia, impossibilitada de viajar e de fazer entrevistas para outras publicações, percebeu que precisava tratar do tema de forma mais direta, e falar, de uma vez por todas, sobre o que havia enfrentado anos antes.

Negreiros conta que jamais esteve sozinha. Seu caso, como ela mesma diz, é um entre incontáveis. Por isso, ao longo da produção do livro, conversou com diversas mulheres que também foram vítimas de violência sexual, dos mais variados tipos, que vão de estupros cometidos dentro de casa, por familiares, ou fora, por estranhos. Os casos podem parecer eventos isolados, mas em conjunto, ilustram uma problemática que excede os limites individuais. “Trata-se de uma questão política, coletiva, estrutural. Pensar que a violência sexual é algo que acontece na história da intimidade é errado”, afirma a autora a Gama na entrevista que você lê a seguir.

As pessoas me falam que fui corajosa de ter escrito esse livro. Gosto de ouvir isso, porque acho que o que me foi roubado foi a minha coragem

  • G |A impressão que fica é que sua história contradiz um pouco o título, já que você, de certa forma, seguiu em frente, construiu uma carreira… A vida nunca mais será a mesma para as vítimas dessa violência ou há esperança?

    Adriana Negreiros |

    Não vai jamais ser a mesma. Assim, claro, todo mundo dá um jeito de continuar a vida, seguir em frente parece um pouco meritocrático, de que não importa a situação, continuarei seguindo em frente. Mas você precisa continuar vivendo, não tem outra opção. Ao mesmo tempo, a vida nunca mais será a mesma nesse sentido de que há uma cicatriz na alma, ou no seu próprio caráter, que é moldado de um jeito irreversível. Eu me transformei numa pessoa muito diferente de quem eu era antes, muito mais tímida, insegura, contida. Nada indicava que iria me tornar essa pessoa — muito pelo contrário, conforme amadurecemos, nos tornamos mais seguros, mais donos de si. E comigo o processo foi rigorosamente o contrário. Fui me tornando uma pessoa muito mais reservada, medrosa. É muito curioso quando as pessoas me falam que fui corajosa de ter escrito esse livro. Gosto de ouvir isso, porque acho que o que me foi roubado foi a minha coragem. Tinha coragem em excesso e a minha sensação é que o cara arrancou ela de mim, saiu correndo, nunca mais me devolveu. Então, é bom ouvir isso porque sinto que ainda me restou certa dose de coragem. É inevitável pensar, no meu caso e no de tantas outras mulheres que sofreram essa violência, o que teria sido da vida se isso não tivesse acontecido, porque tive que dar muitos passos para trás em muitas coisas. Muitas coisas que ia fazer, deixei de fazer por medo. E penso o que teria acontecido se eu não tivesse sido estuprada? Não teria escrito um livro sobre isso, mas teria feito muitas outras coisas. De fato, a vida nunca mais será a mesma. Se ela vai ser pior ou melhor, ninguém nunca vai saber, mas vai ser diferente. É uma marca que não tem como apagar.

  • G |Por que decidiu escrever o livro agora, depois de 18 anos?

    AN |

    Em primeiro lugar, porque só agora consegui. Agora as coisas já estão mais resolvidas a ponto de eu ter conseguido escrever sobre elas. Mas o mais importante é que, de uns tempos para cá, houve uma urgência em relação a esses temas. Existe um certo espírito do tempo que nos encoraja a falar sobre a violência contra a mulher, que não havia, por exemplo, em 2003, ou no começo da década passada. Especialmente de 2013 para cá, esse foi um assunto que ficou muito em pauta. Antes, era muito represado, sobre o qual não se falava, mas muito em decorrência do movimento feminista, que começou a colocar esse assunto sob os holofotes, muita gente que vinha com essas questões muito reprimidas, começou a se sentir mais à vontade para falar. Tanto que você pode notar que há uma profusão de livros sobre violência sexual que saíram ultimamente. Isso não é ao acaso. Embora estejamos enfrentando uma série de retrocessos, especialmente de alguns anos para cá, também avançamos em muitos aspectos, na legislação, no movimento feminista, que está muito mais atuante, tem muito mais visibilidade.

  • G |Por que decidiu pesquisar sobre outros casos? O que te levou a querer mergulhar num tema tão difícil e delicado para você?

