Mulheres se inspiram em outras mulheres para descobrir seu valor — Gama Revista
Reportagem

Mulheres se inspiram em outras mulheres para descobrir seu valor

Personalidades como Taís Araújo, Zezé Motta, Larissa Luz e Cris Guterres contam como superaram as barreiras do machismo e racismo e construiram uma autoestima forte

03 de Outubro de 2024
Ilustração de Isabela Durão

Machismo. Desigualdade salarial. Padrões de beleza inalcançáveis. Racismo. Assédio. Relações abusivas. Etarismo. Para as mulheres, construir uma boa autoestima em um mundo que constantemente as joga para baixo pode ser uma verdadeira corrida de obstáculos.

MAIS SOBRE ASSUNTO
Depoimentos: mulheres contam quando descobriram que valem muito
Oito episódios de podcasts com mulheres inspiradoras
Síndrome do impostor: como mostrar suas qualidades no trabalho

Não à toa, pesquisas no Brasil e no mundo mostram que elas têm menor autoconfiança do que eles, menos probabilidade de pedir um aumento ou uma promoção no trabalho do que seus colegas do sexo masculino e sofrem mais com a síndrome de impostora. Esse último fenômeno é bastante representativo, pois acomete mulheres bem-sucedidas na carreira, mas que não conseguem se achar merecedoras do que conquistaram e vivem com aquela sensação de que são uma fraude.

Em junho deste ano, pesquisadores da Califórnia fizeram uma análise da literatura científica existente sobre a síndrome do impostor para detectar se, de fato, há diferenças de gênero nesse fenômeno. Depois de analisar 108 pesquisas, que somam 42 mil participantes, eles concluíram que as mulheres apresentam consistentemente pontuações mais altas nas avaliações da síndrome — que não é uma doença, mas pode levar à autossabotagem e trazer prejuízos para quem a sente. O estudo mais antigo desta meta-análise era de 1985. O mais novo, de 2023. Curiosamente, segundo o artigo, a diferença de gênero não diminuiu ao longo dessas quase quatro décadas.

Mesmo quando têm tanta competência quanto os colegas do sexo masculino, elas não se exaltam na mesma medida que eles

Em 2021, outro estudo, feito com mais de 4 mil adultos e 10 mil jovens em idade escolar, revelou que as mulheres se autopromovem menos do que os homens naquelas situações em que é preciso falar bem de si mesmo, como entrevistas de emprego e outros tipos de seleção. “As mulheres forneceram sistematicamente avaliações menos favoráveis ​​do seu próprio desempenho passado e de sua potencial capacidade futura do que os homens com igual desempenho”, concluíram os investigadores. Ou seja, mesmo quando têm tanta competência quanto os colegas do sexo masculino, elas não se exaltam na mesma medida que eles.

O etarismo também é mais cruel com elas. Segundo um artigo publicado na “Harvard Business Review” em 2023, ao contrário dos homens, as mulheres sofrem esse tipo de preconceito em todas as idades no mercado de trabalho: enquanto as jovens em posições de liderança costumam ser diminuídas, como se não tivessem a experiência necessária para o cargo, aquelas com mais de 40 ou 50 anos também não têm sua experiência profissional valorizada como a de homens dessa mesma faixa etária. O etarismo é ainda maior no caso de mulheres negras, segundo afirmou Maria José Tonelli, do Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da FGV, à Gama nesta reportagem.

Hora de despertar

Meninas e mulheres pretas, aliás, enfrentam um duplo desafio, pois precisam lidar com o racismo — velado ou explícito — no processo da construção de autoestima. Reunidas em um evento da marca de beleza L’Oreal Paris no último dia 12, em São Paulo, a atriz Taís Araújo, as atrizes e cantoras Zezé Motta e Larissa Luz e a jornalista e apresentadora Cris Guterres contaram como demoraram para desenvolver e manter a confiança no seu próprio valor.

Taís, por exemplo, afirmou que, mesmo estampando capas de revista desde os 13 anos e atuando em novelas da TV Globo desde os 16, foi só aos 30 anos que ela realmente passou a dar valor à sua história — que incluía a sensação de não pertencimento ao crescer em ambientes com poucas pessoas negras. “Foi uma infância bastante solitária, porque fui criada em lugares muito brancos”, relatou. “Dentro de todo o meu privilégio, eu tive que criar uma estratégia de sobrevivência naquele ambiente elitista. E é muito chato você ter que desenvolver estratégias de sobrevivência, algo que a gente desenvolve até hoje, né? Mas eu acho que exigir isso de uma criança é muito cruel.”

“Eu também vivi nesse ambiente onde não tinha outras pessoas negras”, emendou Cris Guterres. “Depois, quando eu me entendi uma mulher bonita, eu percebi que eu achava que eu era tímida, mas na verdade eu tinha sido silenciada pelos vários desafios ali.”

