Aos 37 anos, Natália Mota é uma cientista cearense radicada em Natal que figura entre as mulheres mais poderosas de 2020, de acordo com a revista Forbes. Psiquiatra e neurocientista do Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), foi também a única cientista sul-americana indicada ao prêmio Nature Research Award de 2019, que reconhece pesquisadoras que inspiram outras mulheres. O estudo que iniciou em 2016 consegue diagnosticar esquizofrenia por meio da análise do discurso com o auxílio de um algoritmo que ela desenvolveu — e, para isso, se jogou na matemática.
Natália mantém a pesquisa e atende pacientes, enquanto se encontra semanalmente com outras mulheres cientistas para falar sobre suas dificuldades. Além disso, mãe de dois filhos, Ernesto, de dez anos, e Sergio, de quase três, ela adicionou à família uma enteada (Dora, de sete anos) na pandemia e cuida do ensino à distância das crianças, enquanto busca seu próprio equilíbrio com hábitos saudáveis e exercícios.
Se você ficou cansado só de ler sobre sua vida cotidiana, é provável que se surpreenda como Natália é incansável. Se ela se aborrece com a hegemonia do patriarcado científico, responde com mais trabalho — em seu doutorado, publicou 15 artigos, o que é pelo menos três vezes mais que a média. É crítica sobre o sistema de produção vigente, a cultura da exaustão e diz que é importante se conectar com o real — a natureza ou olhar para a própria biologia — em busca de um equilíbrio.
“Uma das primeiras funções que se perdem na exaustão é foco e atenção. A produtividade aumenta muito quando as pessoas têm capacidade de concentração maior”, afirma Natália, na entrevista que você lê a seguir.
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G |Vivemos em uma sociedade que cultua a produtividade e prega que devemos acordar cedo, dormir tarde, ocupando cada hora do dia com mil e uma atividades. O que isso faz com nosso cérebro?
Natália Mota |Enche o nosso cérebro de toxinas. Uma das funções primordiais do sono é limpar o cérebro dessas toxinas que surgem quando não há equilíbrio. O descanso é o caminho para o equilíbrio, é um momento em que você pode pensar em outras coisas e manter a mente livre de informações e de ruídos. A mente estimulada o tempo todo, bombardeada por informações e pelo senso de percepção, esse estado constante de atenção e vigília, gera uma sobrecarga mental. Principalmente durante a pandemia, as pessoas que trabalham remotamente se vêem 24 horas disponíveis, em vigília para a produtividade ou ainda para consumo de informações na internet, que geram mais estímulos para a mente. É o tempo todo bombardeado por novos estímulos, querendo mais, buscando desafios e nunca tendo um momento de descanso.
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G |Como diminuir esse cansaço tão comum à nossa época e usar a energia na coisa certa? O sono é suficiente?
NM |Há estudos que apontam que para depurarmos a proteína tau, que é a proteína base que se acumula e que lá na frente pode gerar a demência de Alzheimer, a gente precisa dormir. O processo fisiológico do sono é como uma limpeza, um filtro para as substâncias que ficam no espaço entre as células no nosso cérebro. Sem falar no papel do sonho na metabolização das informações afetivas. Para que se possa digerir o impacto de emoções fortes — na pandemia, um momento de estresse maior, pessoas perdendo empregos, perdendo entes queridos, casamento sendo desfeitos, famílias encontrando outros arranjos –, tudo precisa ser metabolizado psicologicamente para que a realidade seja integrada no seu banco de memórias. Se você não chega a ter um sono fisiológico e a sonhar isso não acontece e as informações são acumuladas como numa bola de neve. Quando vê, as pessoas estão exaustas.
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G |Tem uma cultura que fala que produzir sob pressão, no limite, produz resultados melhores. Isso é então um tiro no pé?
NM |Eu vejo isso como fruto do modelo econômico vigente, capitalista, que coloca a produtividade na frente da vida dos indivíduos. Vivemos hoje uma epidemia de burnout, a ponta final desse processo de exaustão do trabalho. Uma das primeiras funções que se perdem na exaustão é foco e atenção. A produtividade aumenta muito quando as pessoas têm capacidade de concentração maior. Hoje em dia boa parte da força de trabalho está sendo automatizada. Isso coloca o trabalho em desvalorização que faz com que as pessoas compitam numa eficiência ingênua. No que se pode competir é em qualidade, e isso é impossível sem uma mente focada. Quando você estica a corda até chegar a esse ponto, retornar a um estado fisiológico de produtividade saudável é muito mais complicado. É preciso alertar, então, para a prevenção.
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G |Como diminuir esse cansaço tão comum à nossa época e usar a energia na coisa certa? O sono é suficiente?
NM |Não é só dormir bem, que é o básico. É respeitar sua fisiologia — e cada um tem uma genética que predispõe a uma determinada adaptação diurna e noturna. Cada um precisa se conhecer e adotar o sono saudável para si. Não dá para trabalhar por duas horas seguidas em uma tarefa cognitiva que tenha uma demanda excessiva de atenção. Há várias coisas que podem ser implementadas: alongamentos ou exercícios cardiovasculares em intervalos, dez minutos bastam, um pique de 20 pulos. A mente vai para outro lugar. O que não vale é colocar mais informação ainda no descanso, como ler algo no celular. Precisamos voltar a ter conexão com o que é real, com a natureza, poder ir a um jardim, respirar ar puro. Mas é um luxo e infelizmente não é para todo mundo. O que se pode fazer é entrar em um ambiente natural dentro de você mesmo, isso é factível quando a mente fica no momento presente. Onde é que eu estou? Alonga, sente o corpo, sente a musculatura. O exercício faz isso, alinha o corpo e dá um break de verdade para as funções mentais.
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G |No começo da pandemia as pessoas pareciam estar sonhando mais. Você escreveu um artigo e disse que era uma maneira de lidar com o trauma. Com tantos meses de pandemia isso parou? Há um jeito de resgatar a experiência do sonho?
NM |Esse não lembrar mais pode ser um processo de adaptação, a gente já está adaptado a essa situação estressante, trabalhando com criança gritando, fazendo jornada simultânea, apagando incêndio, vendo uma aula, atendendo um paciente. E isso também tem um custo: é justamente aquilo que você não tá querendo enxergar que está sendo trabalhado nos seus sonhos e que você não vai se lembrar. Criar um hábito de colocar um papel e uma caneta ao lado da cama para anotar ao acordar já pode fazer efeito. No começo, mesmo que você não lembre, insista. Só o fato de você levantar e pensar “o que foi que eu sonhei?”, isso já é o exercício, ficar pensando e não levantar de uma vez. Isso está relacionado com a regulação hormonal de cortisol e de hormônios ligados ao estresse. Quando se acorda de supetão, prontos para fazer alguma coisa, aumenta-se o cortisol, a adrenalina, e isso inibe a formação e a ligação dessas memórias que estavam lá no momento pré-sono. O fato do recontar essa história — seja para o parceiro ou para um gravador — também é importante para estruturar e buscar associações.
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G |Estamos vivendo um momento novo da pandemia, de fadiga. Mesmo os mais certinhos já estão abrindo de um jeito ou de outro. A ciência previa que isso poderia acontecer? Ou pode ajudar a explicar o motivo pelo qual esse cansaço ocorre?
NM |Mais uma resposta especulativa, que não é baseada em dados, mas em outras questões anteriores: a adaptação. A gente se adapta a notícias ruins. Há hoje os negacionistas e os que admitem que há risco mas que pesam na balança o tanto que vão ganhar e o que vão perder ficando em casa. Há a conjuntura da esfera econômica também. As pessoas estão com medo de perder seu emprego, de passar fome, de não conseguir se sustentar. Então voltam a trabalhar assumindo o risco. Elas não estão negando o risco, estão assumindo. E tem outras pessoas que veem a comunidade andando sem máscara e têm a sensação de que isso é normal, que não há mais o risco. Não é que elas inicialmente fossem negacionistas, mas é que nós somos seres sociais e, na medida que nós vemos uma adaptação da sociedade para aquilo, achamos que está tudo bem. Muita gente passou por quatro, por cinco lutos e não se despediu de nenhuma das pessoas. Querendo ou não, é um luto invisível. E esse luto vai repercutir em um trauma coletivo definitivamente. Talvez até mude a maneira como olhamos para o luto, anestesiados, apáticos.
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G |Sendo o Brasil um país tão desigual, a definição de cansaço é também muito diversa. Do ponto de vista de uma neurocientista, a sensação de exaustão pode ser uma escolha se a gente fala de sobrevivência?
NM |Sim. Na área de saúde é muito comum, no setor financeiro também. É a cultura da exaustão, de glorificá-la. Tenho diversos colegas que fazem plantões de 48 horas ou até maiores, sem respeitar o mínimo de descanso. Você vê que culturas diferentes lidam de maneira diferente — vários países asiáticos têm até termos para morrer de exaustão. É ruim para os indivíduos, mas dentro de um modelo econômico, não tem tanto problema se você for substituível. E essa regra econômica que é passada dentro das nossas relações sociais, desde o início. Isso vem da escola. Você treina os alunos para pensarem que, para assimilar mais conteúdo, precisam ter mais e mais aulas.
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G |E tem diferença na resposta de cada gênero em relação ao cansaço?
NM |Tem alguns artigos controversos em relação a isso, que apontam para uma habilidade natural das mulheres fazerem várias tarefas ao mesmo tempo. As mulheres têm um fator que é muito difícil de controlar, que é cultural, em que aceitam socialmente mais funções ao mesmo tempo. E agora, falando novamente deste momento de pandemia, aceitam não apenas jornadas duplas e triplas, mas simultâneas, por isso há a discussão de que as mulheres são mais aptas a fazer multitasking do que os homens. Talvez elas estejam treinadas para isso desde cedo. Culturalmente quando chegam a obter posições de liderança, é por meio de muita teimosia, de ocupar funções simultaneamente. A diferença entre gênero é muito difícil porque há interferências culturais, talvez a melhor forma de discutir seria nas habilidades de bebês.
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G |Você teve duas gestações em momentos cruciais da sua pesquisa e já falou que tinha que parar tudo para assumir outra jornada, a de mãe, enquanto os colegas seguiam no laboratório. Como lidou com essa frustração e com, imagino, esse imenso cansaço?
NM |Na época eu não tinha noção, eu vinha dessa cultura da exaustão. Quando eu me tornei mãe, eu comecei a parar — não por mim, mas pelo meu filho. Disse não para convites, escolhi mais as atividades. Com o tempo, fui me tornando mais eficiente na gestão do tempo. No início, eu me senti muito frustrada. Enquanto todo mundo estava passando madrugadas no laboratório, eu estava nadando contra a sociedade, em desvantagem. Mas hoje incentivo quem pensa em ter filho, traz uma vantagem porque tudo fica mais eficiente — o tempo que eu não tenho mais é o da procrastinação. Eu não abri mão da maternidade que eu acredito. Tenho dois filhos e agora tenho também uma enteada, e eu gosto de estar com eles, assumi a função de homeschooling, amamentei durante dois anos, fiz questão de manter a introdução da alimentação saudável para eles, e para tudo isso tive que cortar horas de trabalho. Com filho, também, começamos a cuidar mais da própria saúde, e eu percebi que eu não tinha hábitos saudáveis. Boa parte das coisas que falo aqui aprendi lendo sobre meditação e estilo de vida saudável. Tenho até um artigo, que está em revisão, sobre a capoeira na escola. A hipótese é que o exercício em meio às práticas cognitivas ajuda na retenção de memória.
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G |Sua pesquisa está sendo influenciada então por essa mudança de estilo de vida?
NM |Com certeza, e isso é algo que a gente precisa entender: a ciência precisa ser mais representativa. Por isso sou muito crítica aos trabalhos que têm a questão de gênero se todos os autores são homens. A ciência ainda hoje é um clube de lords, então não sejamos ingênuos, quem critica os trabalhos, quem faz o trabalho são, em sua maioria, homens caucasianos formados em universidades hegemônicas do primeiro mundo. São pessoas que têm uma cultura e um viés inconsciente da cultura deles. Eles vão aceitar facilmente um resultado que diga que as mulheres são naturalmente multitasking e que isso não tem problema para elas, entende? É muito cômodo. Agora quando vão avaliar trabalhos de colegas que refutam aquela ideia, aí são mais críticos. E quando vêem que são mulheres autoras de um país emergente ou periférico, aí que pega mesmo.
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G |Você sentiu isso na pele?
NM |Super. E como resposta a isso, só tem uma opção: mais trabalho. Se eles querem três ou quatro vezes mais trabalho [para avaliar a capacidade], vamos fazer. Não numa cultura da exaustão, mas respeitando nossa saúde e com eficiência para chegar a um produto que qualifique as autoras a ocupar posições de liderança. Comemoro toda mulher que chega lá, independente da esfera, porque é um benefício para mim diretamente, é furar um bloqueio para qualquer mulher que queira ocupar um espaço. O cansaço pega muito mais para a mulher porque ela acumula funções domésticas e com filhos. Eu pensava que era por conta disso que eu estava fadada a falhar; quanto antes eu desistisse, melhor, porque eu ia sofrer menos. Mas, teimosa, eu continuava. E pensava que era um problema só meu. Foi quando eu comecei compartilhar com outras mulheres e vi que elas também estavam se sentindo sozinhas. A demonstração de emoção, de fraqueza, de cansaço, foi extremamente importante para mim, me mudou definitivamente. Comecei a fazer isso com outras mulheres que eu conhecia, e isso estruturou um grupo, que é o Sci-Girls, que tem reuniões toda semana para falar de dificuldades e desafios profissionais e domésticos. Como explicar ao companheiro que ele tem que respeitar algo em mim? Como lidamos com os esquerdomachos que amamos nessa vida?
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G |O que gera mais cansaço para uma cientista no Brasil de 2020?
NM |Repetir sempre a mesma tarefa, enxugar gelo. O multitasking é até tranquilo, mas todo dia ter que falar “não dá fazer uma mesa redonda só com homem branco, não é possível que vocês não encontrem uma mulher negra para falar sobre isso”. É claro que tem. De resto, trabalho simultâneo eu vejo como oportunidade: estar em casa, lidar com a educação das crianças, com os trabalhos domésticos, ao mesmo tempo que a gente está produzindo, dá tanto insight, criatividade, perspectiva diferente. Por isso a representatividade é tão importante, as soluções vão sair da ciência periférica, dos países periféricos, e das pessoas que são menos representadas porque não estão no controle da sociedade que cultua o cansaço acima da vida e da saúde dos indivíduos. Para quebrar isso, só com pessoas que não se beneficiam dessa cultura e veem as coisas como elas são, interpretam esses dados. As líderes mulheres geriram seus países de uma maneira muito mais eficiente para lidar com a pandemia do coronavírus, foram muito mais bem sucedidas do que vários líderes homens. Por que as mulheres são mais dotadas de capacidades políticas? Não, porque vêem as coisas pela própria experiência, e pela sua gestão de como lidar numa situação de emergência. Elas têm uma posição, e um local de fala diferenciado. É por isso que eu acredito que quando pessoas com uma visão alternativa chegarem a ter voz na ciência vamos começar a ver outras realidades transparecerem. Como pensar no aquecimento global sem quebrar as pernas da economia? Tem que ser uma pessoa que está fora do jogo, ou não consegue nem enxergar esse resultado.