CV: Gustavo Silvestre
Além de vestir artistas como Bruna Marquezine, Anitta e Pabllo Vittar com suas peças de crochê, o designer é criador do projeto Ponto Firme, que capacita detentos e egressos do sistema carcerário
Você chegou a ver um vestido azul de crochê supersensual que foi estampado nas redes da atriz Bruna Marquezine na última semana? Pois trata-se de uma criação do designer pernambucano Gustavo Silvestre, 42, que teve destaque no universo da moda cedo. No começo dos anos 2000 anos, depois de estudar design de moda em Florença, na Itália, venceu um concurso para jovens estilistas e já abriu seu primeiro atelier em Recife. Pouco depois, foi convidado para participar do Casa de Criadores, evento referência na moda autoral brasileira que realiza desfiles com designers independentes, em São Paulo, para onde eventualmente acabou se mudando, desenvolvendo seu trabalho e se fazendo conhecido.
MAIS SOBRE O ASSUNTO:
As cores do estilista Isaac Silva
A camisa polo Lacoste e o funk
Ansiedade para se vestir no pós-pandemia
Depois de uma viagem à China, porém, despertou para a necessidade de procurar caminhos mais sustentáveis, social e ambientalmente, para trabalhar com moda. “Me deparei com aquela cadeia do fast-fashion, com o consumo em larga escala, e fiquei desesperado, percebi que essa conta não fecha. Aí voltei para o Brasil e tirei um tempo para pensar sobre como deveria seguir”, conta.
O crochê é muito poderoso: é tecido, modelagem e estamparia só com uma linha e uma agulha. Não precisa nem de energia elétrica
A inspiração veio do contato com o crochê durante outra viagem, em 2011, quando Silvestre, que já envolvia trabalhos manuais em suas coleções, participou de uma pesquisa sobre comunidades de artesãos pelo Brasil junto à Chiara Gadaleta, especialista em moda e sustentabilidade. “O crochê me despertou curiosidade, lembrei das mulheres da minha família fazendo. Aí comecei a aprender e não parei mais. Achei aquilo muito poderoso, porque eu conseguia fazer tecido, modelagem e estamparia só com uma linha e uma agulha. Não precisava nem de energia elétrica.”
A partir daí, o crochê passou a integrar grande parte de suas peças, e virou uma marca pessoal. Hoje, seus modelos exclusivos vestem gente como Anitta, Pabllo Vittar e Anelis Assumpção.
Sua outra virada veio em 2015, quando ficou sabendo de uma iniciativa tímida de ensino de artesanato na penitenciária masculina Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos (SP), e foi convidado para dar uma aula de crochê. “O interesse foi grande, porque é um lugar muito carente de qualquer atenção e atividade. E aí vi que não poderia ser uma coisa pontual, teria que continuar”, conta. Foi o pontapé inicial do Ponto Firme, que hoje coleciona conquistas como ser a primeira iniciativa social a participar do calendário oficial da São Paulo Fashion Week, na qual já apresentou cinco coleções de roupas e acessórios de crochê criados pelos detentos.
Durante a pandemia, o projeto ganhou uma sede e uma escola no centro de São Paulo para acolher egressos. “No processo do encarceramento, essa é a parte mais delicada, porque eles saem e não têm oportunidade de trabalho, a reincidência no crime é enorme.”
Silvestre também mantém uma equipe com sete pessoas, todas ex-presidiárias, que trabalham em projetos diversos: já fizeram uma parceria de upcycling (com reaproveitamento de roupas de coleções passadas e resíduos têxteis) com a marca NK Store, participaram da decoração de lojas da Farm em Nova York e em São Paulo junto ao designer Marcelo Rosenbaum e na customização manual de sandálias Rider. O Ponto Firme virou até tema de um documentário, com direção de Laura Artigas, que está sendo exibido em festivais.
A Gama, ele conta mais sobre o projeto e sua relação com o trabalho.
-
G |O que te trouxe até aqui?