Com 80 anos recém-completados, Zezé Motta relatou experiências que mostram que, em sua geração, predominava um racismo nada velado. “Na adolescência, minhas amigas falavam: seu cabelo é ruim, sua bunda é grande, seu nariz é chato”, contou. Zezé passou a alisar o cabelo e chegou a pensar em fazer uma plástica no nariz. “Ou seja, total negação das minhas origens. Eu passei por um processo de embranquecimento muito grave.” (Leia mais depoimentos como o dela neste link.)

A artista não se esquece de que, quando foi escolhida para interpretar Xica da Silva no filme de Cacá Diegues, em 1976, a primeira nota que leu no jornal dizia: “Quem passou no teste para interpretar Xica da Silva foi uma mulher feia, porém exuberante”.

Tive o privilégio de conhecer [a intelectual] Lélia González, de fazer um curso de cultura negra, de conhecer pessoas realmente importantes e de ir à luta

“Mas eu tive o privilégio de conhecer [a intelectual] Lélia González, de fazer um curso de cultura negra, de conhecer pessoas realmente importantes e de ir à luta. E esses temas foram ficando para trás”, completou.

O cabelo como conquista

Um episódio marcante para ela foi uma viagem para Nova York que fez com o grupo de teatro do célebre dramaturgo Augusto Boal. Era 1969, e Zezé se encantou com o movimento “Black is Beautiful”. A atriz, que na época usava uma peruca chanel, tomou um banho para tirar o alisamento do cabelo — para ela, foi como um batismo em sua construção da identidade. “Não tenho nada contra quem alisa, cada um faz o que bem entender do seu corpo e do seu cabelo. O problema é que eu fazia aquilo para embranquecer. Porque diziam que eu era feia com aquele cabelo.”

De fato, a relação de pessoas negras com o cabelo carrega um simbolismo que ultrapassa questões estéticas. Larissa Luz contou como foi, para ela, esse processo. “Eu, quando era pequena, sonhava que ia vir uma fadinha e transformar meu cabelo. Passei por momentos difíceis nesse reconhecimento”, lembrou. “Só fui ter referências de mulheres negras e entender isso como um referencial depois que eu fui crescendo. Esse processo, para mim, é muito recente. E ainda está acontecendo.”

Um dos momentos que marcaram essa virada de chave foi a leitura da obra da escritora e ativista norte-americana bell hooks. “Ela dizia que uma mulher negra tem o seu cabelo como um território a ser conquistado, algo que você tem que tomar, que resolver. Isso me pegou de um jeito tão grande. Comecei a investigar, abri a cabeça e o espelho foi virando uma outra coisa para mim”, contou Larissa, que transformou essa epifania no álbum “Território Conquistado”, indicado ao Grammy Latino.

A beleza dos corpos diversos

Ginecologista e influenciadora digital, a ex-BBB Marcela Mc Gowan apontou a representatividade de corpos diversos como um caminho para que mulheres se amem, mesmo quando não entram nos padrões tradicionais. “A beleza é aprendida. Então, a gente precisa reaprender esse padrão estético. Temos que ter espaços que mostram mulheres diversas, rostos diversos, corpos diversos, para que a gente possa se identificar.”

Que lugares merecemos ocupar no mundo? E que histórias podemos protagonizar, talvez diferente da que tenha sido contada para nós?

A médica, que namora uma mulher e grava vídeos e podcasts sobre prazer feminino, decidiu se especializar em sexualidade humana quando percebeu que muitas pacientes relatavam dificuldades em sentir prazer, mesmo sem ter nenhum problema anatômico. “Não era uma questão biológica. Era social”, afirmou. Segundo Marcela, o problema é que conhecemos o mundo — incluindo as narrativas sobre prazer — principalmente a partir de uma perspectiva: a dos homens cis hétero brancos, que ocupam os lugares de poder há séculos. “Nós, mulheres, temos que recontar essa narrativa e imprimir o nosso ponto de vista no mundo. Precisamos nos perguntar: que lugares merecemos ocupar no mundo? E que histórias podemos protagonizar, talvez diferente da que tenha sido contada para nós?”

“O feminismo negro me salvou”

Segundo um novo relatório do Ministério do Trabalho e Emprego e Ministério das Mulheres, divulgado nesta quarta-feira (18) pela Folha de S.Paulo, em 2023 as mulheres ganharam, em média, 20,7% a menos do que os homens. O levantamento foi realizado a partir de dados de 50.692 empresas com cem ou mais funcionários, com base na lei de igualdade salarial aprovada em 2023. Em cargos de chefia, a diferença é ainda maior, atingindo 27% para dirigentes e gerentes. O levantamento mostra que a disparidade salarial para mulheres aumenta quando se considera a raça. No Brasil, uma mulher negra recebe, em média, 50,2% do que um homem branco ganha. Em 2023, a remuneração média das mulheres negras foi de R$ 2.745,76, enquanto os homens brancos ganharam, em média, R$ 5.464,29.

