CV: Felipe Simi
Foi em busca de um ambiente mais consciente na publicidade que Felipe Simi fundou a SOKO, uma agência reconhecida pela expertise ao tratar do tema da diversidade
“Meu nome é Felipe e eu sou gay.” É assim que o publicitário Felipe Simi, 37, começa sua entrevista a Gama. Fundador, CEO e CCO da Soko, uma agência de publicidade pautada pela diversidade, ele diz que escolhe começar o papo dessa forma porque sua “identidade sexual diz muito sobre quem sou e quem estou construindo nessa carreira”. Nascido em Bauru, interior de São Paulo, ele conta que cresceu em um ambiente tradicionalista, onde era “inaceitável ser gay”. A infância e a adolescência foram períodos difíceis e desde sempre o objetivo era claro: sair da cidade interiorana para perseguir os sonhos profissionais.
A Soko, fundada em 2016 com a Flagcx como sócia investidora, veio depois de diversos episódios homofóbicos que sofreu no mercado e da consciência de que, para se ter criatividade na propaganda, a diversidade em todos os campos era um imperativo. Hoje com três sócios além de Simi, a agência atende gigantes como Spotify, Google, Netflix e AB/InBev. Conquistou um Leão de Ouro no Festival de Publicidade de Cannes, um dos mais relevantes do ramo, pela campanha “Preso nos Anos 80”, para o Guaraná Antarctica. Nos últimos 18 meses, a Soko triplicou de tamanho e já soma mais de 300 funcionários.
Entre as campanhas cheias de impacto da longa lista da agência, está #VoteLGBT, uma iniciativa que busca aumentar a representatividade de pessoas LGBTQI+ em todos os espaços, principalmente na política, e She Can, do Guaraná Antarctica, que traz holofotes para o pouco investimento e atenção ao futebol feminino no Brasil. “Precisamos colocar a publicidade em um lugar de realidade, para enfrentar problemas reais e fazer com que a propaganda e as marcas sejam aliadas para solucioná-los”, conta Simi na entrevista que você lê a seguir.
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G |O que te levou a seguir esse caminho?
Felipe Simi |Sempre fui uma pessoa muito sensível, ligada à arte, à escrita. Escrevo poesia desde criança, gosto muito de entretenimento, sou consumidor de filmes, apaixonado por novelas [risos]. Quando comecei a vislumbrar uma profissão, tateava o lugar da criatividade e da escrita. Pensava em jornalismo, cinema, televisão. Mas não conhecia muito sobre publicidade. Não era uma carreira que eu tinha muito contato em Bauru. As profissões lá eram mais ligadas ao comércio e a serviços. No último ano da escola, uma colega de classe me contou sobre o curso e me convenceu prestar, aos 45 do segundo tempo. Sempre fui muito nerd, tinha bolsa na escola e todo o dinheiro que não usei para pagar o ensino básico, fundamental e médio, foi para uma poupança para pagar a faculdade, já que acabei decidindo fazer uma particular. O primeiro ano foi bem difícil, tive que trabalhar muito para conseguir pagar, mas não me arrependo, e me encontrei na carreira que escolhi.
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G |Quais lições você tira do período em que trabalhou em agências, antes de fundar a Soko?
FS |Quando trabalhava em marketing de empresas, já tive um contato bastante drástico com o que significava ser diferente. Eu era a única pessoa gay na área e tinha que esconder isso. Já ouvi abertamente de um chefe meu que era ‘uma vergonha existir um gay trabalhando no time’. Olha que sou um homem branco e cisgênero, ou seja, a vida é um pouco mais fácil com os meus privilégios, mas só o fato de ser gay já transformava a situação em bastante dramática, dentro de um contexto altamente normativo. Quando mudei para agência, as lideranças de criação também eram e são masculinas, brancas e heterossexuais. Ouvi com todas as letras, dessas pessoas, de que aquele ambiente não seria favorável para mim, que seria melhor que eu escolhesse outra área para trabalhar. Era mais fácil dizer que uma pessoa não seria bem-vinda do que tentar mudar a estrutura para recebê-la. Comecei a entender quantas barreiras existiam no mercado e como estavam à serviço da proteção de um privilégio, de um lugar de poder. Assim, estavámos jogando a criatividade para fora daquele lugar. Aprendi que, se queremos ser o mais criativo possível, por definição de criatividade, precisamos divergir do que é padrão. A criatividade é o ponto que foge da curva. Somos pontos que fogem da curva em uma sociedade normativa. Nossas vivências trazem uma carga de criatividade muito grande para o produto de publicidade, porque refletem outras realidades e conseguem olhar para outros lugares.
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G |Já chegou a desanimar da profissão?
