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ConversasAdriana Barbosa: "Não é um comitê de diversidade que vai fazer uma empresa mudar"
À frente de projetos como Feira Preta e PretaHub, empreendedora valoriza avanço da diversidade, mas defende mudanças mais profundas nas corporações
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À frente de projetos como Feira Preta e PretaHub, empreendedora valoriza avanço da diversidade, mas defende mudanças mais profundas nas corporações
O mercado de trabalho está, sim, bem mais aberto à diversidade do que 30 anos atrás, quando a empreendedora Adriana Barbosa, 45, iniciou sua trajetória profissional. Começando em serviços de venda de objetos de biscuit ainda na adolescência, ela também trabalhou como vendedora em diferentes lojas de roupas até se firmar como profissional da rádio Jovem Pan, onde seu pai atuava, e, mais tarde, no mercado fonográfico. Fora do ramo de entretenimento, porém, ela lembra que praticamente não havia profissionais pretos nas equipes das grandes corporações.
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Fundadora da Feira Preta, um dos maiores eventos de cultura negra da América Latina, e da PretaHub, iniciativa para capacitar profissionais e acelerar o empreendedorismo negro no Brasil, Barbosa considera avanços importantes a criação de programas de diversidade e processos seletivos voltados para mulheres e pessoas negras em muitas empresas no Brasil. No entanto, na sua visão, ações como essas ainda estão longe de ser suficientes.
“Esse é um caminho, mas não é o caminho. Precisa ter dinheiro, medição, equipe alocada e tempo. Não se muda cultura organizacional a toque de caixa. Deve existir uma construção”, afirma em entrevista a Gama.
Nascida numa família de classe baixa na zona sul de São Paulo, Barbosa trabalhou desde cedo para ajudar a bisavó no preparo e venda de salgados e marmitas para complementar a renda da família, o que a ajudou a ter noções de mercado e empreendedorismo ainda jovem. Não foi à toa que acabou optando por uma formação voltada para gestão e empreendedorismo, o que no fim a levou por esse caminho numa perspectiva de impacto social.
Eleita em 2017 pela ONU uma das pessoas negras com menos de 40 anos mais influentes do mundo, a empreendedora esteve em janeiro no Fórum Econômico Mundial, em Davos, onde discursou sobre temas como economia, inovação social e equidade racial em frente a uma plateia internacional. Mas Barbosa considera que o assunto ainda segue relegado à periferia da discussão econômica global, mantido do lado de fora dos principais debates em eventos como esse.
Além da disparidade gerada pela desigualdade social, passando pela educação — enquanto as primeiras gerações de jovens negros acessam só agora a universidade, essa formação já estava estabelecida há tempos entre famílias brancas —, a empreendedora afirma que o atraso continua na mesma toada também na trajetória profissional e nos padrões de consumo.
“A galera de 18 a 20 anos está fazendo coisas que muita gente preta só vai fazer com 25. A formação da juventude preta na universidade acontece mais tarde, tudo acontece mais tarde para a gente”, afirma. Atraso que transforma num desafio de complexidade muito maior para grande parte da população tratar de certas questões do trabalho contemporâneo, como mudar de carreira ou de área profissional.
Na conversa com Gama, Barbosa fala ainda das barreiras para a população negra empreender e conseguir uma vaga no mercado de trabalho brasileiro, a importância central de políticas públicas voltadas ao tema e por que, para serem efetivas, ações afirmativas devem transformar de forma profunda a cultura organizacional das empresas.
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G |Como mulher negra, quando você sentiu pela primeira vez a questão da desigualdade e falta de oportunidades no mercado?
Adriana Barbosa |Comecei a trabalhar muito cedo, com 14 ou 15 anos. Na época, nem sei se já fazia sentido a história do aprendiz para essa faixa etária. Comecei em serviços básicos, vendendo biscuit numa fabriqueta que fazia esses produtos manuais. Depois trabalhei como vendedora de roupa em pelo menos três lojas de rua. Quando consegui entrar numa empresa, foi por causa do meu pai. Através dele, que trabalhava na rádio, entrei na Jovem Pan e depois na Gazeta. Nessas rádios, conheci o ecossistema de gravadoras, porque me relacionava com divulgadores e pessoas que atuavam na música. Então fui trabalhar na gravadora Trama, onde fiquei uns dois anos. Quando perdi o emprego, não conseguia mais voltar ao mercado fonográfico, que também passava por transformações. Era o auge da pirataria e a chegada da produção individual, fora das grandes produtoras. Sou empreendedora já há muito tempo, mas quando minha filha nasceu, por exemplo, tive que voltar ao mercado formal e fui trabalhar numa multinacional na área de investimento social privado.
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G |Algumas empresas têm implementado áreas de diversidade e processos seletivos para mulheres, profissionais negros etc. Vivemos um momento mais positivo para a igualdade no mercado?