Gustavo Silvestre |Inconformismo. Eu nunca me conformei com como as coisas estão. Então eu fui em busca de fazer de outro jeito, de novos desafios, e de conseguir fazer coisas maiores.
-
G |Qual a sua missão na sua profissão?
GS |Eu trabalho para mudar o caminho que a moda tomou, para procurar outras maneiras de fazer moda, de conectar pessoas, de levar beleza. Eu acho que tem a ver com criar consciência, com enxergar o todo, não é sobre roupa, é sobre o que está por trás de tudo. E também trabalho para construir pontes, entre o industrial e o manual, entre o masculino e coisas que são ditas do feminino, entre a penitenciária e espaços que essas pessoas normalmente não acessariam. E o crochê vai entrando e fazendo esses entremeios. O crochê tem poder de transformar vidas.
-
G |Paixão e a motivação andam juntas?
GS |Sim, tem que fazer alguma coisa que faça sentido, se não, não tem como ter motivação. E dá muito trabalho, viu, eu não tenho férias, não tenho feriado, estou sempre trabalhando e as outras coisas vão se encaixando no meio. Então realmente precisa fazer sentido. Me inspira muito ver o poder do crochê nesse trabalho como uma ferramenta para criatividade, autoestima, autonomia. E me toca muito ver talentos que estavam só esperando uma oportunidade de se revelar, toda aquela potência criativa que existe ali. E o crochê é uma técnica inesgotável, sempre tem algo novo para aprender. Eu gosto de suscitar essa inquietude neles, essa provocação, de pensar para onde mais dá para ir, o que mais dá pra fazer de crochê.
“Trabalho para construir pontes, entre o industrial e o manual, entre o masculino e coisas que são ditas do feminino, entre a penitenciária e espaços que essas pessoas normalmente não acessariam”
-
G |Você já desanimou com a profissão?
Gustavo Silvestre |Ah, sim. Por isso eu trabalho para encontrar novos caminhos, para incluir. Incluir, para mim, é uma das coisas mais importantes. A moda já foi muito excludente, com gente pobre, com gente fora do padrão do corpo, com nordestino, com isso, com aquilo. Quando eu cheguei aqui em São Paulo eu fui muito massacrado por esse mundinho da moda. Então eu acho que sou parte dessa turma que está se mexendo para mudar as coisas. A moda precisa ser usada para comunicar coisas importantes, eu não vejo sentido em uma moda despreocupada com o que está acontecendo no mundo.
-
G |Quais são seus principais desafios hoje?
GS |Dar continuidade ao projeto é uma luta constante. É um desafio encontrar parceiros que topem entrar nessa empreitada e lidar com uma situação tão delicada como a de cárcere, trabalhar para mudar esse ciclo vicioso da violência, do crime, mostrar outras opções para essas pessoas e permitir que elas tenham renda. Principalmente aos egressos: não existe politica pública para as pessoas se reintegrarem, e existe muito preconceito. A geração de renda é muito importante para isso, para dar uma oportunidade real para essa pessoa que está em uma situação emergencial.
-
G |Você vive para trabalhar?
GS |Nesse Brasil de hoje, quem não, né? E meu tempo é uma loucura, as pessoas ficam até aborrecidas comigo, porque além de tudo o crochê é uma atividade lenta – até por isso faz tanto sentido na prisão, um lugar onde sobra tempo para eles – eu preciso sentar e fazer tudo à mão, se não, a peça não vai existir. Então eu deixo o celular no canto e quando vou ver tem 200 mensagens novas. É difícil porque a gente está numa fase do mundo muito virtual em que o tempo é muito rápido. E eu tenho que me dividir entre esses dois mundos, o físico e o digital, entre as aulas no presídio, a escola e meus trabalhos para os meus clientes. Meus amigos ficam loucos porque onde eu tô, eu tô com linha e agulha de crochê embaixo do braço, na fila, no bar, no ônibus.
VEJA TAMBÉM:
Como as redes sociais alteram a nossa percepção de tempo
“Escrevo para mostrar para outras pessoas trans que há outro caminho”
André Carvalhal: “Não existe consumo consciente em um mercado inconsciente”