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ConversasRaquel Franzim: ‘Crianças precisam tanto do ar livre quanto do trabalho em sala de aula’
Coordenadora de educação Instituto Alana e professora há quase 30 anos, ela fala a Gama sobre as mudanças recentes no ensino e o que ainda precisa mudar
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Raquel Franzim: ‘Crianças precisam tanto do ar livre quanto do trabalho em sala de aula’
Coordenadora de educação Instituto Alana e professora há quase 30 anos, ela fala a Gama sobre as mudanças recentes no ensino e o que ainda precisa mudar
Para Raquel Franzim, volta às aulas é muito mais do que o retorno à escola depois das férias. É um processo permanente de revisão de condutas, atitudes, formas de ensinar e acolher – ainda mais depois de meses a fio de isolamento social, retorno gradativo ao presencial e finalmente, em 2023, com um volta às aulas bem parecido com o que estávamos acostumados antes da pandemia. “Esse momento é crucial porque tem a ver com o acolhimento de estudantes, de profissionais da educação e das famílias”, explica a professora, e relembra que a responsabilidade de educar e cuidar é coletiva: “A própria Constituição Federal sinaliza isso no artigo 227, que é tarefa da sociedade, do Estado e das famílias”. Por isso, volta às aulas não deve ser uma atenção só da escola.
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No início do papo com Gama, ela fez uma breve retrospectiva das mudanças que já estavam em curso antes da pandemia, e foram aceleradas nesse período. Por conta das desigualdades, nem todas as transformações chegaram a totalidade das crianças brasileiras, mas os problemas ficaram em destaque. Abandono e evasão escolar foram os principais, além do fenômeno da pobreza da aprendizagem – ou seja, estar na escola, mas não aprender. “Para driblar tudo isso, as instituições precisaram de muitas estratégias remotas. E agora o compromisso é para que as transformações continuem, mas sejam feitas de maneira a assegurar os direitos das crianças.”
Como professora desde 1995, dos quais 14 anos foram dedicados ao ensino público, Franzim já observou bastante o comportamento dos alunos, o que deveria e o que jamais poderia acontecer em sala de aula. Desde 2015, é assessora pedagógica no Instituo Alana — focado no desenvolvimento da criança –, onde atualmente coordena a área da educação e o Programa Escolas Transformadoras do Brasil, com a ONG Ashoka. Claro que muito mudou, e extremamente rápido, nos últimos anos, ainda mais depois da pandemia. Mas se tem algo que Raquel Franzim tem expertise é sobre a essência da educação, seu valor e papel na sociedade.
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Ela atenta, principalmente, para o cuidado com a saúde mental e bem-estar na infância, que deve ser um ponto de foco permanente nas instituições, e ”tem muito a ver com currículo da escola, se ele privilegia, para além da dimensão cognitiva e intelectual, os esportes, o brincar, as artes, a socialização entre as crianças, o vínculo com os pais”, afirma ela na entrevista que você lê a seguir.
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G |Pensando na sua experiência e expertise de anos em sala, desde 1995, o que mudou nas escolas?
Raquel Franzim |O retorno às aulas é sempre um momento de acolhimento e de inclusão das crianças após um período em casa, e a pandemia mostrou que, quando as crianças ficam muito tempo isoladas, apenas em seus ambientes familiares, seu estado de saúde mental, e portanto o desenvolvimento integral, é vulnerabilizado. O momento de volta às aulas é crucial porque tem a ver com o acolhimento de estudantes, de profissionais da educação e de suas famílias. Essa difícil tarefa de criar e educar crianças e adolescentes é coletiva: a própria Constituição Federal sinaliza isso no artigo 227, que é tarefa da sociedade, do Estado e das famílias. As famílias sozinhas não dão conta, e a escola é um primeiro apoio para a identificação e encaminhamento de casos que chamam a atenção sobre a saúde mental das crianças. A pandemia chamou a atenção para isso. No mundo todo, em todos os veículos de imprensa, em todos os sistemas de ensino, houve convocações para o acolhimento, para que a saúde mental fosse um foco permanente de atenção.
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G |E qual o papel da escola frente a isso?
RF |Precisamos pensar num fenômeno que vem acontecendo com as crianças nos últimos 30 anos com a urbanização maciça das cidades, que tem a ver com confinamento físico e social. Estou falando do emparelhamento das crianças dentro e fora das escolas. A vida nas cidades gerou um modelo de sociabilidade que é muito confinado. E isso traz efeitos severos na saúde física e mental de crianças e adolescentes, e as escolas têm um papel na promoção do bem-estar que é literalmente desemparedar as crianças. Elas passam quase que a totalidade da jornada escolar entre quatro paredes, sem acesso ao sol, sem acesso ao movimento, sem acesso ao ar livre. E na contramão disso, as recomendações da Sociedades Brasileira, Americana e Britânica de Pediatria mostram que essa privação dos adolescentes e das crianças a espaços abertos e naturais provocam efeitos negativos na sua saúde integral e no desenvolvimento. Obesidade, sedentarismo, baixa motricidade, falta de equilíbrio, até mesmo miopia. Os estudos são muito consistentes em mostrar que as crianças precisam tanto do ar livre, do lá fora, quanto do acolhimento e do trabalho em sala de aula. Ao aprender com esse laboratório vivo que são as cidades, que são os bairros, as crianças desenvolvem mais criatividade, mais iniciativa e a capacidade de resolver problemas, que são habilidades importantíssimas na educação básica. A natureza é um aliado bem importante.
Não existe educação sem a figura dos governos, mesmo que seja a rede privada
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G |Como podemos reforçar um projeto de currículo antirracista?
Raquel Franzim |Tivemos agora em 2023, os 20 anos da Lei 10.639, que alterou as diretrizes e bases da educação e instituiu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas. Ela é fruto do movimento negro organizado desde a década de 70 para mudar o currículo da educação. A escola reflete o racismo, mas ela também pode ser uma instituição de compensação das desigualdades raciais. E essa lei foi criada justamente para isso. O currículo brasileiro foi construído historicamente sob um ideal de superioridade racial branca, tanto é que a gente estuda matemática, história, geografia sempre numa perspectiva eurocêntrica. Precisamos enegrecer os currículos brasileiros, não só porque a gente tem metade da população negra, mas porque a população negra, afro-brasileira e os povos africanos são responsáveis por construções importantíssimas, e a gente não pode não saber disso. Felizmente essa lei existe, mas infelizmente os professores e os sistemas de ensino só lembram dela no mês da consciência negra. Precisamos lembrar a todos que se o racismo é diário, o antirracismo também precisa ser. Temos que escolher livros de literatura e autores negros e negras, trazer brinquedos e brincadeiras de origem afro-brasileira, estudar conhecimentos numa perspectiva afro-centrada, e colocá-la em pé de igualdade no currículo. Não é um projetinho, não é uma atividade, não é uma lição, é o currículo inteiro.
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G |Os professores precisaram se atualizar em relação a tecnologia, principalmente com a pandemia. Como isso se deu? Acha que é importante a adoção da tecnologia na educação?
RF |No Brasil, temos os primeiros passos em direção à promoção das tecnologias na educação já no final da década de 90. Tínhamos uma expansão tímida da rede de computadores, mas também uma deficiência grande da conexão nas redes públicas. Com a pandemia, isso se tornou urgente. As escolas públicas melhor localizadas garantem uma conexão e um acesso melhor, não só à internet mas aos equipamentos. As escolas periféricas e do campo, não. É um desafio combater essa desigualdade. Temos que pensar também em como esse acesso chega às crianças e como isso está costurado. Durante a pandemia, o acesso à tecnologia era importante para garantir o vínculo educativo. A internet é um direito da criança, só que esse direito precisa ter qualidade. A TIC Educação tem uma pesquisa que sai ano a ano, e que mostra que a gente ainda tem, além dos problemas de acesso, conectividade e artefatos, um uso muito empobrecido da tecnologia dentro da escola. Vimos nos últimos anos um fenômeno mundial, e no Brasil é muito forte, que é a desinformação que corre solta nos meios digitais. Portanto o uso pedagógico desses artefatos dentro da escola são essenciais. Precisamos considerar que os estudantes, ainda que tenham nascido numa época mais digitalizada, precisam aprender a linguagem, os usos, as regras, os direitos e os deveres. Nenhum artefato tecnológico adianta se o uso pedagógico não problematizar, não contextualizar, não acontecer mediante orientação.
A escola reflete o racismo, mas ela também pode ser uma instituição de compensação das desigualdades raciais
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G |Qual a importância de uma organização da sociedade civil voltada para as crianças?
Raquel Franzim |Assim como o Alana, existem muitas outras organizações da sociedade civil. Segundo o artigo 227 da Constituição Federal, a criança é prioridade absoluta, só que não apenas das famílias. Mas da sociedade – e portanto das organizações sociais – e do Estado, dos governos. Boas políticas para as infâncias e para as adolescências são políticas articuladas, em que a educação não gira em torno só da escola e do território. Eu localizo a importância do Alana como uma das organizações que colaboram para que os direitos das crianças e dos adolescentes – e um desses direitos é o direito à educação – seja fruto de um esforço coletivo e articulado. Isso mostra a importância da política. Não se faz educação sem política. E ainda temos uma parcela pequena, mas estridente da população que acredita que as crianças nem precisam ir para a escola. O ensino domiciliar foi a grande tônica dos últimos quatro anos. Não existe educação sem a figura dos governos, mesmo que seja a rede privada, elas necessitam de uma estruturação da política, vide a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que é para todas as redes. As competências gerais colocam lá o antirracismo, a sustentabilidade, a inclusão das pessoas com deficiência. É para todo mundo.
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G |Como dosar o engajamento e cobrança dos pais em relação a escola?
RF |São duas instituições distintas: a família é uma instituição social, a escola é outra. Elas dividem a tarefa da educação. E é saudável que haja essa divisão das tarefas, porque a escola é uma instituição que tem uma finalidade diferente da família. Essa é uma relação, entretanto, para lá de conflituosa, e a minha experiência me provou isso. Os conflitos não são ruins, principalmente quando os sistemas de ensino fazem um trabalho permanente de qual é o papel de cada um nessa trajetória da criança, e do quanto é importante essa complementaridade. Na educação infantil, porque a criança é muito pequena, as escolas costumam dar muita atenção para a relação e para a parceria com as famílias. Mas (e esse é um problema dos nossos sistemas de ensino) com o passar dos anos essa relação vai ficando muito pontual, às vezes até inexistente, como é no ensino médio. É claro que a criança vai conquistando mais autonomia, mas um dos principais fatores que concorrem no sucesso escolar das crianças e dos adolescentes é a participação das famílias na jornada escolar. As escolas precisam se abrir para isso. Ali é um espaço social coletivo, onde a criança vai estar exposta às diferenças, e as diferenças são importantes para aprendermos a respeitá-las, conviver com elas, aprender com elas. E as famílias precisam estar dentro das escolas para soluções, para que a escola também escute e aprenda com os saberes familiares. Uma não substitui a outra, uma não precisa concorrer com a outra.
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G |O que existe na educação que não podemos perder frente a essas mudanças?
RF |Não podemos jamais perder a dimensão relacional da educação, mesmo quando ela está atravessada pela tecnologia, pelos artefatos tecnológicos, que cada vez são mais novos e diferentes, a relação humana é o que constitui o processo de aprendizagem, desenvolvimento. A tecnologia não é inimiga: a gente também pode se relacionar por meio dela, mas precisamos cuidar dessas relações. Relações na educação sempre precisam colocar o outro num lugar grande, potente. O problema não é a tecnologia, o problema é quando, com ela ou sem ela, as relações inferiorizam o outro. Essa é a educação que a gente precisa combater, a que tem baixas expectativas sobre a jornada do outro. Por isso ela é relacional, porque coloca o outro num lugar de grandeza, de potência, de sucesso, de altas expectativas. Isso a gente não pode perder nunca, que é apostar no estudante.
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G |Como o Brasil pode valorizar mais seus professores?
RF |Para termos essa educação com altas expectativas, precisamos apostar nas nossos professores. Temos um ciclo histórico de desvalorização da carreira docente. Dados estatísticos mostram que entre as carreiras procuradas por jovens que estão no Ensino Médio, pedagogia nem sequer aparece. Temos sim um problema a ser enfrentado, que passa pela valorização das condições de trabalho, de carreira. Mas não só por isso. Precisamos começar a mostrar mais o que os professores brasileiros fazem, porque geralmente a gente mostra aquilo que não dá certo. A denúncia é importante, mas o Alana, por exemplo, tem um histórico de materiais e produções audiovisuais que mostram também a potência dos professores. Volta às aulas tem a ver com acolhimento e inspiração. Vou dar umas dicas de filmes que produzimos na Maria Farinhai nos últimos anos, que colocam os professores nesse lugar potente que eles merecem. “Nunca me sonharam” (2017), a série “Corações e mentes: escolas que transformam” (2018), ambos do Cacau Rhoden, e claro, “Tarja Branca: a revolução que faltava” (2014), o filme mais antigo dele, que também traz essa potência do brincar, das diferentes linguagens, não só dentro da escola mas fora dela. Acreditamos no Alana que o conceito de qualidade é complexo, não conseguimos definir por um só fator. Qualidade é tudo isso que falamos até agora, mas qualidade também são as relações sociais que acontecem dentro das escolas. Boas escolas não são só boas escolas na perspectiva dos materiais, dos equipamentos, da área física da escola. Tudo isso faz parte e é importante, mas boas escolas também são aquelas em que as relações sociais são positivas para o outro, para o professor, para família e para o estudante. E isso tem a ver com altas expectativas para todo mundo.
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CAPA Como foi a escola?
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