AB |Está muito melhor do que 20 anos atrás, quando havia uma ausência de pessoas pretas em empresas legais. Tirando o ramo do entretenimento, porque o universo da música e o mercado criativo têm uma presença preta muito forte, isso praticamente não existia em empresas tradicionais. Hoje há uma abertura maior, porque nos últimos 20 anos as ações afirmativas e tudo que tem acontecido no campo da diversidade vêm mudando o mercado. Vejo mais pessoas pretas exercendo cargos de liderança, estamos passando por uma transformação.
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G |Por outro lado, essas vagas ainda privilegiam demais os cargos de entrada?
AB |Até dez anos atrás, quando a gente falava em ações afirmativas nas grandes corporações, era só estagiário e trainee. Empresas como Magazine Luiza olhavam só para essa questão. Mas hoje existe uma pressão da sociedade para falar de cargos mais elevados. Ainda está muito, muito distante, mas pelo menos está na pauta. Vejo um avanço na indústria da publicidade, onde há mais pessoas pretas em cargos de liderança do que em ramos tradicionais. Em setores ESG e ligados a pautas sociais, você também vê mais pessoas pretas, mas não tantas atuando em organizações e instituições privadas, ou seja, no empreendedorismo de impacto social.
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G |Quais as barreiras hoje para profissionais negros que querem empreender? Há uma desigualdade na questão do empreender por necessidade e por oportunidade?
AB |A população preta vem empreendendo desde o fim da escravidão, mas de forma muito precarizada, associada à necessidade. Óbvio que o contexto é melhor hoje. Temos pessoas pretas à frente de startups criativas, de impacto social, uma diversidade muito grande. Ano passado, fizemos uma pesquisa que mostrou que o principal sonho da população preta é ser dono da própria empresa. Ou seja, você sai de uma perspectiva só da “sevirologia”, da necessidade e do empreendedorismo precarizado para um desejo e uma vocação. Mas esse perfil de empreendedor recebe menos, e tem a questão do racismo institucional. Vimos que empreendedores negros com espaços físicos tinham mais dificuldade de obtenção de alvará, por conta do racismo. A população que começa a empreender pela lógica da necessidade demora para acessar capital, investimentos, tecnologia e produção em escala industrial. Há pouco empresários negros vinculados às federações de indústria, em função desse racismo estruturante e institucional, uma construção da desigualdade que vem desde a escravidão. Então ainda são muitas as dificuldades, apesar de as mulheres negras serem maioria entre microempreendedores individuais no Brasil. A base da desigualdade está lá.
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G |E as barreiras em relação ao mercado de trabalho?
AB |Vejo muitos avanços. Só que temos apenas 30 anos de cotas nas universidades. Existe uma procura grande por pessoas pretas qualificadas para ocupar esses cargos de liderança, mas ainda é muito pouco tempo. Devíamos ter feito um movimento mais forte 20 anos atrás. Se quisermos mais pessoas pretas em cargos de liderança daqui a dez anos, precisamos começar essa construção agora. Quem sai hoje do sistema de cotas nas universidades ou dentro de empresas precisa ser preparado para exercer cargos de liderança. Existe um delay entre a aceleração do campo progressista e a realidade. Nessa construção de desigualdade, a questão do tempo não casou. Hoje, pessoas pretas líderes em grandes corporações ficam pipocando de uma empresa à outra, quase num leilão. Não estou as culpabilizando, mas é porque o mercado vem disputando a tapas profissionais pretos qualificados. O processo de transformação não foi sistêmico. Temos 30 anos de ações afirmativas. Enquanto isso, várias gerações de famílias brancas passaram pela universidade. Hoje, uma garota preta de 20 anos pode ser a primeira da família a cursar uma universidade.
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G |Um estudo do ID_BR avaliou que, no ritmo atual, deve levar mais de 100 anos para que pessoas negras e indígenas ocupem cargos públicos e privados de forma equitativa. Que fatores precisam mudar para acelerar esse processo?
AB |O corporativo avançou muito. O que mais precisamos agora é de políticas públicas para garantir escala através de leis federais, nos estados e municípios. Assim você cria um sistema público para garantir essa equidade. Precisaria acelerar na esfera pública e nas corporações a revisão de todos os processos de empresas de governança para a coexistência de brancos e pretos. Hoje, o medo de uma empresa é ter que mandar embora uma pessoa branca para contratar uma preta. Não se enxerga ainda a possibilidade da coexistência. Para superar essa questão, é necessário ter coragem para reavaliar. Se foi o homem que criou os processos atuais de governança, é possível rever o que a gente tem hoje: os contratos, o compliance, tudo precisa ser modernizado para acompanhar o futuro do trabalho. Devemos construir estruturas organizacionais mais modernizadas.
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G |Quais principais linhas de ação vocês vêm tomando à frente da PretaHub e da Feira Preta para ajudar a mudar essa realidade?