FS |Com certeza. A publicidade é um mercado elitista, machista, LGBTfóbico e racista no seu histórico. Pensei em desistir algumas vezes, porque não via as pessoas comprometidas com essa visão, nem sequer dispostas a discutir. Hoje é completamente diferente, mas naquele momento me fazia refletir se era meu lugar mesmo. Tanto que o empreendedorismo, para pessoas que são de grupos minoritários, que representam a tal chamada diversidade, acaba sendo uma opção única, porque elas não se veem naquele lugar, então precisam criar e cavar seus próprios lugares. O que também é complexo, por conta das barreiras de entrada ali, mas enfim, acaba sendo uma tentativa de solução para sobreviver no mercado e ser feliz fazendo o que gosta, já que o empreendedorismo faz com que você consiga colocar sua visão na prática.
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G |Paixão e motivação andam juntas?
FS |Sim e não. Acho que não para todo mundo, e tudo bem. Acho absolutamente aceitável a relação transacional com o trabalho, como uma troca dentro do nosso mundo capitalista: te dou o que sei fazer e você me dá dinheiro. O discurso da paixão no trabalho é muito meritocrático. No meu caso, sou extremamente apaixonado pelo que faço, e se não for, não consigo fazer. Para mim, funciona desse jeito, mas não vejo um problema em quem não pensa dessa forma. Mudei muito minha cabeça ao longo dos anos, até por, talvez, trabalhar com pessoas que me trouxeram essas perspectivas diversas a partir das suas vivências. Vi quão tóxica era a exigência de uma relação passional com o trabalho. Ter a obrigação de encontrar algo que você seja apaixonado e ainda ganhe dinheiro com isso gera um peso na saúde mental das pessoas. Já trabalhei, inclusive, com inúmeras pessoas que não são apaixonadas por publicidade e são extremamente competentes.
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G |Quais são os principais desafios na sua área e como lida com eles?
FS |Tem um lance que é: sou apaixonado por publicidade, mas não sou nada apaixonado pelo mercado publicitário. A disciplina da publicidade me agrada muito pelo potencial de transformação no mundo. Somos muito poderosos no sentido de criar referências. Por anos, por exemplo, criamos uma referência tóxica, para pessoas como eu, do que seria uma família aceitável, e podemos mudar isso com novas referências. Mas o mercado publicitário é complexo. Tem muita romantização do excesso de trabalho, glamouriza-se virar a noite para uma entrega. Isso nunca fez sentido para mim, não precisa ser doloroso para conseguir resultados, para ser bem sucedido. Você não precisa sacrificar sua vida pessoal para conseguir êxito profissional. É um mercado que também tem muitas barreiras para a diversidade – os escolhidas são sempre os que têm os melhores portfólios, que acabam sendo homens, brancos, heterossexuais e que estudam nas melhores faculdades, sempre as mais caras. Isso vira uma barreira gigante que nunca vai permitir que a diversidade entre na propaganda como deveria. Para mim, existe uma dicotomia na publicidade: como amar a disciplina e odiar tanto o mercado? Foi essa questão que me fez criar a Soko. Queria provar que sim, é possível combater essas práticas tóxicas do mercado de comunicação, e ao mesmo tempo entregar um trabalho criativo relevante. Não vamos romantizar o excesso de trabalho, não vamos criar barreiras para a diversidade — pelo contrário, quero provar que a diversidade traz mais criatividade. Tentei montar uma agência para fazer um ponto [risos], e trazer um pouco do meu olhar.
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G |Você teve que abrir mão de algo para chegar onde chegou?
FS |Principalmente no início da minha carreira, tive que abrir mão de quem eu era. Acho que foi a maior dor que já tive. Durante anos, tive que esconder minha essência, e isso é extremamente violento. Tive alguns anos roubados da minha vida pessoal em detrimento de uma construção de carreira. Tinha ambições e elas me fizeram renegar a minha identidade. O que é absurdo. Acabei perdendo relações, ferindo pessoas. Por exemplo, já tive um namorado que, quando me ligava no trabalho, eu atendia pelo gênero feminino no telefone. Ou seja, não estava só me machucando, mas pior: machucando uma outra pessoa, que tinha que ser conivente com a minha prática para que eu conseguisse manter a minha posição naquele lugar. É inaceitável. Evidentemente não me orgulho de ter feito isso, percebi o quanto foi violento comigo e com tantas outras pessoas. Abri mão de quem eu era.
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G |Que conselho daria para os profissionais que querem seguir o mesmo caminho?