    AN |

    Não queria dar uma dimensão individual para o caso, porque se eu desse essa dimensão individual, iria parecer que era um caso especial — quando na verdade não era. Meu caso não tem nada de especial. É apenas um entre vários. Contar apenas sobre o meu caso poderia dar a impressão de que era realmente uma questão privada, quando não é. É uma questão coletiva. Daí a necessidade de ouvir outras mulheres, contar outras histórias, para dar essa noção de conjunto, essa noção de que é um problema coletivo. Pensar que a violência sexual é algo que acontece na história da intimidade, que diz respeito apenas à vítima, é errado. Nos últimos tempos ficou muito evidente que se trata de uma questão política. Os avanços dos últimos anos nos ajudam a, como indivíduo, nos compreendermos como parte de uma coletividade, e a compreender que aquela não é uma questão só sua. É uma tendência natural da pessoa que foi vítima de violência desse tipo pensar: “Por que diabos isso foi acontecer comigo?” É a velha culpabilização da vítima que parte inclusive da própria vítima. Quando, na verdade, essa conscientização política nos leva a perceber que se trata mesmo de uma questão geral, de uma questão estrutural, e não individual.

O estupro não se trata apenas da satisfação de um desejo, mas de uma necessidade de controle sobre a mulher

  • G |O livro desmistifica a imagem da vítima e do agressor? Você tinha essa intenção desde o início?

    AdrianaNegreiros |

    O violentador não tem uma cara específica, não é alguém que você identifica. É alguém que pode ser do seu convívio, da própria família, e muitas vezes é. Há diversos tipos de estupradores que são descritos no livro. Tem o sujeito que pega a mulher no meio da rua, tem o pai, tem o marido, tem o namoradinho de adolescência, tem um avô. Não existe um padrão, o agressor assume diversas formas e facetas. E é a mesma coisa com a vítima. Algo que me inquietou durante o processo civil, contra o Shopping Eldorado, era que os advogados ressaltaram o fato de que eu não parecia ter sido vítima de uma violência. Enquanto no texto de defesa, meus advogados afirmaram a todo instante que eu havia reagido. E, na verdade, minha reação foi um congelamento. Construímos a imagem de que uma mulher, numa situação dessas, luta com o violentador, se debate, sai completamente marcada fisicamente. E ao conversar com outras mulheres, vi que em muitos casos nada disso acontecia. Teve um, em especial, em que lembro da moça me contar do esforço em parecer agradável, ser gentil com o estuprador. Ela falou que inclusive fazia elogios a ele. Depois de tudo que passei, por muito tempo me perguntei porque havia me esforçado em ser agradável também, até que consegui compreender que era uma forma de sair com vida, um mecanismo de defesa, uma tentativa de convencer o sujeito a não me matar. Mas a caricatura que se tem da vítima é de que ela vai reagir, lutar ferozmente, uma imagem que contamina o sistema judicial. É importante compreender que existem múltiplas reações, inclusive a reação que é aparentemente uma não-reação, mas que talvez seja a mais forte de todas. Você está negociando ali, a todo instante, com a possibilidade de morrer, então você vai até o seu limite para sair viva, que naquele momento é a única coisa que importa.

  • G |No seu livro anterior, sobre Maria Bonita e as mulheres no cangaço, chama a atenção as cenas de estupro, que você narra de maneira muito crua. O quanto a pesquisa para a biografia da Maria Bonita te ajudou a escrever esse novo livro?

    AN |

    Certamente ajudou. Só escrevi o “Maria Bonita” da forma como escrevi porque fui vítima de uma violência sexual. Não teria olhado para o que aconteceu com as cangaceiras de maneira tão atenciosa sem saber a desgraça que é sofrer isso. Não à toa essas cenas são tão ressaltadas no livro, o sexo, a violência. Imagino que se eu não tivesse passado pelo que passei, teria escrito um outro livro, e esse tema talvez não tivesse me chamado tanto a atenção quanto me chamou. Agora, de que maneira influenciou o “A Vida Nunca Mais Será a Mesma”, foi mais no sentido de mostrar a urgência de escrever sobre isso. De certa forma, escrevi muito sobre violência sexual no livro da Maria Bonita porque havia algo em mim que eu precisava expressar, falar. Com a chegada da pandemia, a impossibilidade de viajar e fazer entrevistas para um novo livro que ia escrever na época, pensei: “Quer saber? Vou de alguma forma resolver essa questão na minha vida”, e por isso tentei escrever de fato sobre o tema, de forma direta, e não mais transversal. Foi uma tentativa de mergulhar nessa questão, uma tentativa de compreendê-la, até para me ajudar a lidar com ela de uma forma um pouco menos obcecada como costumava ser.

  • G |Em determinado trecho você diz que “violência sexual não é necessariamente atrelada ao desejo sexual, mas ao exercício de poder”. De que maneira essa afirmação se relaciona à cultura do estupro no Brasil?

    AN |

    Isso é uma questão que muitas teóricas do feminismo discutem: não se trata apenas da satisfação de um desejo, tanto que se fosse, homens que são impotentes ou tem outras questões não cometeriam violência sexual, e eles cometem mesmo assim. Trata-se de uma necessidade de controle sobre a mulher. De colocar a mulher no lugar que o homem acha que ela deve estar. Quando há no Brasil uma naturalização da violência, no fundo também é uma forma de exercer poder sobre a mulher. Então, quando o Bolsonaro, ainda deputado, diz para a Maria do Rosário “Não te estupro porque você não merece”, o que ele queria era colocá-la no lugar do silêncio. É sempre uma tentativa de diminuir a mulher e tirá-la do espaço público. Como se você dissesse para essa mulher que ela não deve estar ali. Que não é o lugar dela, e que se ela está lá, sofrerá as consequências disso. É algo mais profundo do que a gente imagina. Volto para o meu caso, que acho bem ilustrativo: quando aconteceu, eu tinha 28 anos, estava começando a trabalhar na Veja. Achava que estava abafando, logo no início da minha carreira como jornalista em São Paulo. Ao mesmo tempo, usava roupas que talvez alguém pudesse compreender como provocantes. Era desinibida, falava bastante. E quando o estupro aconteceu, meu sentimento era: você não deveria estar fazendo porra nenhuma disso, coloque-se no seu lugar. Parece uma questão muito subjetiva falar do espaço público, mas é como se alguém dissesse que você não deveria estar ali, é como dizer que a mulher não pode ser quem ela é. É um exercício de poder de fato. No espaço privado, isso se dá de uma outra forma, no sentido de que aquele espaço pertence ao homem de família, e que então ele pode fazer o que quiser com quem estiver ali. Aquilo que o liberalismo tenta promover como o espaço da autonomia, da individualidade, é o espaço de livre exercício masculino. A mulher é um acessório, que está a bel-prazer do chefe da família.

  • G |O seu marido, o também escritor Lira Neto, acaba sendo um personagem também, bem importante. Como foi pra ele quando você decidiu transformar essa experiência traumática para vocês em livro?

    AN |

    É engraçado, porque desde que tudo aconteceu, nunca mais falamos sobre isso. Não converso sobre isso com ninguém. Durante todos esses anos, eventualmente citei com uma ou outra pessoa, mas era muito pontual. Esse nunca foi um tema que nós [ela e o marido] conversávamos, porque eu nunca quis falar sobre isso. Quando decidi escrever o livro, eu o consultei, porque ele seria um personagem. Perguntei se ele se sentiria à vontade, ele disse que claro, que era uma decisão minha. E aí, como de hábito na nossa relação, a cada capítulo (e isso acontece comigo e com ele, geralmente escrevemos um capítulo e pedimos para o outro ler), pedia para ele ler. Antes, no “Maria Bonita”, por exemplo, costumava ler do lado dele. Enquanto ele lia, ia acompanhando a leitura por cima do ombro dele. Mas nesse livro, enviava os capítulos e desaparecia. Não queria estar perto, não queria ver como ele iria reagir. Muitas vezes foi difícil, ele lia e demorávamos para falar sobre o capítulo. Mas foi um exercício interessante porque finalmente falamos sobre isso, coisa que nunca tínhamos feito. Até com a desculpa do livro, tratamos disso de uma maneira muito clara. No final das contas, foi uma catarse tanto para mim, como para ele. A verdade é que quase ninguém sabia dessa história. Então, depois que mandei o livro para a minha editora, liguei para as minhas irmãs, uma delas sabia, a outra não, e contei. Até os amigos ficaram surpresos, tive que contar para as pessoas mais próximas, até para pessoas que eventualmente aparecem no livro, e não sabiam. Meu chefe na Playboy [Edson Aran, que aparece no livro], contei tudo para ele ontem, aliás. Foi um processo, de certa forma, de conversar sobre isso com as pessoas mais próximas, indiretamente.

Produto

  • A Vida Nunca Mais Será a Mesma
  • Adriana Negreiros
  • Objetiva
  • 304

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