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Conversas

“A essência da violência de gênero é uma relação de poder construída de forma assimétrica”

A promotora de justiça Silvia Chakian aponta raízes misóginas do aumento de feminicídios no Brasil e reforça importância de políticas públicas que impeçam mortes evitáveis

Leonardo Neiva 18 de Março de 2025

Em 2024, o Brasil registrou 8.464 novos julgamentos de casos de feminicídio, segundo o Conselho Nacional de Justiça, um aumento de 14,5% em relação ao ano anterior. Nos últimos cinco anos, esse salto foi bem maior: de 225% desde 2020. O mais recente Anuário da ONU Mulheres também aponta um aumento na violência contra mulheres no mundo todo. Em 2023, cerca de 140 mulheres foram mortas todos os dias por parceiros ou membros da família.

O termo feminicídio define o assassinato cometido contra uma mulher em razão de seu gênero. Ou seja, quando a vítima é morta por ser mulher, num crime geralmente conectado à violência doméstica. Entre os vários exemplos relacionados à violência contra a mulher que ocupam as manchetes todos os dias, o caso da jovem Vitória, encontrada morta em Cajamar, na grande São Paulo, acabou ganhando destaque na mídia durante as últimas semanas, levantando uma discussão sobre o que é preciso para romper as barreiras do combate a esse crime no país.

A promotora de justiça Silvia Chakian, mestre em direito penal e co-autora do livro “Precisamos Falar de Consentimento” (Bazar do Tempo, 2024), relaciona a violência contra as mulheres diretamente ao aprofundamento das desigualdades de gênero no Brasil. “Casos como esse devem nos fazer refletir sobre as raízes de nossa sociedade, ainda tão violentas e misóginas em relação às mulheres, que são transformadas em alvos em potencial dentro de casa, no ponto de ônibus ou no caminho de volta do trabalho”, afirma em entrevista a Gama.

Na conversa a seguir, Chakian aponta os diversos fatores que têm levado ao aumento desse tipo crime no país e explica a importância de ir além da punição dos culpados, na busca por uma política que passe a impedir mortes evitáveis de milhares de mulheres.

  • G |A Rede de Observatórios da Segurança aponta que, em nove estados brasileiros, ao menos um feminicídio acontece a cada 17 horas. Apesar de ser um tema cada vez mais discutido, por que seguimos sem avançar ou até retrocedemos no combate à violência de gênero e ao feminicídio?

    Silvia Chakian |

    A persistência e o incremento da violência contra as mulheres estão diretamente ligados à desigualdade de gênero no nosso país, que foi construída historicamente a partir de discursos, práticas, religiões, costumes, políticas e leis discriminatórias, impedindo o reconhecimento das mulheres como sujeitos de direitos. Essa é a essência da violência de gênero: uma relação de poder construída e reforçada a partir de papéis sociais atribuídos por séculos e de forma assimétrica a homens e mulheres dentro de uma lógica de submissão da mulher e dominação masculina. Daí porque a violência que vitimiza mulheres no nosso país é marcada por circunstâncias bem distintas da violência praticada contra a população masculina. Nesses casos de violência, em especial de feminicídio, os autores são parceiros ou ex-parceiros das vítimas. A violência acontece dentro do lar e ao final de uma escalada de violência.

  • G |O Brasil ocupa a quinta posição no ranking global de feminicídios. Quais fatores fazem com que estejamos tão alto no ranking? É possível conectar esse dado à cultura e às visões sobre masculinidade no país?

    SC |

    Não há como apontar uma única resposta para o aumento da violência contra as mulheres. Trata-se de um fenômeno complexo e multifatorial, mas não podemos deixar de considerar alguns fatores. A falta de implementação de políticas públicas previstas na Lei Maria da Penha desde 2006, capazes de garantir o acesso das mulheres a direitos fundamentais como saúde, educação, trabalho digno, habitação, segurança etc. Ao contrário, em muitos locais é evidente o sucateamento dos serviços e equipamentos da Rede de Atendimento a Mulheres em Situação de Violência, com destinação de orçamento quase inexistente por parte dos gestores públicos. Também o crescimento do discurso misógino dos últimos anos, que contribui para o fortalecimento dessa assimetria, acentuando a desigualdade de gênero. A pandemia impôs às mulheres o incremento da vulnerabilidade no espaço doméstico, o isolamento social, o aumento das tensões do convívio, uma crise financeira, a sobrecarga de tarefas domésticas e de cuidado e o fechamento dos serviços de ajuda. Isso tudo além do efeito backlash, uma reação violenta à reivindicação das mulheres por direitos.