AB |Nosso trabalho é focado em empreendedorismo. Mas, por uma perspectiva sistêmica, ele provoca a empregabilidade, porque empreendedores pretos contratam equipes pretas, assim como mulheres contratam mais mulheres. Falamos sobre novas vozes e pautamos a mobilidade social através da economia. Oferecemos programas de incubação, aceleração, educação empreendedora e acesso a crédito. Nos últimos dois anos, foram quase R$ 4 milhões investidos em negócios liderados pela população preta. Neste ano, fizemos um processo de consultoria para a Ambev para criar o fundo Bora, de R$ 7 milhões, para empreendedores no campo da economia criativa. E temos produzido dados e pesquisas desde 2015, fazendo advocacy. Num estudo com a Globo sobre o consumo da população negra, mostramos a participação de empreendedores negros no afroconsumo e como o racismo atravessa a questão. Ano passado, uma pesquisa apontou que mulheres negras são as maiores consumidoras de plataformas de streaming. Por que isso não se reflete na produção audiovisual?
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G |Este ano, você participou do Fórum Econômico Mundial, em Davos, onde falou da equidade racial pelo viés de mercado. Essa pauta se tornou prioritária em eventos internacionais como esse?
AB |Ainda não. É uma agenda paralela, inclusive com participação marcante dos países africanos, mas longe do centro da discussão global. No ano que vem, vamos rodar uma pesquisa em cinco países latinos com o CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe). Queremos levar a experiência do Brasil no mercado de consumo para a população negra. Estamos falando de 56%, a maior população preta fora do continente africano, um mercado muito forte. Já fomos para Colômbia, Bolívia, Burkina Faso e África do Sul para narrar nossa construção de um mercado a partir do fortalecimento da identidade preta. E como isso se reflete na maquiagem, em produtos para cabelo, nas roupas, livros, gastronomia e saúde da população negra. Quais mercados estão sendo criados para atender essas demandas de consumo?
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G |A gente fala muito em mudança de carreira e de profissão. Mas essa oportunidade ainda é um privilégio na nossa sociedade?
AB |Nem todo mundo tem a possibilidade de mudar de carreira. Para a população preta é sempre mais difícil, porque as coisas chegam mais tarde. A galera de 18 a 20 anos está fazendo coisas que muita gente preta só vai fazer com 25. A formação da juventude preta na universidade acontece mais tarde, tudo acontece mais tarde para a gente. Até mesmo quando acontecem avanços, uma nova onda, como o consumo consciente, a gente tem dificuldade de participar porque ainda é recém-chegado no mercado de consumo.
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G |Muita gente não tem acesso a vagas pelo excesso de exigências, sem contar a necessidade de indicação e contatos para começar em diversas áreas. Isso acaba limitando oportunidades e ajudando a perpetuar a desigualdade no mercado?
AB |O inglês é uma das grandes travas. Até em encontros internacionais, o brasileiro precisa levar tradutor, porque é uma parcela muito pequena da população que fala inglês. São muitos entraves. A questão da universidade, se é USP, PUC, Mackenzie… será que é tão essencial? Talvez haja grandes talentos na Anhanguera ou na Unip. Uma vez, trouxemos jovens para um processo de escuta sobre o primeiro emprego. Eles apontaram diversas barreiras. O próprio formato da entrevista, a vivência, as trocas e o fluxo de um programa de trainee. Como é a experiência para uma pessoa preta e uma branca? A gente discute a diversidade apenas pela ótica da representatividade, ter pessoas pretas em todos os espaços, mas não é só sobre isso. É sobre a experiência, a continuidade da pessoa naquele ambiente a partir de sua própria cosmovisão. Você vai ter voz? Vai conseguir trazer suas necessidades? São questões que precisam avançar no mercado de trabalho. Precisamos ter pessoas pretas, mas também construir uma cultura organizacional que torne o tema transversal, desde sua comunicação e estratégia de investimento social privado até o marketing, os produtos que você cria, a cadeia de valor. Toda a governança precisa ser revista.
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G |Como você avalia que o mercado tem lidado com as ações afirmativas dentro das empresas?
AB |Colocar a galera preta para exercer seu trabalho e ainda ter que ajudar a resolver uma questão racial de tantos anos, sem dinheiro, sem metas… Precisa de mais do que isso. Não é um comitê de diversidade que vai fazer a empresa mudar. Esse é um caminho, mas não é o caminho. Precisa ter dinheiro, medição, equipe alocada e tempo. Não se muda cultura organizacional a toque de caixa. Deve existir uma construção.
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G |E falta hoje um olhar mais específico para o empreendedorismo negro?
AB |Faltam políticas públicas que saiam do assistencialismo, do micro. Microcrédito, microempreendedor, é uma coisa de sobrevivência. A gente precisa ir para o fomento, o desenvolvimento. O Sebrae, BNDES, Caixa Econômica e Ministério da Indústria devem se unir para criar uma ação estruturante a longo prazo. As questões raciais não podem só estar alocadas no Ministério da Equidade Racial, dos Direitos Humanos ou na Fundação Palmares. Atualmente, estamos revisando uma ação do governo de impacto social. Ali não tem quase nada da questão racial. Falar em novas vozes e economias não reflete as necessidades reais. De quem são essas novas vozes, de que nova economia estamos falando? Fica uma lacuna.
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