“Há diversas suspeitas e se comenta bastante que as mulheres aceitam salários menores.Tenho muito cuidado ao falar disso, pois não acredito que as mulheres aceitam ganhar menos porque gostam de receber pouco. A gente aceita um salário menor porque o oferecem e achamos que é isso mesmo”, disse a economista Regina Madalozzo em entrevista à Gama em junho deste ano. Em seu livro “Iguais e Diferentes: Uma jornada pela economia feminista” (Zahar, 2024, 245 págs., R$ 89,90), ela defende que a desvalorização da mulher pelo mercado de trabalho prejudica o crescimento do país.

Para Ana Carolina Querino, representante interina da ONU Mulheres para o Brasil, é por razões como essas que ainda é necessário bater na tecla da igualdade, por mais que alguns direitos já tenham sido conquistados. “Por que as mulheres não estão nos postos de liderança e de poder? E uma vez que chegam lá, por que sofrem um questionamento constante das suas capacidades? Por que elas recebem menos do que os homens, sofrem assédio e violência por serem mulheres?”, questionou. Essas desigualdades, segundo Ana, ajudam a explicar por que a percepção do próprio valor não é uma construção puramente individual, mas sim um processo moldado por questões sociais e estruturais.

Nós sempre soubemos o nosso valor. Mas o nosso valor foi apagado historicamente em detrimento de menores salários, de não ocupar espaços

Em sua opinião, a transformação dessa realidade é também uma responsabilidade dos homens. “Eles devem olhar para os seus comportamentos e revisitar essa que é uma masculinidade tóxica. Se não há paridade nos espaços de poder, se eles estão em maioria, é também responsabilidade deles abrir o caminho para que a gente possa mostrar o nosso potencial”, defendeu.

Bia Diniz, fundadora da organização sem fins lucrativos Cruzando Histórias, conta que muitas mulheres em situação de vulnerabilidade social chegam lá desvalorizando a si mesmas e à sua própria história — muitas vêm sendo inferiorizadas por companheiros e familiares por anos. A ONG promove empregabilidade e valorização profissional feminina e também realiza treinamentos contra o assédio em parceira com o projeto StandUp, da L’Oréal Paris.

“Sete anos atrás, escutei a história de uma mulher na televisão, peguei uma lousa e saí pelas ruas de São Paulo para escutar outras mulheres. Minha intenção era entender quais eram as histórias por trás dos números do desemprego”, contou. A experiência mudou totalmente sua forma de se ver, afirma. “Eu me descobri mulher escutando outras mulheres. Mesmo com trajetórias diferentes, a gente tem um fio condutor de humanidade que nos une a todas.”

A atriz Gabriela Loran também destacou a natureza coletiva da construção da autoestima. “Este não é um recado para as mulheres. É um recado para as não mulheres, para a sociedade. Nós sempre soubemos o nosso valor. Mas o nosso valor foi apagado historicamente em detrimento de menores salários, de não ocupar espaços”, disse a Gama. Ela falou sobre a sobreposição de preconceitos — misoginia, racismo, transfobia — e sobre a importância da representatividade. “Eu sempre soube do meu valor. Só que, obviamente, é preciso que a gente veja isso refletido na sociedade.”

O feminismo negro me salvou em todos os sentidos: de me descobrir, de entender minha beleza, que posso estar em qualquer lugar

Gabriela citou Taís Araújo como uma referência para ela e para a irmã durante a infância em São Gonçalo, no RJ. Taís, Cris Guterres e Larissa Luz, por sua vez, reverenciaram a importância de Zezé Motta e de outras mulheres pioneiras no meio artístico, como a cantora Elza Soares e a atriz Léa Garcia. “Eu me sinto absolutamente privilegiada de ter sido forjada por essas mulheres, de ter caído no mundo artístico muito cedo e encontrado pessoas que entenderam que cuidar de mim era importante para a nossa continuidade”, disse Taís. “A gente só está aqui porque essas mulheres passaram pelo que elas passaram e fizeram o que fizeram para a gente chegar aqui com essa voz, com essa altitude, com esse corpo”, acrescentou Larissa.

Ou seja, se o problema não é individual, a solução também não será. Além de Lélia Gonzalez e bell hooks, autoras como Sueli Carneiro, Carolina de Jesus e Chimamanda Adichie foram mencionadas como referências na redescoberta do autovalor.

“Eu costumo dizer que feminismo negro me salvou. Me salvou em todos os sentidos, de me descobrir, de entender que eu tinha beleza, que eu posso estar em qualquer lugar”, afirmou Cris. A apresentadora destacou a importância da sororidade em oposição a uma suposta rivalidade feminina, que também é uma construção social. “Se tem uma coisa que eu aprendi na minha vida é que quem apoia uma mulher é outra mulher. Isso é muito real. Eu passei por várias adversidades e quem esteve do meu lado era sempre uma outra mulher.”

Este conteúdo foi desenvolvido em uma parceria comercial entre Gama e L’Oreal Paris, como parte da campanha #VoceValeMuito

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação