O Reformatório Nickel
Vencedor do prêmio Pulitzer de ficção, romance de Colson Whitehead narra história de abusos contra meninos negros em reformatório dos EUA
POR QUE LER?
O nova-iorquino Colson Whitehead fez história no último dia 4 de maio ao tornar-se o primeiro autor a vencer o Pulitzer de literatura por duas obras seguidas. “O Reformatório Nickel” (Harper Collins, 2019), que levou o melhor prêmio de ficção neste ano, vem na sequência de “The Underground Railroad: Os Caminhos para Liberdade” (idem, 2017), também ganhador de um dos mais importantes do mundo em 2017. Apenas esse feito — que o coloca na lista seleta de escritores com dois Pulitzer na estante, ao lado de Booth Tarkington, William Faulkner e John Updike — já seria suficiente para atiçar a curiosidade do leitor sobre a obra de Whitehead, cujo fã-clube inclui nomes como Barack Obama e Oprah Winfrey.
Porém, para além disso, “O Reformatório Nickel” joga luz sobre o racismo em um momento em que é cada vez mais urgente fazê-lo, com a ascensão do conservadorismo e dos discursos de ódio que estimulam a violência racial. Na esteira de “The Underground Railroad”, que também debate essa questão, o romance ficcionaliza uma história real. A partir dos relatos de abusos e assassinatos sofridos por meninos negros na escola Arthur G. Dozier, um reformatório na Flórida, Whitehead criou a trajetória de Elwood e Turner, dois garotos que se conhecem em uma instituição análoga na década de 1960. Com personalidades muito diferentes, assim como os motivos que os levaram até o reformatório Nickel, eles têm em comum a vivência dos horrores que testemunham lá dentro.
Mais do que baseada em uma história real, a narrativa reverbera uma realidade mais próxima do que gostaríamos. Na semana em que a Lei Áurea, que aboliu a escravatura no Brasil, completa 132 anos, não custa lembrar as questões que o livro de Whitehead escancara: aqui ou nos EUA, as feridas desse período permanecem abertas — e sangrando.
“Os hematomas nos meninos brancos eram diferentes dos que surgiam na pele dos meninos negros. Os brancos chamavam o lugar de Fábrica de Sorvete porque você saía de lá com machucados de todas as cores. Os meninos negros chamavam de Casa Branca porque esse era o nome oficial e fazia sentido e não tinha necessidade de ficar enfeitando nada. A Casa Branca aplicava a lei e todo mundo obedecia.
Eles vieram a uma hora da manhã, mas acordaram pouca gente, porque era difícil dormir quando você sabe que eles estão vindo, mesmo que não seja você a pessoa que estejam vindo buscar. Os garotos ouviram os carros passando pelas pedrinhas lá fora, as portas abrindo, os passos nos degraus. Ouvir era como ver em pinceladas brilhantes na tela da mente. A luz das lanternas dançou. Eles sabiam onde ficavam as camas — entre uma cama e outra havia apenas sessenta centímetros, e depois de ocasiões em que pegaram os meninos errados, agora se certificavam com antecedência. Pegaram Lonnie e Mike Preto, pegaram Corey, e pegaram Elwood também.
Os visitantes noturnos eram Spencer e um funcionário chamado Earl, que era grande e rápido, o que foi útil quando um dos meninos teve uma crise nervosa num dos quartos dos fundos e precisou ser contido para que eles pudessem ir em frente. Os carros estatais eram Chevys marrons, os mesmos que vagavam pelo terreno o dia todo em tarefas simples, mas que, à noite, se tornavam prenúncios. Spencer levava Lonnie e Mike Preto, e Earl conduzia Elwood e Corey, que não parou de chorar a noite inteira.
Ninguém falou com Elwood durante a janta, como se o que estava para acontecer fosse contagioso. Alguns meninos murmuravam quando ele passava — idiota — e os valentões olhavam com raiva para ele, mas, acima de tudo, havia uma atmosfera pesada de ameaça e desconforto no dormitório que só acabou quando levaram os meninos. O restante dos garotos relaxou e alguns conseguiram até sonhar.
Quando apagaram as luzes, Desmond sussurrou para Elwood que, depois que começasse, era melhor não se mexer. A correia era cortante, e ia machucar e talhar se você não parasse quieto. No carro, Corey ficou recitando um encantamento, “Eu vou me segurar e não vou me mexer, eu vou me segurar e não vou me mexer”, então talvez fosse verdade. Elwood não perguntou quantas vezes Desmond já tinha passado por aquilo, porque o menino parou de falar depois do conselho.
A Casa Branca tinha sido usada anteriormente como um galpão de trabalho. Eles estacionaram atrás do prédio, e Spencer e o funcionário levaram os garotos pela porta dos fundos. A entrada da surra, como os meninos chamavam. Ao passar pela estrada em frente, você jamais olhava duas vezes. Spencer logo encontrou a chave no molho enorme e abriu os dois cadeados. O fedor era intenso — urina e outras coisas que haviam penetrado no concreto. Uma única lâmpada nua zumbia na entrada. Spencer e Earl levaram as crianças para além das duas celas chegando à frente do prédio, onde havia uma linha de cadeiras aparafusadas umas às outras e uma mesa à espera.
Bem ali ficava a porta da frente. Elwood pensou em correr. Não correu. Aquele lugar era o motivo pelo qual o reformatório não tinha muro, nem cerca, nem arame farpado, o motivo pelo qual era tão raro alguém fugir — era o muro que os mantinha do lado de dentro.
Spencer e Earl pegaram Mike Preto primeiro.
— Achei que a última vez tinha resolvido — disse Spencer.
— Ele vai se mijar de novo — falou Earl.
O estrondo começou: um vendaval contínuo. A cadeira de Elwood vibrava. Ele não conseguia descobrir o que era aquilo — uma espécie de máquina —, mas o barulho era alto o suficiente para cobrir os gritos de Mike Preto e a pancada da correia no corpo dele. Depois de um tempo, Elwood começou a contar, pensando que se soubesse quanto os outros meninos levaram, saberia quanto ia levar. A não ser que houvesse um sistema superior que definisse quanto cada garoto devia apanhar: reincidente, instigador, observador. Ninguém perguntou a Elwood a sua versão dos fatos, de que ele estava tentando apartar a briga — mas pode ser que ele apanhasse menos por tentar interferir. Ele contou até 28 antes de a surra acabar e eles arrastarem Mike Preto para fora, para um dos carros.
Corey continuou a soluçar, e, quando Spencer voltou, mandou que ele calasse a porra da boca. Os adultos levaram Lonnie para a vez dele. Lonnie teve que aguentar cerca de sessenta pancadas. Era impossível entender o que Spencer e Earl diziam para ele lá atrás, mas Lonnie precisou de mais instruções ou repreensões do que seu parceiro.
Levaram Corey para a vez dele, e Elwood percebeu que havia uma Bíblia na mesa.
Corey levou cerca de setenta lambadas — Elwood perdeu a conta algumas vezes — e aquilo não fazia o menor sentido. Por que os provocadores apanharam menos do que a vítima? Agora ele não tinha a menor ideia do que esperar. Não fazia sentido. Talvez eles também tivessem perdido a conta. Talvez a violência não tivesse nenhum sistema e ninguém, nem quem batia, nem quem apanhava, soubesse o que acontecia e por quê.
Então chegou a vez de Elwood.”
- O Reformatório Nickel
- Colson Whitehead
- Harper Collins
- 188 páginas
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