  • G |Casos como o do assassinato da jovem Vitória acabam comovendo o público, mas raramente levam a mudanças importantes. O que falta para uma maior mobilização nesse sentido?

    SC |

    Por um lado, vemos o amadurecimento da sociedade, que não tolera mais a violência contra as mulheres como já aconteceu no passado e cobra que se faça justiça. Mas, por outro, essa expectativa de resposta ainda está muito limitada à responsabilização dos autores da violência. Evidentemente, a punição exemplar, com aplicação de pena máxima para um crime com caráter hediondo como esse, é fundamental. Mas é preciso ir além. Avançarmos para entender as falhas do estado e como essas mortes poderiam ser evitáveis. Em muitos casos, com o monitoramento adequado, a análise de risco e políticas de controle das medidas protetivas, por meio das patrulhas da Lei Maria da Penha, da tecnologia das tornozeleiras ou aplicativos, é possível interromper a escalada de violência que acontece em um relacionamento abusivo. Casos como esse devem nos fazer refletir sobre as raízes de nossa sociedade, ainda tão violentas e misóginas em relação às mulheres, que são transformadas em alvos em potencial dentro de casa, no ponto de ônibus ou no caminho de volta do trabalho.

  • G |Quais políticas públicas devem ser adotadas de forma urgente para lidar de maneira mais eficaz com a questão?

    SC |

    Tivemos muitos avanços, desde o advento da Lei Maria da Penha, na construção de um arcabouço legislativo importante de proteção da mulher e punição para crimes de gênero, em especial na sua manifestação mais drástica, que é o feminicídio. Prova disso é a última alteração legislativa, que aumentou a previsão de pena para esse crime a até 40 anos de reclusão, a maior do Código Penal brasileiro. Por outro lado, a redução dos índices de violência doméstica não virá apenas dessas políticas de controle de criminalidade. Aprimorar a legislação é importante, mas não dá conta da mudança do quadro de desigualdade de gênero no país. Será a partir de políticas que garantam o acesso das mulheres aos direitos fundamentais, como educação, saúde, habitação e trabalho, que conseguiremos avançar. Por isso a importância dos equipamentos e serviços que integram a Rede de Atendimento a Mulheres.

  • G |Muitas mulheres ainda têm medo ou são dissuadidas de denunciar violências e ameaças. Quais as principais barreiras que a sociedade, os governos e órgãos de defesa ainda impõem nesse sentido?

    SC |

    Depende do contexto. É fundamental falar sobre isso, porque temos investido em campanhas que incentivam mulheres a denunciar, ligar 190, sem compreender que, para muitas, denunciar o companheiro pode significar morar na rua com os filhos, sem condições de sustento. Ou pior, agravar a situação de risco, caso ela não tenha acesso a políticas adequadas de proteção. É preciso garantir acesso a mecanismos de proteção, segurança, apoio, fortalecimento e autonomia financeira para que essa mulher possa pedir ajuda. Em outras palavras, identificar os fatores de risco que, naquele caso específico, impedem a mulher de denunciar e pedir ajuda.

  • G |A gente tem visto demonstrações constantes de preconceito e misoginia na política, em especial relacionada à extrema direita, além da baixa representatividade feminina. O quanto isso contribui para a perpetuação de dados como esses?

    SC |

    A disseminação de discursos preconceituosos ou misóginos, em especial quando proferidos por quem ocupa alguma posição de poder, liderança ou respeitabilidade social fortalece o ambiente de discriminação e desprezo em relação às mulheres. Em última instância, isso é utilizado de forma absurda para justificar a violência contra elas.

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