De norte a sul, conheça cozinhas regionais brasileiras — Gama Revista

Sente-se à mesa brasileira

Conheça algumas das cozinhas regionais que ganharam um toque especial – e pessoal – na mão de chefs de cinco restaurantes de SP

Manuela Stelzer 30 de Abril de 2021

Você conhece a cozinha brasileira? A dimensão continental do país e as diferentes influências em cada região do território dificultam o reconhecimento de uma identidade gastronômica nacional. Mas talvez o elo de ligação seja seu caráter intuitivo, afetivo e familiar, com receitas e técnicas passadas de geração em geração, como aponta a chef Renata Braune. “É uma gastronomia muito rica, que teve influência de vários povos”, adiciona o chef pernambucano e professor do Le Cordon Bleu Paulo Soares.

Os dois estão à frente do curso de cozinha brasileira lançado pela escola neste ano, talvez o mais desafiador da história para a gastronomia, quando a pandemia fechou restaurantes por todo o Brasil. As aulas, voltadas inteiramente para receitas e ingredientes nacionais, também se utilizam de técnicas de cocção da culinária da França. “Valorizamos os pratos brasileiros, mas unimos a eles uma expertise francesa. Não mexemos nos ingredientes, apenas refinamos a finalização”, diz Braune. Um exemplo do toque final é o singer, técnica que envolve a proteína em farinha de trigo, o que doura melhor a carne, traz novos sabores e engrossa o molho. Como a tendência brasileira é optar pelos pratos ensopados e fritos, o singer é uma ótima dica para valorizar uma galinha ensopada, exemplo dado pelos cozinheiros.

De Norte a Sul, a culinária varia a depender de sua história, salientando as influências locais, seja a herança de povos indígenas ou das colonizações europeias. “A cozinha do Norte tem uma base indígena muito forte. Já a do Sul é extremamente alemã e italiana. O Sudeste, em geral, foi influenciado pelos portugueses. E o Centro-Oeste tem todo o histórico das bandeiras e tropeiros. É muito diverso”, afirma Braune. Cada vez mais a cozinha brasileira tem ganhado espaço no próprio território, consequência da evolução dos produtos nacionais e também da valorização de chefs em relação a esses ingredientes.

A seguir, Gama traz cinco cozinhas regionais que resgatam cheiros e sabores passados de pais para filhos até chegarem a restaurantes essencialmente brasileiros, todos localizados em São Paulo e todos sobreviventes da crise gerada pela pandemia, adaptados ao sistema de delivery quando tiveram de fechar as portas. Cada cardápio carrega um pouco dos elementos que constroem a identidade gastronômica nacional.

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    Divulgação

    Camarão seco, folha de jambu e tucupi

    A cozinha acreana da Casa Tucupi

    A chef acreana Amanda Vasconcelos veio a São Paulo escondida dos pais. Disse que iria passar férias na capital, e lá ficou. Estudante de arquitetura, teve que se virar na cozinha. Foi assim que recuperou as receitas de família — as que sabia fazer e que de quebra tinham cheiro e sabor da terra natal. Esse foi o primeiro passo em direção à inauguração da Casa Tucupi, o restaurante de cozinha acreana que abriu no início de 2018, após perceber que a gastronomia era sua verdadeira paixão.

    A cozinha do Acre é recheada de influência indígena, árabe e boliviana graças à extração da borracha. Em seu momento áureo, reuniu comerciantes libaneses, que passaram a recriar a culinária árabe com os ingredientes que encontravam no novo território. No lugar do trigo, o principal elemento do quibe, usavam arroz ou macaxeira. Os charutos passaram a ser feitos de folha de couve ou repolho. A base da cozinha, entretanto, é a indígena, que trouxe tucupi e diversos peixes. Amanda pondera: “Na minha opinião, a cozinha acreana é como um rio em formação. Cada vez que eu volto à minha terra, vejo novos pratos. É uma cozinha que ainda está criando suas tradições”.