Felipe Simi |Depende do caminho, da publicidade ou do empreendedorismo. Para quem está começando na publicidade hoje, acho que o melhor conselho que posso dar é não tentar se encaixar naquilo que as pessoas determinaram como bom ou ruim. As réguas foram feitas por pessoas que estão buscando as mesmas medidas, ou seja, que refletem identidades que representam só aquelas pessoas. Falo muito sobre portfólio, que odeio essa prática. Claro, entendo a importância, mas se você mede uma pessoa só pelo que ela é capaz de colocar em uma pasta de trabalhos, é muito injusto. Nem todo mundo tem as mesmas oportunidades, e você tem que olhar para além daquilo que a pessoa conseguiu com o que foi dado de oportunidade para ela. Esse é um dos segredos, buscar essas pessoas. E elas existem, não são poucas agora. Existe muita gente boa fazendo publicidade em lugares inesperados. Às vezes, esses lugares são os melhores para você construir sua carreira. Foi o que aconteceu comigo: não comecei em uma agência tradicional, fui em uma considerada diferente [a New Content], mas foi a melhor oportunidade que tive para conseguir construir minha carreira nessa área.
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G |E no empreendedorismo?
FS |Bom, não é fácil. O mercado publicitário é o que mais tem barreiras de entrada, de todos que já estudei. São barreiras que precisam ser rebatidas porque repelem o ímpeto empreendedor e de inovação de muita gente na propaganda. Existem caminhos, e você precisa ser criativo para pensar em alternativas que te permitam entrar nesse universo. Acho que vai ficar cada vez mais fácil porque tem mais gente questionando tudo isso. É algo que vem sendo mais debatido nos palcos dos eventos oficiais de publicidade, e era uma coisa que não se via antes, que eu debatia no Twitter com 200 pessoas. Discutir prazo de pagamento, regras de mídia, entidades – isso vai nos fazer evoluir como mercado. Os empreendedores precisam buscar outros empreendedores que tenham dificuldades, dores e ambições parecidas para conseguir, enquanto grupo, gerar uma voz mais potente para provocar as mudanças necessárias.
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G |Quando percebeu que precisava focar na diversidade nos projetos que toca?
FS |Durante muito tempo, a diversidade na propaganda esteve muito em volta da representatividade dos corpos no filme publicitário, que é um lugar distante da realidade. Não é só lá que a diversidade precisa estar. Tenho uma obrigação, por estar em uma posição de privilégio, por conseguir ajudar a fazer algumas transformações que acredito que farão um mundo melhor. Acredito que a publicidade sempre teve essa potência. Todo publicitário tem o papel social de fazer o mundo melhor. É por isso que nas comunicações da Soko essas pautas estão muito presentes – quando estão casadas com a marca, evidentemente. Não acho que precisamos forçar qualquer marca a ter uma pauta social, mas se existe de fato uma conexão, trazemos para frente. Quando olhamos, por exemplo, para a Beats, da AMBEV: quando ela entende o papel social enquanto marca de trabalhar com a comunidade LGBT ao longo de todo ano e não só em junho, é uma grande vitória. E aí temos um projeto como o Palco Beats, que basicamente vai pagar o cachê de qualquer artista trans em qualquer festival ou show do Brasil ao longo de um ano. Isso gera uma transformação social real, além de uma conexão genuína com a marca. É muito importante que nós, nessa posição de privilégio e influência, busquemos isso cada vez mais.
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G |Qual sua missão na profissão?
FS |Costumo dizer que é unir minhas dores e privilégios para construir uma publicidade que seja boa para todo mundo. Acho que essa é minha maior missão. Mas tem uma outra pauta, que para mim é imprescindível dentro da posição que ocupo hoje, que é tentar provar para as pessoas que, por mais que a gente tente separar o público e o privado, no fim do dia, a política pública precisa estar casada com a iniciativa privada para conseguirmos as mudanças que precisamos. Se pensarmos no contexto do Brasil que temos hoje, estamos falando de mais da metade da população passando fome, quase 70% endividada, índice de desemprego e inflação em alta: o contexto ao nosso redor não é favorável ao consumo. E o que fazemos com a publicidade? Empurramos o consumo. Podemos até criar o desejo, mas não vamos criar o acesso. Quem cria o acesso são as políticas públicas. Não adianta nada fazermos nosso trabalho se o governo não fizer o dele. Tem um casamento importante de políticas públicas com iniciativa privada para conseguir as transformações de mundo. Estamos muito descolados da realidade na publicidade. Precisamos colocar a publicidade em um lugar de realidade, para enfrentar problemas reais e fazer com que a propaganda e as marcas sejam aliadas para solucioná-los – com certeza elas vão ser amadas por esses consumidores assim que houver o acesso. É um pouco de ativismo no capitalismo.