    Apesar de respeitar a sazonalidade dos produtos da região, no cardápio da Casa Tucupi nunca faltam o camarão seco, a folha de jambu e — sem dúvida — o tucupi, ingredientes clássicos da cozinha do Acre. E o prato típico é a Baixaria, um misto de cuscuz de milho, carne moída, salada de tomate e cebolinha, e um ovo frito com gema mole. Além dos clássicos, Amanda segue a tradição dos comerciantes libaneses e recria. Assim, a moqueca feita na Casa Tucupi não é nem baiana, nem capixaba: sem o característico azeite de dendê, ela usa o tucupi e o leite de coco no prato, ingredientes da Amazônia. A massa do nhoque, receita típica italiana, é feita com banana da terra e ragu de rabada. “Gosto de usar ingredientes bem característicos do Acre e misturar com receitas do mundo inteiro.”

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    Wesley Diego Emes / Divulgação

    O encontro da Bahia com Minas Gerais

    Ou melhor, A Baianeira

    Almenara é uma pequena cidade no Vale do Jequitinhonha, na divisa entre Minas Gerais e Bahia. Um lugar onde se come pão de queijo, mas não faltam costumes culinários do sertão baiano. É de lá que vem Manuelle Ferraz, cozinheira de caldeirões, de arroz branco e de feijão à frente do restaurante A Baianeira. (E que chegou a cursar direito em Belo Horizonte, mas teve um estalo para a cozinha como missão quando foi a Edimburgo estudar por ano.)

    A mistura das duas regiões do país, mineira e baiana, foi inspirada em sua origem. Algumas receitas são originais do Jequitinhonha, caso da abóbora com quiabo e da farofa de feijão andu. Outras são adaptadas, caso do nhoque de batata-doce com uma camada de requeijão de corte, típico da região onde nasceu. Para Manuelle, a união das duas cozinhas cria uma nova cultura alimentar.

    Na Baianeira, nunca faltam raízes e tubérculos de forma geral, além do arroz, do feijão e do queijo, ingredientes que se misturam a tudo que colore: urucum, dendê, manteiga de garrafa. O prato típico que mais vai ao salão é o Baião de Dois Sirizado, que traz a moqueca da Bahia, o baião de dois cearense, torradinhas de pão de queijo característicos de Minas e uma farofa de manteiga de garrafa. Apesar do caráter sertanejo, Manuelle dá um toque refinado aos pratos — e comandou a cozinha do Masp.

    A chef define a culinária da Baianeira como “cozinha popular brasileira”, e diz que o que faz é mais do que um cardápio autoral: “Executamos com delicadeza e refinamos tudo o que consideramos trivial. É mais do que uma cozinha autoral, eu resgato hábitos alimentares”.

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    Reprodução Instagram

    Uma cozinha sem fronteiras

    Receitas caipiras e caiçaras ganham vida no Lobozó

    Carlos Dória se dedica ao estudo da sociologia da culinária brasileira há mais de dez anos. E nesse tempo de pesquisa, se questionou sobre a regionalização das cozinhas do país, que não seguia os limites políticos e geográficos. Foi quando descobriu a cozinha caipira e caiçara, com receitas presentes em toda a região da Paulistânia, que compreende os estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Paraná, além de parte do Rio Grande do Sul. Reuniu aspectos que constituem essa culinária e o vasto território em que se apresenta, e ao lado do chef Marcelo Bastos (Jiquitaia), inaugurou o restaurante Lobozó.

    A cozinha caipira é um encontro de influências dos portugueses e indígenas guaranis: une milho, mandioca (aqui como legume, e não farinha), feijão, amendoim e abóbora a galinha e ao porco, que mais do que a carne, fornece também a banha, usada para conservar os alimentos. O Lobozó dá ênfase a elementos centrais dessa culinária, tanto que o nome é uma referência ao recheio que combina farinha de milho e legumes da horta refogados, usado no frango caipira, o carro-chefe do cardápio.

    Além do frango, não faltam paçoca de amendoim, barriga de porco enrolada e assada, e feijão gordo, um legado dos tropeiros na época da colonização. No restaurante, servem também o Cuscuz Paulista, feito à base de farinha de milho e temperos e que leva camarão. “É uma alusão também à cozinha caiçara, que nada mais é do que uma variante da culinária caipira”, diz Carlos Dória. Tais receitas foram pouco valorizadas ao longo da história, e a ideia é justamente desenvolver os pratos que caíram em desuso.

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    Rubens Kato / Julia Rodrigues

    O fogo e a carne sulistas com um toque contemporâneo

    Conheça a brasa do Charco

    Vindos do Rio Grande do Sul, Tuca Mezzomo e Nathalia Gonçalves chegaram a São Paulo há pouco mais de uma década. Trabalharam em restaurantes renomados, fizeram seu caminho na capital, até decidirem imprimir sua marca e criar com base em tradições sulistas. Foi assim que nasceu o Charco.

    A vontade era resgatar o que se vê no campo, trabalhar com a brasa e relembrar sabores que não encontraram na alta gastronomia, delicada e sutil: a aposta do Charco foi no sabor impactante e no poder do fogo e da fumaça. A cozinha, contemporânea com influência sulista, relembra a história da região, palco de muitas colonizações europeias, que se misturaram às tradições indígenas. Com produtos do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, o chef dá liberdade total para a equipe criar e adaptar. “Queria partir do ingrediente sulista, mas não colocar nenhuma limitação.”

    Mesmo assim, não faltam pratos típicos. O Cuscuz Dona Dalva, uma homenagem à avó de Mezzomo, é cozido no pano e a vapor, o que dá uma textura úmida ao prato. A isso se une charque, salame, cebola, alho e cheiro verde — e um toque pessoal do chef com um pouco de limão, manteiga e cebola crua. O churrasco, a maior referência da comida gaúcha, é onipresente: o prato da costela de chão, que originalmente leva um dia inteiro para ficar pronto, foi adaptado no restaurante e é preparado no defumador. O Charco também aposta nos vegetais, constantemente usados como elementos principais dos pratos — depois de passar pela brasa.

    O diferencial, segundo Mezzomo, está na descoberta de novas texturas e pontos da carne. “Fomos ensinados a conseguir o chamado ponto perfeito. Mas no Charco, o desafio é conseguir essa perfeição usando apenas o carvão e a brasa. Depende totalmente da sensibilidade do cozinheiro.”

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    Henrique Fanti / Rubens Kato (Reprodução Instagram)

    Da precariedade extrai-se a fartura

    A cozinha sertaneja do Jesuíno Brilhante

    Antes de abrir o Jesuíno Brilhante, Rodrigo Levino era jornalista. Filho de donos de restaurante, resolveu entrar para o mundo da gastronomia e usá-la para lembrar dos sabores e cheiros de sua terra, o Rio Grande do Norte.

    São preparos como a carne de sol e a farofa que foram transportados por retirantes em longas jornadas em bornais, as famosas sacolas de pano ou couro, que fazem parte do cardápio do Jesuíno. Além da mandioca, herdada dos indígenas, o restaurante usa do manejo do leite, dos queijos e da manteiga. “A comida que servimos você só se encontra em casas de família”, diz Levino. Ele explica que esses são os pratos das que vivem da agricultura de subsistência no sertão potiguar.

    Na terra árida não crescem muitos vegetais, mas sobram arroz, mandioca e milho. Por isso, a carne de sol, o ingrediente principal e mais icônico, é servida como uma paçoca: moída no moinho de ferro com cebola roxa e farinha de mandioca. Essa é a característica mais marcante da cozinha sertaneja: extrair fatura da precariedade. Em ambiente seco e com pouca variedade de produtos dados pela terra, quem vem do sertão sabe fazer de tudo com pouco: do leite fazem queijo, manteiga, nata. Da mandioca fazem farinha, biju, tapioca.

    E o toque especial do Jesuíno é o de preservação. Com poucas adaptações no menu, Levino criou um cardápio que segue à risca as receitas de família, e conserva em cada prato a memória do sertão.

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